Fernanda Schramm (SC)
No dia 30.12.2016 foi publicada e sancionada a Lei Complementar nº 157, que altera a norma que disciplina o Imposto Sobre Serviço (ISS). O novo diploma modifica o texto da Lei Complementar nº 116/2003, possibilita que os Municípios e o Distrito Federal ampliem a lista de serviços tributáveis pelo ISS e estabelece uma alíquota mínima de 2%, com o intuito de impedir a chamada “guerra fiscal”. A manobra tributária consubstancia-se na prática de entes tributantes oferecerem incentivos e benefícios fiscais com o intuito de atrair investimentos e fomentar a economia local. No caso do ISS, a guerra fiscal faz com que os Municípios e Distrito Federal ofereçam – ainda que de forma indireta, pela via legislativa, por meio de decretos municipais ou, até mesmo, via despacho de Diretores de Tributação – alíquotas cada vez mais baixas na tentativa de atrair empresas.
Com as novas regras, os Municípios podem recolher o ISS sobre serviços que até então não eram tributados ou sob os quais a incidência era controversa. Dentre as novidades, ganham destaque os serviços de tecnologia da informação, tais como armazenamento ou hospedagem de dados (item 1.03), e os serviços de streaming, como Netflix e Spotify, que passarão a ser tributados, por exemplo, com base no item 1.09 (disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet).
Afora os aspectos tributários, bastante controvertidos e de difícil operacionalização, a nova norma traz mudanças importantes no âmbito do sistema administrativo sancionador, adicionando um novo tipo de improbidade administrativa à tríade já prevista na Lei Federal nº 8.429/1992, estabelecendo novas espécies de sanção e ampliando a legitimidade ativa para a propositura da respectiva ação judicial. Objetivamente, a Lei Complementar nº 157/2016 foi responsável pela inclusão de três dispositivos na Lei Federal nº 8.429/1992; o artigo 10-A, o inciso IV no artigo 12 e o § 13º no artigo 17.
Antes da edição da Lei Complementar nº 157/2016, a Lei de Improbidade previa três espécies de atos de improbidade administrativa: (i) aqueles que importassem enriquecimento ilícito do agente ou de terceiros (artigo 9º); (ii) que causassem dano ao erário (artigo 10); ou (iii) que atentassem contra os princípios da Administração Pública (artigo 11). O novo diploma trouxe à Lei Federal nº 8.429/1992 um novo tipo de improbidade administrativa, “decorrente de cessão ou aplicação indevida de benefício financeiro tributário”, conforme descrito na Seção II-A e no artigo 10-A do referido diploma:
Seção II-A
Dos Atos de Improbidade Administrativa Decorrentes de Concessão ou Aplicação Indevida de Benefício Financeiro ou Tributário
Art. 10-A. Constitui ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
A nova tipologia do ato de improbidade administrativa veio garantir que a conduta descrita no § 1º do artigo 8º-A da Lei Complementar nº 157/2016 seja objeto de sanção pessoal do Administrador Público que vier a descumprir a regra do percentual mínimo de 2% previsto para o ISS, nos seguintes termos:
Art. 8º-A. A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).
§ 1º O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.
Em outros termos, a legislação estabelece que a alíquota mínima de 2% não pode ser objeto de isenção, incentivo ou benefício tributário, ou qualquer outra via que faça com que o valor a recolher seja menor do que o piso legal. O objetivo é, como já dito, evitar a chamada “guerra fiscal” do ISS, proibindo que os Municípios e Distrito Federal concedam incentivos e benefícios fiscais para atrair investimento para a região.
Em razão da competência tributária, a Lei Complementar nº 157/2016 não tem aplicabilidade imediata sobre a legislação municipal. Significa, em outras palavras, que aqueles Municípios que possuem alíquota inferior aos 2% estabelecidos pela nova norma – ou benefícios que resultem em valor igualmente inferior, nos termos do parágrafo 1º do artigo 8º-A –, devem adequar a sua legislação às novas diretrizes fiscais.
Os Municípios e o Distrito Federal têm até um ano para revogar qualquer benefício fiscal que resulte para o contribuinte o pagamento de alíquota inferior à estabelecida, consoante o artigo 6º da Lei Complementar nº 157/2016. A partir de então, qualquer ação ou omissão em sentido diverso, nos termos do novo art. 10-A da Lei Federal nº 8.429/1992, pode vir a caracterizar ato de improbidade administrativa, desde que demonstrado o elemento subjetivo doloso na conduta do responsável.
Demais disso, ao inaugurar um novo tipo de improbidade administrativa, a Lei Complementar nº 157/2016 incluiu no rol do artigo 12 da Lei Federal nº 8.429/1992, o inciso IV, prevendo penalidades específicas para o descumprimento da norma contida no artigo 10-A do referido diploma:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
[...]
IV - na hipótese prevista no art. 10-A, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos e multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício financeiro ou tributário concedido.
O ponto de maior relevância reside na possibilidade de aplicação da pena de multa civil no patamar de “até 3 (três) vezes o valor do benefício financeiro ou tributário concedido”, que deverá ser calculada sobre o montante total que o Município deixou de arrecadar em razão de algum benefício ou incentivo que tenha implicado na diminuição da alíquota mínima de 2%.
Não bastasse, os §§ 2º e 3º do artigo 8-A Lei Complementar nº 157/2016 concedem ao contribuinte prestador do serviço o direito de ter restituído o valor efetivamente pago a título de ISS ao ente que desrespeitar a alíquota mínima prevista no caput do dispositivo:
§ 2º É nula a lei ou o ato do Município ou do Distrito Federal que não respeite as disposições relativas à alíquota mínima previstas neste artigo no caso de serviço prestado a tomador ou intermediário localizado em Município diverso daquele onde está localizado o prestador do serviço.
§ 3º A nulidade a que se refere o § 2º deste artigo gera, para o prestador do serviço, perante o Município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula.
Significa, noutros termos, que caso um Município ou Distrito insista na guerra fiscal, concedendo benefícios e incentivos que impliquem diminuição da alíquota mínima de modo a atrair prestadores de serviço de outros Municípios, a lei ou ato legislativo serão declarados nulos e os valores que forem efetivamente recolhidos destes prestadores deverão ser restituídos, em prejuízo do ente municipal. Nesse caso, como a redação do inciso IV do artigo 12 da Lei Federal nº 8.429/1992 não prevê o ressarcimento de eventuais prejuízos, é bem possível que o Ministério Público proponha a ação de improbidade também com base na hipótese de dano ao erário.
A terceira novidade introduzida pela Lei Complementar nº 157/2016 foi a inclusão no rol de legitimados ativos para a propositura da ação de improbidade do “ente tributante que figurar no polo ativo da obrigação tributária de que tratam o § 4º do art. 3º e o art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003”, nos termos do recém inserido § 13º do artigo 17 da Lei Federal nº 8.429/1992. Como o artigo 8-A disciplina a alíquota mínima para o ISS, o ente tributante, por disposição constitucional, será o Município ou o Distrito Federal, que passam a ter legitimidade para propor a ação de improbidade contra os agentes públicos que tenham concedido benefícios e/ou incentivos fiscais em desacordo com o disposto na Lei Complementar nº 157/2016.
Por fim, a Lei causa estranheza pelo fato de o novo tipo de improbidade administrativa ser direcionado exclusivamente aos Municípios e Distrito Federal. Interessante é que essa mesma realidade – de benefícios fiscais e Tratamentos Tributários Diferenciados inconstitucionais – é recorrente nos Estados e parece ter sido deixado de lado pelo legislador. Se o vetor axiológico dessa sanção é o fim da guerra fiscal, é curioso que somente a administração pública Municipal esteja sujeita às novas regras de improbidade administrativa pela concessão de incentivos fiscais inconstitucionais.
É evidente que a legislação racionaliza recente decisão do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF 190, que trata especificamente do ISS. Na oportunidade, o Supremo assentou ser "inconstitucional lei municipal que veicule exclusão de valores da base de cálculo do ISSQN fora das hipóteses previstas em lei complementar nacional” e que “é incompatível com o Texto Constitucional medida fiscal que resulte indiretamente na redução da alíquota mínima estabelecida pelo artigo 88 do ADCT, a partir da redução da carga tributária incidente sobre a prestação de serviço na territorialidade do ente tributante".
Sem embargo, como a Lei Complementar nº 157/2016 proíbe apenas a concessão de benefícios e incentivos fiscais que impliquem diretamente na alteração da alíquota mínima do ISS, se os Estados concedem ou mantém um benefício fiscal inconstitucional, diante da especificidade da redação conferida ao artigo 10-A da Lei Federal nº 8.429/1992, não há punição direta ao Administrador Público responsável.
Em outros termos, criou-se uma hipótese de improbidade específica para os responsáveis pela disciplina do ISS nos Municípios. Até se poderia fazer um esforço argumentativo para enquadrar outras situações similares – como é o caso de eventuais benefícios fiscais estaduais ou mesmo municipais, quando não relacionados ao ISS – na hipótese de dano ao erário (artigo 10), mas o fato é que a Lei Federal nº 8.429/1992 não classifica expressamente tal conduta como ímproba.
Sem entrar no mérito da tipificação desta conduta enquanto política pública, a crítica, nesse ponto, é simples: a despeito de o Supremo Tribunal Federal ter assentado ser inconstitucional qualquer benefício fiscal municipal que importe no recolhimento do tributo inferior a 2%, se o Legislador quis sancionar o Administrador Público que fomenta a guerra fiscal editando incentivos inconstitucionais, é estranho que somente um dos entes políticos , no caso os Municípios, esteja sujeito à sanção de improbidade administrativa.
É sabido que o Senado Federal tem estabelecido alíquotas máximas e mínimas para uma série de impostos. A improbidade administrativa inaugurada pela Lei Complementar nº 157/2016, no entanto, restringe-se à desobediência do patamar mínimo previsto para o ISS. Se a “moda pega” e o Legislador Federal resolve inserir um novo tipo de improbidade administrativa para cada imposto – municipal, estadual e federal – cujas alíquotas tenham sido disciplinadas por Lei, então a Lei Federal nº 8.429/1992 acabaria por contar com tantos dispositivos quanto os impostos existentes no sistema tributário brasileiro.
A inovação legislativa, ainda que bem intencionada, parece seguir uma tendência já manifestada pelo Poder Legislativo – e não raro também pelo Poder Judiciário e Ministério Público – de transformar toda e qualquer irregularidade cometida pelos agentes públicos em improbidade administrativa, quando, na verdade, esta categorização deveria ser reservada somente aos casos em que se atuasse com má-fé ou intenção desonesta. Como se a ampliação das hipóteses de improbidade fosse a solução para os problemas políticos do país.