Fernando Vernalha Guimarães (PR)
O administrador público vem, aos poucos, desistindo de decidir. Ele não quer mais correr riscos. Desde a edição da Constituição de 88, que inspirou um modelo de controle fortemente inibidor da liberdade e da autonomia do gestor público, assistimos a uma crescente ampliação e sofisticação do controle sobre as suas ações. Decidir sobre o dia a dia da Administração passou a atrair riscos jurídicos de toda a ordem, que podem chegar ao ponto da criminalização da conduta. Sob as garras de todo esse controle, o administrador desistiu de decidir. Viu seus riscos ampliados e, por um instinto de autoproteção, demarcou suas ações à sua “zona de conforto”. Com isso, instalou-se o que se poderia denominar de crise da ineficiência pelo controle: acuados, os gestores não mais atuam apenas na busca da melhor solução ao interesse administrativo, mas também para se proteger. Tomar decisões heterodoxas ou praticar ações controvertidas nas instâncias de controle é se expor a riscos indigestos. E é compreensível a inibição do administrador frente a esse cenário de ampliação dos riscos jurídicos sobre suas ações. Afinal, tomar decisões sensíveis pode significar ao administrador o risco de ser processado criminalmente. Como consequência inevitável da retração do administrador instala-se a ineficiência administrativa, com prejuízos evidentes ao funcionamento da atividade pública.
É claro que o controle sobre a atividade administrativa é algo imprescindível e inevitável, inclusive aquele de natureza burocrática, uma vez que necessitamos de instrumentos eficazes para inibir condutas arbitrárias, ímprobas e ilegais, assim como para fiscalizar as ações do gestor do interesse coletivo. E é certo também que o controle, por si, gera ineficiências. É da sua essência interferir no funcionamento da atividade administrativa, criando travas e fricções burocráticas (por assim dizer). O ponto que parece merecer maior reflexão é precisamente a cultura do excesso de controle, que vem gerando efeitos colaterais indesejáveis, favorecendo a proliferação de ineficiências. É necessário perceber, enfim, as “externalidades negativas” do controle, que devem ser consideradas para o fim da calibragem desse sistema.
A cultura pelo excesso de controle tem uma compreensível inspiração em períodos históricos que concentraram eventos de corrupção, marcados pelo trato patrimonialista da coisa pública. A tonificação e densificação do controle da atividade administrativa trazida com a Constituição de 88 surge como resposta à farra de desmandos e frouxidão ética do gestor público historicamente percebida como uma patologia da Administração Pública. Na esteira desse processo, o sistema de controle se renovou e se aperfeiçoou, e passou a ser cultuado como um dos pilares fundamentais da legitimação democrática.
A partir disso, o culto ao controle na atividade administrativa só cresceu e se alastrou. Isso foi bom. Mas a disseminação da cultura do controle não veio acompanhada de ressalvas importantes em relação às tais externalidades negativas que dele podem derivar. Há pelo menos dois aspectos que podem ser percebidos em relação à assimilação acrítica da cultura do controle. Em primeiro lugar, disseminou-se a compreensão de que quanto mais controle, melhor, como se a dose de controle fosse indiferente ao bom funcionamento do aparelho administrativo. Em segundo lugar, prestigiou-se um equipamento essencialmente burocrático de controle, desprezando-se seus aspectos finalísticos. Isso se relacionou também ao conforto do controlador em se utilizar de um aparato que lhe oferecesse parâmetros seguros de análise e aferição (o recurso cada vez mais frequente às tabelas referenciais de preço pelas cortes de contas para examinar a “correção” de preços é um exemplo).
Sob este contexto, as instâncias de controle passaram a consolidar entendimentos jurídicos bastante rígidos e restritivos relativamente a temas importantes do dia-a-dia da Administração, como a contratação direta e o controle de preços na contratação administrativa, para ficar apenas em alguns exemplos. Em relação à contratação direta, tamanho é o risco jurídico envolvido, que se tornou um verdadeiro campo minado para o gestor. Mesmo quando inequivocamente indicada, é preferível o ônus da licitação para o interesse coletivo do que o ônus pessoal de ser exposto ao risco de enquadramento em condutas de improbidade. Já o sistema das tabelas referenciais de preços é utilizado pelas instâncias de controle como a ferramenta mágica para o diagnóstico da corrupção e da improbidade: preços acima dos limites referenciais caracterizam-se como “sobrepreço”, atraindo as consequências do regime da improbidade e do regime penal anticorrupção. Desinteressam os fatores reais do mercado aptos a afetar as cotações. Desinteressa se esses enquadramentos concorrem cada vez mais para a explosão dos custos transacionais na contratação administrativa. O que mais interessa, na ótica do controlador, é possuir um ferramental que lhe permita minimizar a assimetria de informação com o mercado e alcançar um diagnóstico objetivo e confortável em relação aos preços. Mesmo que, de fato, seja um diagnóstico meramente formal.
Todo esse risco jurídico que se projeta sobre a contratação administrativa - para ficar nesse exemplo - é potencializado pelos entendimentos superlativos (mas aparentemente majoritários) que passam a enquadrar esses ilícitos como atos de improbidade. Tudo como se os tipos de improbidade retratassem meros ilícitos de gestão. Não importa se há ou não corrupção; se há ou não desonestidade na conduta do gestor. Basta que a sua conduta seja considerada ilícita ou contrária aos princípios da administração pública para que ao gestor público seja imputado o enquadramento em práticas de improbidade. E parece desinteressar a esses entendimentos as consequências negativas que enquadramentos excessivos como esses produzem ao sistema da contratação administrativa e ao funcionamento da atividade administrativa. Se por um lado restringir excessivamente práticas duvidosas pode produzir uma melhor performance no combate à corrupção e aos desvios de ética, por outro aumenta o custo de transação e produz ineficiências no desenvolvimento da atividade administrativa.
Já o apego ao equipamento burocrático de controle, especialmente num cenário de aumento da (revelação da) corrupção, é cada vez maior. Toda vez que há noticia de eventos de corrupção – e esta lamentavelmente tem sido mais assídua do que gostaríamos -, cai-se na tentação de propor-se o incremento da burocracia, do procedimento, assim como a intolerância com a sua violação. O problema é que enriquecer e sofisticar ainda mais o processo burocrático, além de incrementar os custos de gestão, talvez não resolva o problema. A corrupção muitas vezes não encontra limites na burocracia. Ela tem conseguido, contrariamente, esconder-se atrás de tanta sofisticação, quando o cumprimento da burocracia legal acaba funcionando como um fator de legitimação do ilícito de corrupção. Talvez faça mais sentido, alternativamente, investir-se nas vias realmente efetivas de investigação e de penalização do ilícito de corrupção (incrementar-se a capacidade de investigação e de punição do Estado, por exemplo).
Sem desmerecer a necessidade de sistemas de controle eficazes para os fins a que se destinam, é necessário ponderá-los à luz da relação de custo-benefício no contexto do funcionamento da atividade administrativa. Esse é evidente um dilema que já instigou discussões em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, quando se vivia, ainda no governo de Bill Clinton, o conflito entre o projeto gerencial do Executivo para um governo mais efetivo e a proposta de “reforma regulatória” debatida no Congresso - com vistas a incrementar o processo e a responsabilidade do gestor público -, punha-se nitidamente a tensão relacional entre eficiência governamental e controle jurídico/burocrático. Isso levou o Professor da Universidade de Yale Jerry L. Mashaw a afirmar que “o Direito Administrativo sempre pareceu caminhar sobre uma linha estreita entre a impertinência e a irrelevância. Impertinência porque corria o risco de atrasar, divergir, ou mesmo frustrar ações públicas necessárias. Irrelevância porque, apesar da sua pretensão de assegurar a legalidade, a discricionariedade administrativa permanecia ubíqua. Estabelecer o equilíbrio adequado entre legalidade e eficácia nunca foi fácil. Isso tem motivado os esforços constantes da reforma do Direito Administrativo durante pelo menos as últimas seis décadas” (“Reinventando o governo e reforma regulatória: estudos sobre a desconsideração e o abuso do direito administrativo”, em Regulação econômica e democracia – o debate norte-americano. Trad. Caio M. da S. Pereira Neto. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 296). É de fato a busca por esse tão difícil equilíbrio entre eficiência e burocracia, autonomia discricionária e legalidade, o que vem ensejando, ciclicamente, discussões sobre o grau de autonomia do gestor versus a densidade do controle (procedimental).
É relevante, enfim, repensar o nosso sistema de controle e revisitar os entendimentos (principalmente, jurisprudenciais) que lhe vêm dando conotações extensivamente rígidas e ortodoxas. Afinal, os sinais da ineficiência administrativa estão mais visíveis do que nunca. E, como se disse no início desse texto, a superexposição do gestor público aos riscos jurídicos derivados da cultura acrítica do controle está impondo-lhe o ônus da inércia. Chegou a hora, enfim, de investigarmos o custo do controle.
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