Fernando Leal (RJ)
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Um recente projeto de lei, se aprovado, promete alterar radicalmente o modo como decisões judiciais, administrativas e de órgãos controladores são justificadas no país. Arquitetado pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, o PL 349/15 do Senado pretende lidar com “importantes fatores de distorção da atividade jurídico-decisória pública”. O mais importante deles parece ser o uso pouco parcimonioso de padrões vagos para sustentar decisões jurídicas. Impedir ou limitar de alguma forma o recurso a termos como “interesse público”, “razoabilidade”, “moralidade” e “precaução” como razões centrais para fundamentar decisões é considerado movimento crucial para realizar o principal objetivo do PL: “elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do direito público”.
A intenção do PL é, sem dúvida, nobre. Se é correto o diagnóstico feito pelo próprio Carlos Ari Sundfeld de que vivemos hoje em um “ambiente de geleia geral em que princípios vagos podem sustentar qualquer decisão” (v. Direito Administrativo para Céticos, 2ª. ed., 2014, p. 205), a necessidade de reduzir as incertezas produzidas pelo recurso exclusivo a princípios vagos para fundamentar decisões é urgente. Sem mecanismos para domesticar essas incertezas, sobra subjetividade. Com isso, o processo decisório nas esferas judicial, controladora e administrativa torna-se instável e imprevisível.
Apesar de vir em um bom momento, não está claro, porém, como o tipo de estratégia em que o PL investe pode contribuir para alcançar o seu principal objetivo. Uma das obrigações que o PL pretende incluir na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) é a de consideração das “consequências práticas” das alternativas decisórias que se apresentam a juízes, controladores ou administradores. O caput do artigo 20 que se pretende aprovar dispõe que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão”. O caput do artigo 26, por sua vez, estabelece: “[a] decisão que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso as suas consequências e, quando for o caso, as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional, equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor, aos sujeitos atingidos, ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos”.
Ambos os dispositivos podem ser avaliados de duas formas básicas. Em um cenário de elevada carência argumentativa, obrigar tomadores de decisão a, ao lado de princípios vagos, considerar mais um elemento de justificação pode contribuir para o aumento da qualidade da fundamentação das suas decisões. Se decisões são tomadas exclusivamente com base em padrões vagos, exigir do juiz que pense nos efeitos das alternativas decisórias que lhe são apresentadas e incorpore em seu julgamento essas reflexões deixará os resultados menos sujeitos a críticas sobre um possível déficit de justificação. Pelo menos em termos quantitativos. Recorrer a um princípio vago e discorrer sobre as consequências de alternativas de decisão parece, assim, melhor do que simplesmente mencionar um princípio vago.
Na verdade, seria possível até problematizar o artigo 20 por investir, no fundo, em uma redundância. Se princípios são normas com estrutura teleológica, a tomada de decisão com base em princípios jurídicos deveria necessariamente envolver um juízo sobre os possíveis efeitos atrelados à aplicação de medidas destinadas a realizar os estados de coisas a eles vinculados. Justificar decisões com base em princípios significa, assim, recorrer invariavelmente a raciocínios consequencialistas. Nesse ponto, ao exigir que, ao aplicar princípios vagos, o decisor pense nas consequências práticas de sua decisão, o artigo 20 pode significar um simples comando para que essas normas sejam aplicadas como deveriam. Isso não é pouco na nossa realidade – ainda que não seja metodologicamente inovador.
O problema é que do aumento quantitativo de referências de argumentação não se infere o aumento da qualidade da justificação. Neste aspecto, ao apenas exigir a consideração de consequências sem estabelecer critérios para neutralizar certas dificuldades intrinsecamente relacionadas ao trabalho com efeitos de alternativas de decisão, o PL pode não ser capaz de reduzir as incertezas de processos decisórios que se sustentem sobre princípios vagos ou que invalidem os atos referidos no artigo 26 que se pretende incluir na LINDB. Ao contrário. Assim como do aumento quantitativo dos referenciais de argumentação os autores do projeto de lei parecem assumir o aumento da qualidade da justificação, é igualmente possível sustentar que esse aumento quantitativo, nos termos do PL, poderá aumentar os níveis de incerteza nos processos de tomada de decisão jurídica.
Trabalhar com consequências em processos de tomada de decisão jurídica envolve dois tipos distintos de incerteza. O primeiro se localiza na dimensão positiva ou descritiva do raciocínio. Em tese, o que o PL sugere é que tomadores de decisão devem ser capazes de antecipar os efeitos futuros de alternativas de decisão. A questão aqui é como controlar essas prognoses. Como torná-las confiáveis, e não produtos de especulações intuitivas sobre o futuro?
O segundo tipo de incerteza diz respeito à dimensão normativa do raciocínio. Uma vez identificadas as consequências vinculadas a cada alternativa decisória, o tomador de decisão deve indicar um critério com base no qual ordenará as consequências para, só então, justificar a sua preferência por determinado curso de ação. No caso do artigo 20, não está claro se esse critério de valoração é o princípio vago que o decisor pretende adotar ou algum outro, como segurança jurídica, igualdade ou eficiência. E, não estando claro o critério de valoração, o problema é que o tomador de decisão segue livre para ranquear as consequências à sua maneira. Além disso, ainda que os critérios de valoração estejam fixados na lei (esses poderiam ser os casos de “proporcionalidade” e “interesses gerais” quando olhamos para o art. 26), como são termos vagos, nada impede que a indeterminação das suas prescrições reabra exatamente os problemas com os quais o PL pretende, no fundo, lidar. Finalmente, o projeto de lei não apresenta qualquer proposta para domesticar as incertezas que possam eclodir quando diferentes critérios de valoração de estados do mundo podem sustentar decisões opostas para o mesmo caso.
Se as incertezas típicas das dimensões positiva e normativa de uma decisão orientada em consequências não devem ser descartadas, a simples exigência de considerar os efeitos de alternativas decisórias, mais uma vez, não parece suficiente para reduzir ou manter sob níveis administráveis as incertezas subjacentes à tomada de decisão jurídica nas esferas administrativa, controladora ou judicial. É certo que essa desconfiança não afeta a importância de se buscar alternativas para lidar com o recurso pouco parcimonioso a princípios vagos na justificação de decisões. No entanto, se o antídoto em que se aposta é a consideração de consequências, o PL poderia incluir disposições que almejassem neutralizar algumas das dificuldades apontadas.
O projeto poderia, por exemplo, exigir que tomadores de decisão recorressem, sempre que possível, a dados ou juízos técnicos para sustentar as suas prognoses (algo presente, de alguma forma, na proposta de redação do artigo 27); estabelecer regras de ônus de prova e determinar que resultado deveria ser privilegiado em cenários de plena incerteza ou ignorância sobre o futuro (regras de deferência institucional ou de manutenção do mundo “como está”, por exemplo); obrigar o tomador de decisão a selecionar critérios jurídicos para a ordenação de consequências e a justificar sua preferência por certa alternativa decisória em casos em que critérios diferentes possam ser aplicáveis; impor o ônus de determinação do sentido dos critérios de valoração utilizados para ordenar estados do mundo; e prever mecanismos de vinculação para a solução de casos futuros. Esses são apenas caminhos possíveis para que, colocando em termos consequencialistas, o PL possa, se aprovado, produzir com maior probabilidade os efeitos que almeja no direito público brasileiro.
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