Fernando Menegat (PR)
Desde a semana do dia 16 de março (alguns mais cedo, outros mais tarde) o Brasil está em clausura em razão da pandemia de COVID-19, doença causada pelo Coronavírus (Sars-cov-2). De lá para cá, inúmeros estudiosos do direito já produziram importantes e pertinentes reflexões acerca das implicações que a atual conjuntura tem provocado, nas mais diversas áreas (direito administrativo, trabalhista, comercial, civil, etc.).
De minha parte, optei por decantar o raciocínio um tanto. Naturalmente, sobretudo nos primeiros dias, tive de atuar em representação daqueles que, minuto a minuto, recebiam avalanches de ofícios (quando não mensagens via WhatsApp) da Administração Pública solicitando a repactuação/suspensão/rescisão de contratos administrativos firmados com os mais diversos objetos.
Mas essa atuação “microscópica” não impediu a tomada de algum fôlego para tentar sacar alguma análise macro da questão. O resultado está nas linhas seguintes, com característica ensaística, que definitivamente não refletem conclusões acabadas.
O Direito em tempos de exceção
O Direito demanda normalidade. A clausura lógico-sistêmica do ordenamento jurídico, para ficar com a imagem luhmanniana, sobrevive a ruídos externos, mas não a berros. O Direito não lida efetivamente com tempestades, dobra-se e reage histericamente à realidade dos fatos quando estes lhe atropelam. É como aquela brincadeira típica de entretenimento infantil estilo fliperama, em que de vários buracos espalhados por uma mesa vão surgindo monstrinhos que o jogador precisa acertar com um martelo. O martelo do Direito não consegue acertar a todos. Talvez seja hora de levar mais a sério estudos no campo do realismo jurídico, tão negligenciado nos países de cultura jurídica romano-germânica...
O estado de calamidade, anunciado via decretos (tanto executivos como até mesmo legislativos) que pulularam em todas as esferas federativas, teve como corolário o início de um diuturno vilipêndio de disposições constitucionais, justificado ante a urgência da situação vivida e o caos socioeconômico propiciado pelo repentino isolamento social e pelas restrições à liberdade de locomoção e à liberdade de iniciativa econômica. Feliz ficou apenas o meio ambiente, conforme comprovam os canais de Veneza e a sensível redução na poluição atmosférica já detectada no mundo.
Acaloradas discussões já têm despontado acerca das competências constitucionais legislativas em matéria de saúde pública – a ponto de o STF, em decisão ainda monocrática do Min. Marco Aurélio na ADI 6.341, ter intervindo para esclarecer que se trata de competência concorrente, à luz do art. 24, XII da CF88. Ocorre que, se de competência concorrente se trata, a regra do art. 3º da Lei Federal n. 13.979/2020 (a “Lei do Coronavírus”) constitui norma geral e, como tal, de observância obrigatória pelos demais entes federativos – tanto em sua atuação legislativa complementar quanto em sua ação material. Aliás, o artigo em questão é claro em afirmar que entes federativos devem atuar “no âmbito de suas competências”.
Não é isso que tem ocorrido, contudo. Desde o início, quando já vigente a norma e em descumprimento ao seu caput e principalmente seu §7º, Estados determinaram (majoritariamente via Decretos) o “fechamento” de aeroportos (competência material da União) e Municípios determinaram o “fechamento” de rodoviárias (no caso de transporte intermunicipal, a competência é dos Estados; no caso de transporte interestadual, há competência da União). Em sentido inverso, a União já tem intentado – até o momento sem sucesso, em razão de decisões judiciais – se utilizar da figura da requisição administrativa para capturar máscaras, respiradores e demais utensílios médicos guarnecidos em hospitais públicos municipais e estaduais pelo Brasil. A tradicional disputa fiscal entre os entes federativos virou, ao que parece, uma disputa por “protagonismo normativo”; a disputa pelo poder é agora uma “disputa pelo poder de polícia”.
Sob outro viés, dita o art. 3º, §1º da mesma “Lei do Coronavírus” que as medidas de polícia administrativa arroladas nos incisos do caput apenas serão adotadas “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde”. Não se tem notícia de motivação explícita, nos Decretos Federais, Estaduais e Municipais até aqui editados que lançaram mão de tais medidas, apoiando-as em qualquer espécie de evidência científica – até porque, dada a novidade do vírus e da doença por ele propiciada, talvez sequer existam ainda evidências científicas a serem utilizadas como base.
Apenas para ficar com mais um exemplo, veja-se a recente discussão acerca do art. 167, II da Constituição (que impede o Poder Público de contrair despesas para além dos créditos orçamentários), levantado como óbice pelo Governo Federal ao pagamento do auxílio emergencial de R$600,00 para trabalhadores informais, aprovado pelo Congresso e sancionado pelo Executivo pouco menos de uma hora antes do momento em que escrevo essas linhas. O Ministro do STF Gilmar Mendes e o Ministro do TCU Bruno Dantas, em contas pessoais nas redes sociais (oxalá posts no Twitter pudessem ter força de precedente), criticaram duramente a mora do executivo em sancionar a lei e iniciar os pagamentos. A postagem do membro da Corte de Contas é demonstrativa do que se quer aqui alegar: afirmou o Ministro que a regra do art. 167, II foi “escrita na Constituição para tempos de normalidade”, e não poderia constituir “pretexto para atrasar a destinação emergencial” de recursos a trabalhadores necessitados.
Quando até mesmo autoridades responsáveis por interpretar e aplicar a Constituição – notadamente no caso do STF – afirmam que a Magna Carta deixa de ser magna em situações de exceção (fora dos “tempos de normalidade”), algo deve ser repensado. Esse algo é o Direito e seu pretenso papel totalizante de ordenação e coerção em tempos de crise. No fim do dia, para alentar os ânimos dos juristas – que não suportam reconhecer a derrotabilidade do Direito, ainda mais da Constituição –, tudo será resolvido via “interpretação conforme”, ou via reconhecimento de uma situação de “juridicidade extraordinária”, em que seria o próprio Direito a admitir sua inaplicabilidade às situações de urgência. A ver.
O Direito Administrativo em tempos de exceção
Chamou-me a atenção, logo nos primeiros dias do isolamento, uma cômica postagem feita por perfil de humor em rede social. Uma imagem dizia que, nos momentos de crise, o “Direito Administrativo Nutella®” – representado por discussões mais modernas acerca de regulação, consensualidade, estudos de impacto, etc. – cederia espaço ao “Direito Administrativo Raiz” – com utilização dos decretos de calamidade, requisições administrativas, medidas de polícia administrativa, etc.
Penso que, ao invés de uma defesa do “Direito Administrativo Raiz”, tal como uma primeira leitura apressada revelaria, a postagem em verdade escamoteia uma ode ao “Direito Administrativo Nutella®”: as medidas unilaterais tradicionais somente são destaque num contexto de exceção – e, ainda assim, submetidas aos aclamados princípios do regime jurídico administrativo (legalidade, motivação, proporcionalidade...).
O direito administrativo está em polvorosa. Poucas vezes houve, em tão pouco tempo, tanta exposição midiática de suas ferramentas. Escanteamos os penalistas pela primeira vez em muito tempo. No entanto, esse frenesi retratado sobretudo nas medidas de polícia e requisições administrativas tem causado certo desconforto.
Preocupo-me severamente com a filtragem das condutas que têm sido adotadas sob a óptica dos testes de proporcionalidade (adequação, necessidade, razoabilidade). Algumas medidas de polícia administrativa – a exemplo da quarentena compulsória de toda a população de uma determinada cidade, cumulada com fechamento de fronteiras e toques de recolher – parecem falhar ao teste, em primeira análise. Mas qual seria então a solução?
A crítica não é aqui dirigida, por óbvio, ao isolamento social (pelo contrário), nem se adentra na polêmica “isolamento horizontal” x “isolamento vertical”. A crítica é, sim, à pretensão de completude sistêmica do direito (no caso, o direito administrativo) como um todo e sua incapacidade de regular com suficiência todas as vicissitudes da vida em sociedade. Mas se o direito administrativo elege como dogma o princípio da legalidade, como ficamos na insuficiência da lei?
Ademais, incomoda profundamente o caos derivado da ausência de articulação entre os entes federativos – falta de diálogo que ficou evidente num recente bate-boca entre o Chefe do Executivo Federal e o Chefe do Executivo de um dos mais importantes Estados da federação. Demanda-se, mais do que nunca, a previsão de mecanismos de concertação administrativa (olhem o “Direito Administrativo Nutella®” aparecendo), sobretudo nos casos em que há competência legislativa concorrente aliada à competência material comum. É insuportável que um determinado Município obrigue a população a ficar em casa, enquanto o Estado permita leves caminhadas no parque e a União diga que não há problema em ir a um espetáculo musical.
Como dito, o Direito como um todo (não só o direito administrativo) não está servindo para regular a realidade. A realidade espanca o direito, exige-lhe uma plasticidade que não tem. Daí que as medidas passam a ser adotadas sem critério, no calor do momento, de acordo com a formação e o background de cada gestor ou com suas perspectivas de captação de poder político (olhem o realismo jurídico aparecendo). É o direito administrativo tentando martelar os monstrinhos que vão aparecendo dos buracos, mas só há um martelo e os monstrinhos parecem em hordas.
O Direito Econômico em tempos de exceção
O mais confortável dos “ramos” do Direito nos atuais tempos é, sem dúvida, o direito econômico, que nasceu e ganhou musculatura justamente em momentos de pesada crise – surgiu no período após a 1ª Guerra Mundial, em estágio de elevada decomposição socioeconômica e que cumulou não apenas os reflexos da Guerra como também da gripe espanhola, que em 1918 infectou cerca de um quarto da população mundial e levou a óbito em torno de 10% dos infectados.
Foi a interação entre Direito e Economia que permitiu a cunhagem de inúmeras ferramentas que passaram a ser adotadas pelo Estado, de acordo com a doutrina de Keynes, como medidas anticíclicas para contornar as crises propiciadas pelos grandes eventos depressivos da economia do século XX – para ficar num dos exemplos mais eloquentes, basta a referência ao Plano Marshall adotado pelos EUA logo após a 2ª Guerra Mundial.
Momentos como o presente são os que mais demandam do direito econômico. Transversal que é, ele põe na balança o direito administrativo, o direito financeiro e o direito tributário; o direito à saúde e a liberdade de iniciativa. São as ferramentas por ele cunhadas que permitem ao Estado adotar medidas corretivas anticíclicas de diversas naturezas (auxílios extraordinários, fomento de diversas espécies, etc.) para superar períodos de depressão inevitáveis em razão da necessidade de proteção da vida humana.
Veja-se bem, para que não se interprete equivocadamente a afirmação acima: o direito econômico não obriga, no atual contexto, as pessoas a “voltarem a trabalhar”. Ele não contrasta com o direito à vida e à saúde. O direito econômico, isso sim, obriga o Estado a refletir sobre que medidas adotar enquanto todos não estiverem trabalhando, e sobre como remediar as consequências assim que as atividades econômicas forem retomadas. Até porque, para além da liberdade de iniciativa, a Constituição Econômica de 1988 resguarda igualmente outros princípios de idêntica magnitude.
O que esperar?
Obviamente, é impossível prever qual será o saldo do Direito em relação ao Coronavírus. Talvez logre êxito em fazer algum acoplamento estrutural e lidar com a crise de maneira eficaz; talvez os entes políticos se articulem e cessem as “exceções” que têm sido abertas às regras de competência fixadas na Constituição. Ou, então, talvez se reconheça, como propõe Teubner, que o Direito enquanto instrumento de regulação perdeu sentido. A Lei n. 13.979/2020 foi elaborada em tempo recorde, e contém disposições que aparentam se alinhar à orientação de diversas autoridades sanitárias mundiais; mas, como bem alertou Gustavo Binenbojm em artigo publicado no Jota de 13/03, “o desafio é bem aplicá-la, a tempo e a hora”.
De todo modo, não posso deixar de tecer uma breve nota acerca do que esperar – e aqui é um misto de expectativa com oração – da atuação dos órgãos de controle daqui em diante, ao se depararem com ações adotadas pelos gestores para contornar a crise.
É certo que diversas medidas de polícia, requisições administrativas e outras posturas que têm sido adotadas irão desbordar do ordenamento jurídico, porque ilegais em sentido estrito, porque imotivadas, porque desproporcionais, porque chapadamente ineficazes, etc. É certo que despesas serão contraídas em descompasso com os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal. É certo que contratos administrativos serão suspensos de imediato (já estão sendo), e não se sabe como ficarão em sua retomada. É certo que contratações serão feitas com algum grau de inobservância da Lei n. 8.666/93, da Lei n. 13.303/2016 e talvez mesmo do art. 4º da Lei n. 13.979/2020. É certo que contratos de concessão serão duramente impactados (notadamente na curva de demanda) e medidas talvez atípicas de reequilíbrio econômico-financeiro tenham de ser adotadas. Em todos esses casos, a responsabilidade do gestor (e mesmo dos particulares contratados, como medida preventiva de compliance), é motivar solidamente seus atos e documentar as razões fáticas pelas quais cada conduta teve de ser adotada.
Nesse contexto, quiçá as inserções na LINDB promovidas pela Lei n. 13.655/2018 finalmente tenham o momento de mostrarem a que vieram. Disposições como a do art. 21 (dever do controlador de antever as consequências fático-jurídicas e regularizar a situação de maneira proporcional) e principalmente do art. 22 (dever do controlador de considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo”, bem como “as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”) serão de fulcral importância na análise da conduta de gestores que, eventualmente, tenham martelado os monstrinhos forte demais.