Fernando Vernalha Guimarães (PR)
Não seria exagero afirmar que as Administrações Públicas são contumazes em atrasar ou inadimplir pagamentos contratuais. Em alguns casos, essa falta deriva de dificuldades burocráticas ou orçamentárias. Em tantos outros, relaciona-se ao risco político ou a manobras de gestão. Fato é que o inadimplemento público tem sido muito mais comum do que gostaríamos, o que vem concorrendo expressivamente para a explosão dos custos transacionais na contratação administrativa. Mesmo as Administrações que procuram se manter pontuais no cumprimento das obrigações de pagamento em contratos administrativos acabam sendo contaminadas pela má fama que vem sendo atribuída ao contratante público, sofrendo os efeitos similares àquilo que se denominaria de “seleção adversa”. Sob esse cenário, elevam-se os preços contratuais e instala-se uma indesejada ineficiência na contratação pública.
Há um conjunto de causas que poderiam ser apontadas como responsáveis pelo cacoete do inadimplemento. Em primeiro lugar, a dificuldade com que se movimenta a máquina administrativa para fiscalizar, medir e processar a liquidação das obrigações de pagamento. O peso de sua burocracia lhe retira muitas vezes a agilidade necessária para manter-se pontual no cumprimento deste encargo. Em segundo lugar, as dificuldades orçamentárias, que em épocas de crise afiguram-se a grande responsável pela suspensão e retenção de pagamentos. Por fim, as decisões políticas ou de gestão, mais comuns em períodos de transição de governos. Moratórias passam a ser cada vez mais utilizadas na troca de governos como uma via para reestruturar contratos e suspender pagamentos.
Todos esses motivos explicam mas não justificam a cultura do inadimplemento. Em grande parte dos casos, ela se revela voluntarista, o que indica que o incentivo para se evitar o inadimplemento - considerando-se todas as dificuldades referidas acima - não tem sido forte o suficiente. É necessário e urgente incrementar-se o incentivo para que as Administrações honrem suas obrigações contratuais e se afastem da cultura do calote.
No mundo privado, os agentes econômicos possuem certos incentivos para evitar inadimplementos dessa natureza. Em primeiro lugar, o conjunto de direitos previstos em contrato voltados à penalização da conduta oportunista e infratora das obrigações contratadas - associado a isso está a (in)eficácia do sistema judiciário, apto a lhe garantir a realização de seus créditos. Além disso, os sistemas de restrição ao crédito (e, menos diretamente, os sistemas de rating do risco de crédito) podem funcionar como fortes indutores da conduta contratualmente desejada.
Já no mundo dos negócios públicos estes incentivos não estão presentes – pelo menos não a sensibilizar suficientemente as Administrações. Os encargos moratórios e as penalizações financeiras não têm frequentado as minutas de contratos administrativos, invariavelmente produzidas unilateralmente pelas Administrações. Quando muito, esses encargos são discutidos, a duras penas, em longas ações judiciais que, quando não esbarram em algum entendimento restritivo de juízes orientados pela premissa de que a proteção ao interesse público equivale à presunção de que o privado está sempre equivocado, acabam gerando créditos conversíveis nos famigerados precatórios. Já a eficácia do sistema judicial para a realização dos créditos contratuais contra as Administrações tem ainda um ônus adicional: são sempre dependentes do sistema de precatórios – algo muito particular de nossa realidade e que lhe acentua sobremaneira o déficit de eficácia. Da mesma forma, não há sistemas de restrição de crédito para as Administrações e muito menos elas são impactadas pelas classificações divulgadas pelo rating do risco de crédito – pelo mesmo não em relação ao incentivo necessário para cumprir com suas obrigações contratuais. Os atuais sistemas de classificação do risco de crédito (que vêm sendo organizado e operados principalmente pelas três agências de risco mais conhecidas – Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s) não vêm funcionado eficazmente para constranger as Administrações a melhorar a sua performance quanto ao adimplemento em contratos administrativos. Embora cada agência de classificação do risco de crédito possua a sua metodologia própria para medir a qualidade de crédito do emissor (ou de obrigações específicas), inclusive das Administrações, sendo certo que fatores diversos interferem nestas análises, a avaliação do risco de crédito contratual propriamente dito não é um fator preponderante, mas a sua dívida mobiliária. Isso explica porque historicamente tivemos Administrações Públicas com boa classificação de risco de rédito (com grau de investimento, por exemplo), mas com acúmulo de enorme dívida contratual. Talvez por isso também é que esses sistemas não foram eficazes a ponto de gerar incentivos mais diretos para que as Administrações cuidassem de sua dívida com contratos administrativos.
Esse panorama explica um possível déficit de incentivo às Administrações para o cumprimento de contratos – é lamentável, aliás, que as Administrações, no Brasil, necessitem de incentivos mais diretos para isso. É evidentemente necessário, portanto, incrementar a qualidade e o nível do incentivo aos agentes administrativos para que a contratação pública não se ressinta do mal do inadimplemento.
Neste sentido, sistemas de cadastramento e de rating do inadimplemento contratual das Administrações poderiam ser concebidos e desenvolvidos para esse fim. A solução passaria pela instituição de um cadastro das Administrações inadimplentes, definido como um sistema de cadastro público para relacionar as pessoas administrativas que detenham dívida contratual – assim considerada a dívida resultante de parcelas executadas e não pagas em contratos administrativos. A formação do crédito contratual ocorre com a formalização do adimplemento da prestação e a partir do decurso do prazo máximo estabelecido em contrato para a remuneração devida pela Administração (que a Lei 8.666/93 define como 30 dias). Configurada a dívida contratual, o contratante privado poderia noticiá-la ao sistema de cadastramento, que a incorporaria para o fim de formação do nível de inadimplência contratual de cada Administração. A partir de certo grau, a pessoa administrativa ficaria sujeita a sanções mais graves, como a suspensão de sua aptidão para receber transferências da União.
Esse sistema de cadastramento poderia ser operado por agência estatal nacional criada e capacitada para esse fim, nos moldes do que se passa com outros sistemas de cadastramento.
Além do cadastramento em si, que se destinaria a medir a inadimplência contratual para o fim de associar-lhe sanções específicas, seria desejável que as agências de classificação do risco de crédito incorporassem também em suas análises e metodologia, a partir de classificação e segmentação específica, a verificação da inadimplência contratual dos entes administrativos. Isso poderia oferecer aos interessados em contratar com a Administração Pública uma opinião técnica e prospectiva acerca do seu risco de default relativamente às obrigações contratuais (o que consideraria também a sua capacidade em lidar com circunstâncias e ciclos econômicos adversos, análise dependente, em alguma medida, da verificação de sua saúde fiscal e financeira – o que aparentemente já é um fator considerado pelas agências em suas classificações de risco de crédito). Essa avaliação tem a função de noticiar ao mercado e aos futuros parceiros contratuais das Administrações as perspectivas acerca de sua condição em honrar obrigações contratuais.
Esses sistemas de cadastramento da inadimplência pública podem trazer benefícios relevantes para a contratação pública. Ao funcionar como indutor para o adimplemento, propiciarão a redução dos custos financeiros na contratação administrativa - reduzindo-se, por exemplo, o pagamento de encargos moratórios - e concorrerão para a contenção dos custos transacionais. Além disso, contribuirão para aliviar os efeitos da seleção adversa em relação às pessoas administrativas cumpridora de contratos – atualmente, mesmo essas Administrações acabam pagando o preço da insegurança do interessado/investidor gerado pelo inadimplemento das outras. Gradativamente, poderemos experimentar uma melhora relevante na economia dos contratos administrativos.
Essas, enfim, são algumas reflexões para contribuir com a discussão sobre a cultura do inadimplemento público no âmbito dos contratos administrativos. Afinal, por mais lamentável que isso seja, ainda vivemos tempos em que as Administrações, no Brasil, se dão ao luxuoso direito de inadimplir contratos. Logo as Administrações, merecedoras da presunção de solvência e do encargo de dar o exemplo de ética e de boa-fé na condução das obrigações contratuais. Mas se isso não tem sido um incentivo forte o bastante, que se o incremente. Resta-lhes o constrangimento dos sistemas de cadastramento do inadimplemento público.
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