Eurico Bitencourt Neto (MG)
Há algumas semanas publiquei, nesta mesma seção, texto intitulado “A tragédia de Mariana e a nova Administração Pública”, em que abordei as insuficiências da organização e do procedimento da Administração brasileira contemporânea para regular atividades complexas, como as que decorrem da questão ambiental. Naquela oportunidade, ficou assentado que as características dos novos modos de atuar da Administração do século XXI impõem um novo instrumental, seja na dimensão da orgânica administrativa, privilegiando estruturas em rede, seja na dinâmica administrativa, instituindo procedimentos abertos e flexíveis. Este último aspecto, o procedimento típico da nova Administração Pública, constitui o objeto desta coluna.
A expressão utilizada para designar o procedimento que expressa as novas faces da Administração contemporânea – procedimento administrativo de terceira geração – decorre da análise de Javier Barnes sobre a evolução do procedimento administrativo, feita em excelente texto tratando de “Algunas respostas del derecho administrativo contemporáneo ante las nuevas formas de regulación: fuentes, alianzas con el derecho privado, procedimientos de tercera generación” (in: BARNES, Javier (Ed.). Innovación y reforma en el derecho administrativo. 2. ed. Sevilha: Editorial Derecho Global, 2012. p. 251-377).
A primeira geração do procedimento administrativo corresponde ao modelo de Administração meramente aplicadora do Direito, imperativa, que se manifesta por atos administrativos unilaterais e individuais. Tal procedimento cumpre função adjetiva, acessória e subordinada ao Direito material, constituindo um processo decisório que, muitas vezes, se estrutura conforme uma visão processualista, à imagem e semelhança do processo judicial. Tendo em conta as leis gerais de procedimento brasileiras, tomando-se como modelo principal a Lei federal nº 9.784/1999, nelas se podem identificar tais características gerais, incluída a feição processual, materializada pela própria denominação que adotam – processo administrativo – e pela espinha dorsal construída a partir de uma disciplina de típicas figuras processuais, como a legitimidade, a competência, as causas de impedimento e suspeição, a forma, o tempo e lugar dos atos, sua comunicação, a instrução processual, os requisitos da decisão, os recursos e, em geral, com a estruturação de um processo decisório, em função da edição de atos administrativos unilaterais.
Assim é que se é inegável que tal modelo procedimental constituiu um avanço garantístico para os cidadãos e ainda tem relevância no Direto Administrativo contemporâneo, já que a Administração unilateral, que atua por atos administrativos individualizados, permanece necessária, também é verdade que tal modo de atuar não é suficiente para dar respostas a diversos desafios da Administração do século XXI. Por consequência, uma lei procedimental que se pretenda geral não se pode resumir como expressão do procedimento administrativo de primeira geração.
O procedimento administrativo de segunda geração se consolida a partir de meados do século XX, tendo como objeto a produção normativa infralegal, seja a elaboração de regulamentos administrativos, seja a feitura de outras espécies de normas administrativas, algumas de natureza polêmica, como as normas produzidas pelas agências reguladoras e outras autoridades administrativas independentes. Por não se identificarem com a regulação de um processo decisório próprio da atuação por atos administrativos concretos, tais procedimentos justificam uma categoria apartada, que, também cronologicamente, não correspondem ao afirmar dos procedimentos de primeira geração. Não obstante, também revelam uma Administração hierarquizada e impositiva, embora se possa dizer que tais procedimentos não tenham alcançado a importância daqueles de primeira geração, ao menos na realidade administrativa.
Já os chamados procedimentos administrativos de terceira geração expressam as transformações por que passa a Administração Pública de nosso tempo, vale dizer, se estruturam em função dos novos modos de atuar que, se não substituíram os precedentes, têm crescido em importância dentro do largo espectro de tarefas da nova Administração. Tal geração procedimental está fundada na paulatina substituição, em largos campos, de formas de atuação unilateral, de aplicação impositiva da lei, por modos de atuação compartilhada e concertada, instrumentos de governança administrativa.
Daí que as características centrais da nova Administração Pública: o seu caráter infraestrutural, multipolar, sua organização em redes, sua contratualização, sua vinculação à eficiência e sua transversalidade impõem uma alteração qualitativa do fenômeno procedimental. Essa alteração se manifesta pela nova geração do procedimento, marcada pelo caráter flexível, aberto, não necessariamente linear, regulando todo o ciclo das políticas públicas, envolvendo uma pluralidade de sujeitos públicos e privados, não funcionalizado a uma decisão final. Tal espécie procedimental não se constitui numa simples sucessão de atos preparatória de uma decisão administrativa final, mas em instrumento para buscar soluções concretas para questões complexas, nos quadros de uma legalidade mais ampla e mais imprecisa.
Como tal, o procedimento administrativo da nova Administração Pública tem como função balizar a atuação administrativa em situações de incerteza, de risco, de complexidade, em que a lei não tem como oferecer à Administração soluções predefinidas. Trata-se de procedimento de direção, de indirizzo, prederminando requisitos e balizas para atuações administrativas, numa regulação mais aberta e flexível, porque não pressupõe que a atividade administrativa se resuma à uma mecânica aplicação do Direito material. Como consequência, a par da valorização de uma função administrativa conectada às novas necessidades do interesse público, tal vertente procedimental abre largo espaço à participação privada, não resumida a interessados passivos, mas elevada, em muitos casos, à co-responsabilidade na gestão do procedimento.
Nesse sentido, o procedimento não apenas se abre à participação privada, sujeitando-se ao escrutínio dos interessados e do público em geral, como também, em alguns casos, como o de atividades de risco, transfere ao particular determinados deveres, como o de informação e transparência na tomada de decisões que possam afetar o público, como é o caso da regulação ambiental e de atividades econômicas de risco em geral. Não se trata de uma privatização do procedimento, mas o reconhecimento da existência de um entrecruzamento de interesses públicos e privados, produzindo um duplo efeito: a) por um lado, a abertura da gestão de fases do procedimento administrativo, antes monopólio da Administração, a um protagonismo compartilhado com particulares; b) por outro lado, a sujeição de atividades privadas, de interesse público, à incidência de determinados deveres procedimentais, como a obrigação de informar e assegurar transparência.
Para além disso, tal perfil procedimental se mostra mais ajustado às crescentes zonas transversais de atuação de distintos órgãos administrativos, em que a típica estrutura piramidal é substituída por redes ou por estruturas horizontais. Nesse quadro, ao procedimento cabe criar instrumentos de decisões compartilhadas ou concertadas, substituindo os canais tradicionais de captação de informação e de decisão hierárquica. Trata-se de considerar adequadamente a imbricação de distintos e muitas vezes conflitantes interesses a cargo de diferentes órgãos e entes públicos que devem ser levados em conta nas decisões administrativas complexas. Cresce a relevância da atuação interna da Administração que, agora informada por um imperativo de eficiência, abre largo campo de regulação para esse novo perfil do procedimento administrativo.
Em suma, o que importa reter, nesta apertada síntese, é que muitos dos novos traços que se podem identificar na nova Administração Pública, isto é, nos novos modos de atuar da Administração deste início de século, impõem uma nova regulação procedimental, mais adequada às suas necessidades. O procedimento administrativo de terceira geração parte da constatação de que a Administração contemporânea, para o cumprimento de muitas de suas tarefas, não deve agir como mera executora de normas jurídicas, não se trata mais de “aplicar a lei de ofício”, mas de conduzir processos complexos de decisão e atuação, em situações em que lhe caberá, mais que dizer o Direito no caso concreto, dirigir procedimentos públicos de balanceamento de múltiplos e contrastantes interesses. Nesse sentido, o procedimento deve oferecer balizas e parâmetros de atuação e decisão, mais que soluções predefinidas para cada circunstância.
Daí que as leis gerais de procedimento devem espelhar sua nova face, não se limitando a disciplinar processos, no sentido de relações bilaterais, muitas vezes adversativas, tendentes à produção de um ato administrativo unilateral. Tais leis devem estabelecer um espectro mais amplo de regulação procedimental, que, se por um lado oferece instrumentos de simplificação, concertação e de atuação flexível, valorizando as virtualidades da função administrativa, por outro reduz o campo da atuação administrativa informal, na medida em que procedimentos estritos não têm o condão de afastar a complexidade da realidade, nem tampouco de impedir uma atuação administrativa necessária, mesmo à margem da regulação procedimental.
O procedimento administrativo não se resume a um meio de garantir direitos e interesses dos particulares ou um modo de controle da atuação administrativa. Assim é que seu fundamento constitucional geral não é o princípio do devido processo legal, decorrente do due process of law de origem norte-americana. Sua fonte maior está no enunciado constitucional do Estado Democrático de Direito, que indica, com mais amplitude, toda a sua abrangência sobre o exercício da função administrativa. É assim que sua regulação infraconstitucional deve pressupor as múltiplas finalidades da Administração Pública do século XXI.