Eurico Bitencourt Neto (MG)
O dia 05 de novembro de 2015 ficará marcado na memória dos cidadãos do município de Mariana, a primeira capital de Minas Gerais, e na história das grandes tragédias ambientais no Brasil e no mundo. O rompimento de barragem da mineradora Samarco fez com que cerca de sessenta bilhões de litros de rejeitos de mineração de ferro varressem do mapa o distrito de Bento Rodrigues, originário do século XVII, além de diversas outras localidades, e fossem despejados ao longo de mais de 500 km da bacia do Rio Doce, até a sua foz, no litoral do Espírito Santo.
Estima-se em várias décadas a reversão dos imensos prejuízos ambientais, neste momento ainda não calculados. Para além deles, perderam-se vidas humanas, meios de sustento, bens de valor histórico e o ambiente que mantinha os traços da identidade cultural das comunidades sobreviventes, expulsas pela lama que deixou abertas várias feridas no coração das Minas Gerais e do Espírito
Santo.
Ainda no calor das perdas e da tensão pela possibilidade de rompimento de outras barragens de rejeitos mantidas pela Samarco, várias lições precisam ser recolhidas e assimiladas. Uma delas, talvez menos evidente, mas que nos interessa de perto nesta oportunidade, diz respeito ao esgotamento de um modelo de Administração Pública e, por consequência, de Direito Administrativo, ainda herdeiro da estrutura centralizada, piramidal, fortemente hierarquizada e formalista que marcou o século XIX, para lidar com muitos dos desafios que o século XXI nos apresenta.
A Administração Pública novecentista lidava, basicamente, com um reduzido campo de atuação administrativa do Estado: a intervenção pontual em atividades privadas que ameaçassem a liberdade individual e a propriedade privada. A partir da segunda metade do século XX, consolidou-se uma Administração prestadora de serviços e economicamente ativa. Já os primeiros anos do século XXI mostram uma Administração Pública com múltiplos, díspares e complexas tarefas. Para além da clássica atividade de polícia, da garantia da prestação de serviços públicos, das distintas formas de intervenção no mercado, da atividade sancionatória e da gestão de bens e serviços instrumentais, depara-se com a necessidade de regular atividades privadas de grande complexidade e potencial de interferência em largos campos de interesse dos cidadãos.
Neste último setor, situa-se a intrincada questão ambiental. Sem tratar aqui especificamente das normas estruturantes do Direito do Ambiente, cabe referir, para demonstrar uma das faces mais visíveis dos novos desafios da Administração Pública e do Direito Administrativo, a atividade administrativa de regulação ambiental, tomada a expressão em um sentido mais amplo. Nesse sentido, a avaliação dos riscos que o impacto de atividades econômicas – como a extração de minério – oferece ao ambiente, à segurança, à economia, à saúde e à vida das pessoas é tarefa típica da atividade regulatória que cabe à Administração Pública contemporânea, englobando desde o licenciamento da atividade, passando pelo controle do cumprimento de condicionantes e de um determinado modo de operação, até a apuração de danos e a aplicação de sanções proporcionais. Tudo isso lidando com o entrecruzamento de distintos e concorrentes interesses públicos e privados.
Tal tarefa reveste-se de traços especiais que caracterizam esta nova Administração: a) permeia distintas áreas de conhecimento e de atuação estatal, sendo, portanto, transversal à estrutura administrativa; b) requer um complexo de informações técnicas indispensáveis à atuação administrativa; c) não se manifesta por típicas relações bilaterais da Administração com particulares, mas, em geral, é veiculada por relações jurídicas administrativas multilaterais; d) para além das diversas relações jurídicas imediatas que dela decorrem, é também atividade de macroconformação social; e) necessita se manifestar por meio de procedimentos administrativos institucionalizados, que assegurem adequada participação dialógica e instrumentos para concretizar uma atuação imparcial, isto é, que possa levar em conta todas as informações relevantes para a decisão e, por conseguinte, descartar as irrelevantes.
Não obstante, a estrutura administrativa responsável pelo cumprimento de tais tarefas reflete, em geral, a típica organização piramidal. No âmbito da Administração direta, há, por exemplo, no nível federal, o Ministério do Meio Ambiente, que tutela o interesse público ambiental em regime de permanente competição com os demais interesses públicos setoriais a cargo dos demais ministérios. Além disso, atividades específicas, como a extração de minério, têm parcelas de sua execução sujeitas a autarquias federais, como é o caso do Departamento Nacional de Produção Mineral, com estrutura arcaica e atuação baseada em análise documental, reproduzindo a antiga tradição formalista de nossa Administração.
Para além de manter a estrutura administrativa tradicional para operar uma atividade de grande complexidade, a Administração brasileira atua por meio de procedimentos pouco flexíveis e que conduzem a uma larga faixa de atuações informais, isto é, à margem dos meios juridicamente institucionalizados. Basta citar como exemplo genérico, a Lei Federal de Processo Administrativo que, a par de ter significado grande avanço na regulação da atuação administrativa, expressa, de modo geral, a expressão de uma Administração adversativa ou sancionatória – apenas um dos meios de manifestação administrativa – não oferecendo instrumentos para uma Administração flexível, dialógica e concertada, indispensáveis para os campos mais complexos de sua manifestação.
Assim é que a Lei Federal regula uma atuação por atos administrativos tradicionais, não prevê modos de atuação administrativa concertada e simplificada, como, por exemplo, conferências procedimentais ou outros meios de coordenação de redes administrativas, que certamente seriam instrumentos mais úteis para a apreciação conjunta de interesses públicos transversais à estrutura administrativa.
Tal panorama também pode ser reconhecido em procedimentos especiais, como aqueles da Administração ambiental. Se, por um lado, estabelecem meios de participação dos interessados e de instituições representativas da sociedade, são muitas vezes formalistas, preocupam-se pouco com os resultados, além de serem em geral setorizados, não envolvendo fases comuns de atuação, por exemplo, de órgãos administrativos curadores do interesse público do desenvolvimento econômico, da proteção ambiental e da tutela de interesses históricos e culturais.
Em síntese, é preciso repensar a Administração Pública brasileira e o respectivo instrumental de Direito Administrativo em atividades complexas como é o caso daquelas que envolvem a tutela do ambiente. E isso em duas dimensões principais: a) a orgânica da Administração, privilegiando estruturas em rede, coordenadas, que perpassem os diversos campos setoriais estanques nos âmbitos de ministérios ou secretarias e suas derivações autárquicas, para que a regulação ambiental possa ter na devida conta a transversalidade que a caracteriza; b) a dinâmica da Administração, instituindo procedimentos abertos, flexíveis, que criem campos de atuação administrativa concertada e célere, explicitando com maior transparência os fundamentos das decisões administrativas e com maior precisão as responsabilidades dos agentes públicos e privados envolvidos.
A necessidade de ter em conta múltiplos interesses públicos e privados, muitas vezes conflitantes, em decisões complexas e com repercussões gerais, como é o caso da regulação ambiental, impõe criatividade ao administrador público, para recriar as formas de organização administrativa, bem como abertura ao administrativista, para deixar de lado velhos dogmas, como, por exemplo, concepções cristalizadas da hierarquia e da unilateralidade da atuação administrativa.
A tragédia de Mariana, se traz à tona questões éticas, políticas e culturais, que nos obrigam a refletir sobre qual o valor da sustentabilidade ambiental no nosso modelo de desenvolvimento e quais os limites para as relações entre o poder econômico e o poder político, também nos deve levar a discutir os modos pelos quais a Administração Pública se organiza e atua para regular atividades complexas. Talvez seja uma boa oportunidade para superar velhos modelos organizatórios e para instituir novos modos de inter-relação entre entes públicos e privados, mais compatíveis com os novos desafios que este início de século nos tem apresentado.