Fernando Vernalha Guimarães (PR)
Ninguém duvida da necessidade de que as contratações do Poder Público obedeçam a padrões procedimentais que sejam aptos a reduzir o risco de desvios de ética e de finalidade por parte do gestor público e garantir escolhas mais vantajosas para o interesse coletivo. Esses padrões serão mais ou menos formalistas, rigorosos ou abrangentes conforme o modelo de licitação que se adote. Uma disciplina mais rigorosa, minuciosa e abrangente tenderá a gerar maior controle sobre a formação da contratação pública. Mas esse controle gera custos, o que põe a questão de examinar a eficiência do sistema à luz da relação de custo benefício entre a as vantagens e desvantagens derivadas das sistemáticas de controle estabelecidas pela disciplina da licitação. Ao mesmo tempo em que o regime da licitação deve assegurar a possibilidade de controle sobre a atuação administrativa voltada à contratação com terceiros, tem o papel de propiciar os resultados mais vantajosos ao interesse coletivo. Eis aqui um dos grandes dilemas da licitação: gerar controle sem perder a eficiência. Ou melhor: ser eficiente no controle.
O problema é que, no Brasil, essa conta não tem sido historicamente favorável à eficiência. Temos tido um regime bastante formalista, cheio de minúcias e procedimentos, e que, a despeito de garantir um controle satisfatório (pelo menos sob o ângulo formal), tem gerado muitas ineficiências. Sem adentrar a discussão sobre os custos associados ao adequado dimensionamento dos sistemas de controle externo às Administrações, o enfoque que me interessa aqui é o da calibragem da disciplina jurídica da licitação propriamente dita. Isto é: o modelo de licitação que temos operado na experiência brasileira tem se revelado oneroso e ineficiente, decorrência das características de seu aparelho, riquíssimo no estabelecimento de limites de toda a ordem para que o gestor público estruture uma licitação pública. E essa disciplina adquiriu traços ainda mais exigentes e limitativos quando interpretada e aplicada pelas instâncias de controle. Toda essa cultura do excesso de controle pela burocracia e pela forma é alimentado pela premissa de que o cumprimento daqueles ritos gerará sempre o resultado mais apropriado para o interesse coletivo.
Ocorre que os custos diretamente derivados da realização material dos processos de licitação (que crescem à proporção da intensidade da burocracia) e a ineficácia dos caminhos procedimentais e formais como meio de gerar as melhores escolhas para o interesse coletivo têm posto em xeque aquela premissa. Suscita-se a discussão pela renovação do modelo atual de contratação, o que passa por desburocratizar a licitação, aproximando-a da realidade dos negócios e do próprio mercado. E aqui teremos muito a fazer. A tendência, ainda que para um futuro não tão próximo, será transitarmos de um modelo burocrático e formalista para um modelo focado no alcance de resultados. O controle não se fará tanto pelo cumprimento dos ritos, das formas e do conjunto de condições para pautar a tomada de decisão administrativa, mas pelo resultado, pelo conteúdo racional das escolhas. Para isso, será importante ampliar a transparência e reduzir a burocracia. Através da amplificação da transparência conseguiremos exercer um controle sobre a racionalidade das escolhas produzidas pela licitação, que tenderá a ser mais eficaz e legítimo - na minha visão - do que aquele operado a partir do aparelho burocrático. Aliás, esse tem funcionado em muitos casos como um instrumento de legitimação de decisões irracionais: basta que o sistema produza certo resultado para que ele esteja formalmente legitimado como o melhor resultado possível para o caso. O problema é que, na vida real, as escolhas certas muitas vezes não coincidem com os resultados apontados pelo manejo do aparelho burocrático.
Esse, enfim, um panorama que não deve ser desprezado nas discussões sobre os rumos da licitação no país. O momento é especialmente oportuno para isso em decorrência da tramitação de projetos legislativos diversos voltados à reforma do modelo de contratação.
Um inevitável paralelo que vem à mente quando se discute o aperfeiçoamento do sistema de licitações e contratos é a sua contraposição ao modelo privado. No mundo privado das grandes corporações, identificam-se muitas das necessidades e complexidades que identificamos nas Administrações Públicas. No bojo da sua estrutura corporativa, há toda a forma de controle voltado à repressão e ao combate aos desvios de ética (corporativa) na condução dos procedimentos de contratação. Afinal, a corrupção privada é um fenômeno desde sempre entranhado no universo corporativo e que tem no terreno das contratações um campo fecundo para se desenvolver. Logo, há um interesse permanente dos órgãos corporativos de controle em coibi-la. E a concepção e o exercício desses controles, como não poderia deixar de ser, são sopesados e calibrados à luz de padrões de eficiência, considerando-se o objetivo da burocracia instrumental à escolha das ofertas: eleger sempre a proposta mais vantajosa. E isso acaba funcionando com maior eficiência do que se passa na licitação pública. É útil, daí, buscar as razões que justificam a supremacia do modelo privado.
Sem querer reduzir as complexidades que os distanciam, não seria errado reconhecer que há uma distinção fundamental na origem das ideias que legitimam o desenvolvimento dos sistemas de controle. No mundo privado, vige o controle pelos resultados; no mundo público, o controle dos meios. Disso decorrem as discrepâncias no reconhecimento da autonomia do administrador: o operador privado goza de muito maior autonomia e independência do que se passa com o gestor da licitação pública (que, segundo a velha teoria, não pode atuar sem que haja “lei” que lhe dê o caminho). É como se, relativamente aos controles públicos, prevalecesse a presunção de incapacidade ou de desonestidade do operador, que dependeria da receita burocrática para agir. Já a ética privada pressupõe a boa-fé e o preparo do administrador, detentor de boa autonomia para fazer seus diagnósticos, verificações e escolhas necessárias ao atingimento do seu objetivo funcional. Tudo a ser demonstrado e justificado em momento certo. Todas essas diferenças (e tantas outras) fazem com que o processo privado seja mais verdadeiro do que a licitação pública. E é por isso que ele merece servir de inspiração para as reflexões e discussões em curso sobre a reconstrução do modelo de licitação pública no país.
É verdade que o momento não parece o mais propício para fecundar ideias heterodoxas sobre essa temática. Afinal, a operação lava-jato ainda deixa muita desconfiança sobre a eficácia do nosso modelo de contratação pública. Neste ambiente, nasce muita resistência a ideias desburocratizantes - embora, na minha visão, pareça um erro atribuir ao modelo de contratação a proliferação da corrupção nos contratos públicos. Talvez se possa dizer, inclusive, que, na esteira de eventos concentrados de corrupção, iniciam-se sempre ciclos de enrijecimento da burocracia e de incremento do ferramental do controle de gestão. Nascem de uma tentativa de dar respostas políticas aos escândalos de corrupção.
É neste contexto que cresce o desejo por controle e abre-se a porta para a reedição de mais um capítulo do modelo da licitação pelo controle (e não pela eficiência). Precisamos, no entanto, ter cautela para não cair no raciocínio fácil e preguiçoso que vê no reforço da burocracia a resposta para o combate à corrupção e melhoria do sistema de contratações. A tendência, penso, deve ser noutro sentido: em busca da eficiência, o que pressupõe não o fortalecimento da burocracia, mas a redução da densidade normativa do aparelho jurídico da licitação. A questão da corrupção, de suma relevância, merece ser investigada e atacada mediante ajustes de outra natureza (há muito a se refletir sobre os modos de indicação de administradores e gestores públicos, sobre os critérios e padrões de governança nas instituições públicas etc).
Enfim: vivemos um momento de reflexão sobre a reforma do nosso sistema de contratações. Uma das pautas fundamentais penso ser a avaliação da relação de custo-benefício dos equipamentos de controle, o que acabará passando pela substituição do controle puramente burocrático pelo controle racional de mérito e resultado. A inspiração para isso deve vir, sim, das boas práticas do setor privado.
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