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A Exigência de Programa de Compliance para as Empresas que Contratam com a Administração Pública: o que determinam as leis do Rio de Janeiro e do Distrito Federal

ANO 2018 NUM 399
Fernanda Schramm (SC)
Professora de Direito Público em estágio de docência na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Escola Superior da Advocacia da OAB/SC. Mestranda em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora de Cursos de Aperfeiçoamento pela Internet da Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina (ESA/SC). Secretária-Adjunta da Comissão de Licitações e Contratos da OAB/SC. Membro da Comissão de Compliance da OAB/SC.


21/05/2018 | 7269 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Em meados de outubro de 2017, o governo do estado do Rio de Janeiro publicou a Lei n. 7.753/2017, que autoriza, em linhas gerais, que os Editais de licitação pública passem a exigir a implantação de programas de compliance no âmbito das empresas que celebram contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privada com a Administração Estadual. Os programas poderão ser exigidos nos contratos com prazo mínimo de 180 dias e com valores superiores ao limite estabelecido para as licitações na modalidade concorrência – R$ 1,5 milhões para obras e serviços de engenharia e R$ 650 mil  para compras e serviços. A obrigatoriedade pode ser estendida inclusive às licitações na modalidade pregão eletrônico. 

Recentemente, o governo do Distrito Federal publicou a Lei n. 6.112/2018 tornando igualmente obrigatória a implantação de programas de compliance para os contratos com valor superior a R$ 80 mil e com duração de pelo menos seis meses. Mais abrangente, a lei distrital impõe a obrigação inclusive às licitações na modalidade tomada de preço, que costumam contar com ampla participação de micro e pequenas empresas. Com isso, encerra-se de uma vez por todas a ilusão de que os programas de compliance seriam uma preocupação exclusiva de grandes empresas e multinacionais. 

As inovações legislativas têm sido divulgadas sob um slogan ambíguo, que abre espaço à interpretação de que o programa de compliance passaria a ser exigido como requisito de habilitação nas licitações. Entretanto, diferentemente do que se poderia extrair de uma leitura mais apressada, as leis em comento não exigem que as empresas comprovem a existência de programas de compliance como condição de participação nos certames públicos. Pelo contrário, a exigência de implantação do compliance é elevada à condição de cláusula obrigatória nos contratos firmados com a Administração Pública estadual e distrital, ao prescrever, nos termos do artigo 5º de ambos os diplomas, que o programa deverá ser implantado no prazo de 180 dias corridos a partir da data de celebração do contrato.

De forma direta, as inovações legais não inviabilizam a participação de empresas que não possuam programas de compliance nos procedimentos licitatórios, como tem sido alardeado. Em dimensão mais restrita, os diplomas exigem, no mesmo artigo 5º, que, caso venha a se sagrar vencedora, a empresa implante programas de compliance anticorrupção no prazo de 180 dias após a celebração do contrato. Tais esclarecimentos afastam as previsíveis críticas acerca da ilegalidade ou inconstitucionalidade da inclusão de novos requisitos de habilitação, afora os já elencados na Lei Federal n. 8.666/1993.

O descumprimento da obrigação de implantar o programa de compliance no prazo estipulado enseja, sob a legislação fluminense, a aplicação de multa de 0,02% ao dia, até o limite de 10% sobre o valor do contrato (caput e § 1º do artigo 6º). No caso do Distrito Federal a multa é maior: 0,1% ao dia sobre o valor atualizado do contrato, até o limite de 10% (caput e § 1º do artigo 8º). A legislação distrital estabelece, ainda, que o descumprimento da obrigação implica inscrição da multa em dívida ativa e justa causa para a rescisão contratual (artigo 10). Por fim, o descumprimento acarreta, em ambos os casos, a impossibilidade de contratação da empresa com Administração Pública até que o programa de compliance seja efetivamente implantado.

Não há, aprioristicamente, restrição ao caráter competitivo do certame. Até se poderia argumentar que as empresas que já possuem programa de compliance teriam vantagem competitiva na medida em que não precisariam contemplar na proposta os custos com a implantação de mecanismos de controle interno. O argumento, entretanto, não implica automática restrição à competitividade. Caso contrário, seria vedado ao Edital estabelecer qualquer tipo de exigência mais detalhada acerca da equipe técnica – e de outras tantas especificações da proposta – na medida em que as empresas especializadas no segmento do contrato ou as empresas de maior porte, que já possuíssem em seu quadro de funcionários profissionais com a experiência exigida no instrumento convocatório, não precisariam incluir no preço os custos com a contratação de novos profissionais. A exigência de implantação de programa de compliance, enquanto fração do objeto contratual, não restringe, por si só, o rol de potenciais interessados.

As inovações legislativas escapam igualmente às críticas feitas aos editais de licitação que exigem a apresentação de certificações como requisitos de habilitação – normalmente sem qualquer respaldo legal. O exemplo clássico é o da certificação ISO e suas variantes, majoritariamente censurado pela doutrina e jurisprudência enquanto requisito de habilitação. O entendimento é de que, por depender de declaração de terceiro, o procedimento para a obtenção da referida certificação pode se estender por meses, e até inviabilizar a participação da empresa no certame.

De fato, a prática demonstra que é quase impossível que uma empresa consiga, entre o lapso que intercede a publicação do instrumento e a abertura da licitação, obter certificação emitida por terceiro. Nessa hipótese, apenas as empresas que já possuíssem o referido certificado estariam aptas a participar da licitação, pelo que se poderia cogitar restrição à competitividade.

As ponderações relacionadas à ISO e às demais certificações emitidas por terceiros reverberariam nos mencionados diplomas caso fosse exigida a apresentação de padrões mínimos de qualidade referentes ao programa de compliance. As legislações poderiam, por exemplo, determinar que as empresas comprovassem a existência do selo “Pró-Ética”, iniciativa do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), em parceria com o Instituto Ethos, que avalia a efetividade dos programas de compliance das pessoas jurídicas de direito privado. Nesse caso, como a avaliação do “Pró-Ética”  é anual, as empresas que não detivessem o selo de antemão estariam impossibilitadas de acorrer à disputa, o que tornaria a exigência abusiva e comprometeria a escolha da proposta mais vantajosa, fim precípuo da licitação.

As leis estadual e distrital acertaram ao não exigir qualquer tipo de certificação ou avaliação por parte de terceiro, público ou privado. A obrigação imposta às empresas que contratam com a Administração Pública, em ambos os casos, repita-se, é de que implantem, após a celebração do contrato, um programa de compliance que obedeça aos parâmetros mínimos previstos na legislação.  

A legislação do distrito federal traz uma inovação polêmica. O inciso II do artigo 2º estende a obrigatoriedade aos “contratos em vigor com prazo de duração superior a 12 meses”. Ou seja, a obrigação de implantar um programa de compliance é estendida aos contratos em vigor, o que acarretará reflexos significativos no equilíbrio econômico-financeiro do contrato. A disposição traduz-se em alteração unilateral do contrato fora das hipóteses previstas no artigo 65 da Lei Federal n. 8.666/1993 o que, por si só, já seria questionável. O programa de compliance não é exigido por lei como requisito indispensável ao exercício da atividade empresarial. Portanto, o contratado não deveria ser surpreendido, no curso da execução do contrato, com a imposição de obrigação que impacta sobremaneira o funcionamento da própria pessoa jurídica, sob pena de multa, rescisão contratual e proibição de contratação com a Administração Pública.

De toda sorte, ainda que se considerasse a hipótese de o contratado concordar com a implantação do programa, o que atrairia a incidência da alínea “d” do inciso II do artigo 65, seria preciso calcular os custos com a execução da obrigação de modo a garantir que não ultrapassassem 25% do valor inicial atualizado do contrato, sob pena de ofensa à norma contida no § 2º do mesmo dispositivo. Em todos os casos, é incontroverso que os encargos suportados pelo contratado precisariam ser recompostos pela Administração Pública, privilegiando-se o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

O artigo 11 da lei fluminense e o artigo 13 da lei distrital estabelecem que a implantação do programa será fiscalizada pelo Gestor do Contrato, o que corrobora o entendimento de que a exigência se insere no rol de obrigações contratuais e não se confunde com requisito de habilitação. A avaliação deve levar em consideração a existência dos elementos enumerados nos artigos 4º e 6º, respectivamente. Os dispositivos incluem, dentre outros, (i) a contínua análise de riscos; (ii) o monitoramento do programa e a realização de treinamentos periódicos; (iii) a existência de canais de denúncia; e (iv) a existência de procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões.

Os requisitos reproduzem o teor do artigo 42 do Decreto n. 8.420/2015, que regulamentou a Lei Federal n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e estabeleceu os elementos mínimos exigidos dos programas de compliance. A diferença principal reside na substituição da previsão de política específica para doações a candidatos e partidos políticos, prevista no Decreto, pela realização de ações de promoção da cultura ética e de integridade por meio de palestras, seminários, workshops, debates e eventos da mesma natureza, insculpida no inciso XVI dos artigos 4º e 6º, da legislação fluminense e distrital, respectivamente.

Por fim, é importante rememorar que o inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal estabelece a competência privativa da União para legislar sobre as normas gerais de licitações e contratações públicas, o que restringe a competência dos demais entes federativos à edição de normas específicas. Ainda que o conceito de normas gerais não encontre contornos precisos, a possibilidade de que o Edital preveja a inserção de cláusula contratual impondo a obrigatoriedade de implantação de programa de compliance não esbarra no óbice constitucional. Não há, a partir da novidade legislativa, desnaturação ou violação dos princípios norteadores das licitações públicas, nem, tampouco, incompatibilidade com a disciplina da Lei Federal n. 8.666/1993.

Ao que tudo indica, a exigência insculpida nos novos diplomas tende a ser reproduzida no ordenamento jurídico brasileiro, independentemente do nível federativo. O Decreto n. 9.203, de 22.11.2017, que impôs a obrigatoriedade de implantação de programas de compliance voltados ao combate à corrupção no âmbito interno dos órgãos e entidades da Administração Pública federal evidencia a importância que se tem dado aos mecanismos de controle interno e à necessidade de reforço de valores e padrões éticos nos contratos públicos.

Com efeito, algumas questões permanecem em aberto, sobretudo no que concerne aos instrumentos e mecanismos necessários para evitar os programas de compliance “de aparência”. Ainda nesse sentido, a atribuição da competência para a avaliação do programa à pessoa do gestor do contrato pode abrir espaço a novas formas de corrupção. Na linha do que se verifica hoje, não seria absurdo imaginar que a empresa pudesse oferecer ou o gestor pudesse exigir alguma forma de benefício para “facilitar” a avaliação do programa.

As questões práticas que permeiam a implantação dos programas de compliance e os requisitos mínimos elencados na legislação não se encontram bem delineadas no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente diante das particularidades que envolvem os diversos segmentos de mercado e a realidade de cada organização. As empresas, seguindo as orientações emanadas em caráter eminentemente explicativo, sobretudo pela CGU, acabam tateando em busca de respostas que se amoldem às expectativas dos órgãos de controle. A avaliação fica, nesse cenário, sujeita a todo o tipo de arbitrariedades e subjetivismos. 

Além disso, é preciso refletir se 180 dias é tempo suficiente para que o programa de compliance seja implantado e produza resultados satisfatórios, sob pena de tornar inócua a previsão contida no artigo 5º de ambos os diplomas – estadual e distrital – e distorcer a exigência legal, que poderia, sob essa perspectiva, ser considerada pré-requisito para a participação em procedimentos licitatórios. A pressa pode desviar a preocupação das empresas para a aparência do programa e não para os seus resultados. Em outras palavras: pouco importa que o programa funcione em 180 dias, mas é preciso parecer que funciona.

Ainda nesse sentido, não se pode desconsiderar a possibilidade de que os custos com a implantação dos programas de compliance, suportados pela empresa nos termos do § 2º do artigo 5º da Lei n. 7.753/2017 e do parágrafo único do artigo 5º da Lei n. 6.112/2018, possam vir a ser repassados à Administração Pública no valor final da proposta. Ao fim e ao cabo, é possível que o Poder Público venha a pagar mais caro para que as empresas implantem programas de compliance.

Sob essa premissa, é importante ponderar se os ansiados benefícios do programa – no combate à corrupção, sob a perspectiva dos prejuízos que dela decorrem e do fomento à moralidade – fazem frente aos gastos que serão suportados pela Administração Pública em razão do aumento do valor dos contratos. Em outras palavras, é preciso avaliar se o programa de compliance resulta, efetivamente, no incremento à integridade e na redução da corrupção nos contratos públicos e, nesse caso, se é interessante que a sua exigência seja tratada como um tema de política pública a ponto de tornar-se obrigatória, por expressa previsão legislativa, nas contratações públicas.

Longe de restringir-se a críticas ou de traduzir uma visão negativista sobre as inovações legislativas, pretende-se apenas chamar a atenção para a necessidade de amadurecimento do tema, sob pena de prejuízo à segurança jurídica – já tão comprometida – das empresas que contratam com a Administração Pública, especialmente diante dos custos que envolvem a implantação de programas de compliance e dos efeitos perniciosos da ampla discricionariedade conferida aos agentes públicos na falta de parâmetros objetivos de controle.



Por Fernanda Schramm (SC)

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