Felipe Derbli (RJ)
O enfrentamento da pandemia da COVID-19, como se sabe, exigiu dos órgãos públicos, nas três esferas de poder, toda uma série de contratações, majoritariamente em caráter emergencial, de serviços e aquisição de insumos e equipamentos, sobretudo hospitalares. Já não surpreende que tenham começado a surgir, em todo o país, acusações de superfaturamento de preços, contratações de empresas de fachada, falhas ou atrasos significativos na entrega das compras, inclusive das efetuadas com pagamento antecipado, ou fornecimento de bens de qualidade inferior ao especificado nos contratos. A questão é que as situações de calamidade pública apenas potencializam um problema que, na verdade, faz parte do cotidiano das contratações públicas.
Como evitar que tais ilegalidades continuem a ocorrer? A solução mais aventada pelos juristas, normalmente, é a reforma da legislação de licitações e contratos administrativos, que caminha a passos lentos no Congresso Naciona [1]. Embora haja consenso nessa exigência, parece-me que ainda não é o bastante para assegurar a economicidade e a eficiência das contratações. É necessário – e, a meu ver, igualmente urgente – modernizar o sistema ordinário de pagamentos dos entes público [2] alterando-se as disposições da Lei nº 4.320/64 que cuidam da matéria.
O procedimento de realização de despesas públicas, disciplinado pelos arts. 58 a 70 da Lei Federal nº 4.320/64, se divide em três etapas indispensáveis: empenho, liquidação e a ordem de pagamento. No empenho, procede-se à reserva no orçamento do valor devido, emitindo-se a “nota de empenho”. A fase de liquidação, por sua vez, é aquela em que a Administração Pública faz a análise dos documentos (o contrato, a nota de empenho, atestados de recebimento etc.), verificando o direito do credor ao recebimento do valor exigido. Finalmente, a despesa é realizada quando a autoridade competente exara o despacho de ordem de pagamento e, então, efetua-se a transferência em favor do contratado [3]
O que parece um rito simples e objetivo se transforma, na prática, num procedimento altamente burocrático para o contratado, que deve estar preparado para aguardar semanas ou até meses, conforme a situação financeira do ente público contratante, para receber o que lhe é devido. Em casos mais dramáticos, a espera pode se estender ainda mais, empurrando o credor para o pesadelo dos restos a pagar (no caso de despesas empenhadas antes do fim do exercício financeiro, conforme o art. 36 da Lei nº 4.320/64) ou, pior ainda, para um requerimento administrativo de reconhecimento de dívida (art. 37), na fé de que haverá dotação orçamentária para o pagamento e de que todo o circuito empenho-liquidação-ordem será percorrido antes do fim de um novo exercício. O resultado, claro, é a judicialização da cobrança – e nova espera pelo trânsito em julgado e, enfim, pelo pagamento do precatório ou da requisição de pequeno valor.
Embora haja instrumentos específicos de garantia para determinados contratos administrativos, como, por exemplo, o fundo garantidor das parcerias público-privadas (art. 16 da Lei Federal nº 11.079/2004), essa não é a realidade da maior parte das contratações com entidades de direito público, nem tampouco dos contratos celebrados em caráter emergencial. Portanto, o prestador de serviços ou fornecedor de bens à Administração Pública, em geral, se submete a grande risco de crédito.
É quase intuitivo imaginar que não é qualquer empresário que suportará submeter-se a tamanha provação, quando é muito mais fácil oferecer seus bens ou serviços a um contratante particular (que, pode, eventualmente, fazer o pagamento instantaneamente com dois cliques no telefone celular). Logo, só estarão aptos a contratar com o ente público aqueles que aceitam “receber por empenho”. Em outras palavras, a tendência é de haver menos licitantes do que o número de potenciais interessados, prejudicando-se a capacidade de reprodução, dentro do ambiente licitatório (ou na pesquisa de mercado que antecede uma contratação direta), da dinâmica real da competição de mercado. Restringindo-se tal competição, reduzem-se as chances de obtenção de um preço menor. Quem trabalha com compras no serviço público terá pelo menos um relato anedótico de aquisição de algum equipamento por um preço significativamente maior que o praticado nas lojas de varejo do outro lado da rua.
A outra consequência possível, também decorrente da restrição da competição, é a qualidade inferior dos produtos adquiridos pelos entes públicos. É um círculo vicioso: são relativamente poucos os que se sujeitam aos ritos das compras públicas, mas a Administração Pública precisa contratar. Cria-se um nicho de empresas supostamente “especializadas” em atender ao Poder Público, que, no entanto, tem limites para elevar a exigência qualitativa das suas aquisições, sob pena de as licitações restarem desertas. Resultado: o Poder Público paga caro e compra mal, adquirindo produtos que o mercado privado não aceita ou, quando muito, adquire por preços inferiores. Novamente no campo do anedotário do serviço público, é usual o exemplo de fornecimento de café de péssima qualidade, de marcas desconhecidas, quando adquirido por meio de pregão eletrônico – que, como se sabe, tem um rito de prazos muito curtos. [4] A solução, nesses casos, é a cotização pessoal dos servidores (a boa e velha “vaquinha”), que, naturalmente, não funciona para questões menos triviais e aquisições verdadeiramente relevantes.
Como se nota, sequer é necessário haver corrupção, cartelização ou outra ilegalidade para que as compras públicas sejam ineficientes. A normalidade legal já pune a Administração Pública, na medida em que o regime de pagamento das despesas públicas, por si só, já cria encargos que impactam no preço e na qualidade dos bens e serviços contratados. Por mais regulares que tenham sido a licitação ou os atos preparatórios da contratação direta, a Administração Pública precisa vencer todas as etapas de um procedimento altamente burocratizado e longo para concluir seus pagamentos. Tempo é dinheiro: pagamentos mais demorados custam mais.
E como solucionar a questão? Como tornar os pagamentos da Administração Pública mais ágeis sem comprometimento do controle da sua regularidade – que, afinal, é a razão de ser do procedimento disciplinado na Lei nº 4.320/64? A solução me parece passar, obrigatoriamente, pelo uso da tecnologia. A prática do mercado demonstra, há anos, que é possível adotar ferramentas tecnológicas de pagamentos que permitam, ao mesmo tempo, tempestividade, controle da legalidade e atribuição de limites de alçada, com as consequentes responsabilidades, aos agentes envolvidos.
Já existem várias alternativas disponíveis de sistemas integrados de gestão empresarial (ERP – Enterprise Resource Planning), que permitem aos particulares o gerenciamento de suas contas e compras, com automação e armazenamento de informações. Sistemas de ERP permitem a qualquer empresa compatibilizar os pagamentos com o seu orçamento, definir distintos níveis de acesso e, a posteriori, rastrear falhas e identificar todos os participantes de uma cadeia de atos. Não parece haver razão para que a Administração Pública não utilize ferramenta similar, adaptada às suas peculiaridades.
Por outro lado, a Administração Pública também precisa se adaptar aos novos tempos. Isso é muito mais do que a digitalização do procedimento e não se limita a simplesmente acabar com processos físicos ou o uso de papel na Administração Pública. É necessário modificar a legislação de regência. Até lá, teremos apenas soluções incompletas ou ineficazes. Por exemplo, o Banco Central do Brasil prepara para novembro de 2020 o lançamento do Sistema de Pagamentos Instantâneos (PIX) e já prevê a sua utilização, em algum momento no futuro, para as transações G2B (government to business), com agilidade e segurança. [5] É difícil imaginar que o seu uso pela Administração Pública ofereça algum ganho relevante enquanto todo o procedimento que o anteceder continuar o mesmo.
É fundamental, portanto, que a lei acompanhe a evolução tecnológica. A disciplina legal da realização das despesas públicas, inalterada há mais de quarenta anos, requer urgente modernização, que, penso, pode tornar as contratações da Administração Pública mais atrativas a outros players de mercado, aumentando a competição e permitindo o acesso a maior variedade de bens e serviços, com qualidade e preços mais próximos à realidade de mercado. Por mais importante que seja uma ampla revisão da legislação de licitações e contratos administrativos, o regime de pagamentos da Administração Pública é também um dos custos de transação [6] que precisa ser reduzido, adequando-se à contemporaneidade.
Notas
[1] O PLS 559/2013, originado no Senado Federal, teve seu texto final aprovado na Casa em 13.12.2016. Remetido à Câmara dos Deputados, foi autuado como PL 6.814/2017 e foi apensado ao PL 1.292/1995. O texto definitivo do substitutivo do projeto de lei foi aprovado pela Câmara em setembro de 2019 e remetido, em retorno, ao Senado em 10.10.2019.
[2] Arbitrou-se aqui a denominação de pagamentos ordinários para tratar dos pagamentos feitos conforme o rito previsto nos arts. 58 a 70 da Lei Federal nº 4.320/64, destinados à remuneração da aquisição de bens e da contratação de serviços. Excluem-se, portanto, aqueles realizados em cumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado, que, segundo o art. 100 e parágrafos da Constituição da República, submetem-se, conforme o valor, aos regimes de precatório judicial ou de requisição de pequeno valor (RPV). Os precatórios e as RPVs também apresentam sérios problemas, cujo debate, no entanto, fugiria ao propósito deste artigo.
[3] Cf. ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 184-185; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 196-197.
[4] Previstos na Lei nº 10.520, de 17.07.2002.
[5] V. https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pagamentosinstantaneos. Consulta em 24.05.2020.
[6] Sobre o tema dos custos de transação, v., por exemplo, COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Trad. Luis Marcos Sander, Fernando Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010, esp. p. 105-109.