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O inconstitucional "distritão" e a vanguarda do retrocesso

ANO 2017 NUM 370
Eneida Desiree Salgado (PR)
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Constitucional e Eleitoral da UFPR.


18/08/2017 | 5998 pessoas já leram esta coluna. | 10 usuário(s) ON-line nesta página

As instituições estão funcionando normalmente, ao menos desde uma visão histórica. Historicamente há um déficit de legitimidade nas instituições brasileiras e é possível afirmar que temos hiatos democráticos, antes que hiatos autoritários. Normalmente estamos discutindo reforma política, levando adiante a crença que uma alteração no sistema normativo corrige distorções causadas muito mais por uma mentalidade avessa ao respeito às regras e à alternância no poder do que por falhas legais.

Nos anos ímpares (e até nos pares) é comum termos leis que alteram as condições da competição eleitoral. Era assim antes da Constituição de 1988, com fraudes normativas perpetradas pelo regime ditatorial a fim de impedir o crescimento eleitoral da oposição, foi assim logo depois da redemocratização e a coisa não mudou de figura mesmo com a promulgação da assim denominada “Lei das Eleições” em 1997. Entre as eleições municipais de 2012 e 2016, apenas como exemplo, 365 dispositivos foram reformados, por cinco leis diferentes: 39 alterações no Código Eleitoral, 88 na Lei dos Partidos e a Lei das Eleições sofreu 238 modificações.

Agora, a salvação da lavoura vem outra vez com as vestes de uma reforma política. Desta vez mais ousada: alterando a Constituição e mudando drasticamente a forma de financiamento de campanha (já desfigurada por decisão judicial em um controle de constitucionalidade de um ativismo desmedido, aparentemente arrependido) e o sistema de eleição de deputados e vereadores.

Ressuscitou-se a proposta de emenda à Constituição nº 77 de 2003, do Deputado Marcelo Castro, que propõe acabar com a reeleição para a chefia do Poder Executivo, mandatos de dez anos para o Senado e cinco anos para os demais cargos e a unificação das eleições. Em sua tramitação, três emendas são apresentadas à Comissão Especial em maio: para alterar a redação do §5º do artigo 14 da Constituição; para a adoção do sistema majoritário “distritão”; e para antecipar as eleições de 2018 e fazer coincidir as eleições.

Em seu relatório, o deputado Vicente Cândido afirma que “manter o atual sistema eleitoral em funcionamento deixou de ser uma opção. Não mudar as regras que atualmente regem a política é mais do que flertar com o abismo, é permitir que o caos se instale e se perpetue. Não se trata mais de nos engajarmos na busca de um modelo ideal. Tampouco se trata de se buscar, com a reforma política, a solução para todas as mazelas pátrias, de transformá-la numa panaceia. Trata-se, sim, de reestruturar o sistema de forma que ele possa ter sustentabilidade, de forma a promover o resgate da confiança dos brasileiros em suas instituições democráticas. O país passa por um momento de reorganização e dificilmente se reorganizará com a política desorganizada”. E apresenta um substitutivo, que altera drasticamente o sistema eleitoral, o financiamento da política, mandato para magistrados de tribunais superiores, o fim da figura do vice no Poder Executivo, mas mantém a possibilidade de reeleição.

O substitutivo aprovado tem muitos problemas de concepção e desenho institucional, de oportunidade e de conformidade com as demais normas eleitorais. Também parece (esperamos!) que terá dificuldades para ser aprovado em dois turnos por maioria de 3/5 dos votos em casa parlamentar antes do dia 5 de setembro, para respeitar a anterioridade estabelecida pelo artigo 16 da Constituição. Vale nos debruçarmos, no entanto, sobre o sistema eleitoral proposto, pois há notícias de um consenso para sua aprovação.

Pretende-se a adoção do sistema majoritário puro, sem divisão dos Estados em distritos, nas eleições de 2018 e 2020. Assim, exatamente no período de mais descrédito do Parlamento brasileiro nos últimos tempos, querem que Deputados sejam eleitos como os Senadores. Apenas quatro países adotam essa “solução”: Afeganistão, Jordânia, Vaniatu e Pitcairn. Isso mesmo. Esses quatro países. O sistema proporcional, modelo brasileiro atual, conta com a adesão de 81 países, entre eles os países escandinavos.

Então podemos imaginar duas possibilidades: ou os políticos dos quatro países que adotam o distritão são visionários incompreendidos pelo resto do mundo e tem melhorado a democracia em suas sociedades (e a gente não sabe), ou o Brasil, na vanguarda do retrocesso, está perto de pegar um caminho que irá piorar a qualidade da sua já sofrida democracia. Aliás, a tendência mundial parece acenar para uma crescente “proporcionalização” dos sistemas, e, inclusive, com países que adotam o modelo proporcional de listas fechadas pensando em abrir suas listas, para permitir um incremento na competição eleitoral.

Além disso – e, em um Estado de Direito Constitucional, o argumento mais importante – o sistema majoritário contraria os princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral Brasileiro. Como já afirmamos em pesquisa de fundo sobre o modelo brasileiro e seus princípios, o sistema distrital é inconstitucional, por incompatibilidade aos princípios da autenticidade eleitoral e da necessária participação das minorias nas instituições públicas. Sustentamos que o sistema proporcional para a formação dos parlamentos (com exceção do Senado) é marca essencial do desenho constituinte da democracia brasileira e não pode ser afastada pelos poderes constituídos, nem mesmo por reforma à Constituição, pois faz parte do núcleo do sistema político.

Desde 1909, León Duguit afirma que o modelo de eleição por maiorias é “um instrumento de desmoralização e corrupção universais”. De fato, a alegada aproximação entre eleitor e representante nada mais faz, como afirma Hauriou, que transformar o eleitor em vassalo e cliente. Mas há ainda a questão do desaparecimento da representação das minorias. Apenas os vencedores – capazes de conquistar votos em toda a circunscrição estadual, ainda que boa parte dos votos sejam desprezados pois pulverizados em dezenas de outros candidatos ou superem os necessários para sua eleição – determinarão o conteúdo das leis e das políticas, com o fim do espaço institucional para o pluralismo político, fundamento da República. Não haverá espaço no Parlamento para o dissenso, que acabará se manifestando de outras maneiras.

A escolha do sistema eleitoral é uma das decisões fundamentais do desenho constitucional de um Estado. É estabelecida em um momento constituinte, de construção de um pacto político. No caso brasileiro, as Constituições democráticas adotaram o sistema proporcional, depois de experiências majoritárias no Império (com oposição de Francisco Belisário Soares de Souza, que em obra de 1872 afirmava ser “da índole do sistema parlamentar que todas as opiniões venham apresentar suas armas na arena, da qual saem as leis e o governo da sociedade”) e na Primeira República e de tentativas de adoção do sistema distrital na ditadura militar. Assim também o fez a Constituição brasileira atual: elegeu como prioridade a representação plural e a institucionalização da oposição, garantindo que a maioria dos votos proferidos se convertam em representação, como determina a Constituição em seus valores fundamentais e em seus princípios estruturantes.

Basta de rupturas constitucionais em nome de uma pretensa governabilidade! As alterações normativas contrárias à Constituição em nome da moralidade já demonstraram seus efeitos deletérios com o “Congresso Ficha Limpa” que constrangem a sociedade brasileira com suas votações e pronunciamentos. Há que se reconhecer que uma reforma da política não virá por reformas do sistema eleitoral, mas sim por mudanças na cultura política. Rasgar a Constituição não fortalece o sentimento constitucional e não promove a democracia e o respeito às instituições. Há que se resistir aos encantos dos cantos dos abutres em pele de sereia.



Por Eneida Desiree Salgado (PR)

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