Eneida Desiree Salgado (PR)
"Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil” diz o Hino da Independência, escrito em 1822 para comemorar a proclamação de independência. Em 7 de setembro de 2019, 197 anos depois, o horizonte da liberdade parece cada vez mais distante do Brasil. Em 250 dias sob um governo eleito, o Estado de Direito tem sofrido ataques cotidianos, com o desmonte de conselhos, a corrosão das instituições, o desrespeito às estruturas e autoridades. Mas para o dia da Independência, para a festa pátria, haveria de ter uma afronta das mais escandalosas.
Os livros e a liberdade novamente são o alvo. A história se repete e, como de regra no Brasil atual, com uma infeliz participação do Poder Judiciário. O nó da questão é uma publicação em quadrinhos da Marvel, “Vingadores: a cruzada das crianças”, em que os protagonistas - dois homens - se beijam. Um beijo em uma revista em quadrinhos foi o que causou o ato de censura no maior evento literário do país.
O prefeito do Rio de Janeiro incomodou-se com a possibilidade de aquele beijo perturbar crianças e adolescentes. Os mesmos que têm contato desde cedo com a história da Branca de Neve, beijada por um príncipe que achava que ela estava morta: necrofilia pode.
Que conhecem de cor e salteado a história de João e Maria, abandonados pelos pais em face da fome: pobreza extrema e abandono podem.
Que leram a Nebulosa ser torturada por Thanos: tortura pode.
Que viram o Batman agindo como juiz, júri e executor no Cavalheiro das Trevas: justiceiro ignorando a estrutura de aplicação do Direito pode.
Por outro lado, viram também os X-Men perseguidos por discurso de ódio, assim como a discriminação racista e a tentativa de censura em Harry Potter.
E viram muitos beijos: o Homem Aranha beijando a Mary Jane, o Super-homem beijando a Lois Lane, a Mônica beijando o Cebolinha.
Nada disso incomoda a autoridade preocupada com a violência contra as crianças e os adolescentes. O fundamento da perseguição é o tratamento do tema do “homotransexualismo” pela obra. A violência estaria em retratar o afeto entre dois homens.
Adequadamente, liminar do Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes determinou a suspensão da ação do Município em decisão exemplar.
O Município recorreu afirmando o dever de fiscalização ao comércio de “material impróprio ou inadequado, potencialmente indutor, possivelmente obsceno e nocivo à criança e ao adolescente, sem a necessária advertência ao possível leitor ou à família diretamente responsável, e sem um capeamento opaco, exigido expressamente na legislação”. E neste sentido decidiu o Presidente do TJ-RJ, que suspendeu a liminar, assumindo o caráter político da decisão em face da necessidade de interpretação de conceitos indeterminados: interesse público e ameaça de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Material impróprio e inadequado, potencialmente indutor e possivelmente obsceno e nocivo... Por quê? Por ser homoafetivo. Nem uma linha sobre as publicações famosas por mostrar heroínas e vilãs supersexualizadas, com violência explícita, com cenas de tortura. O problema está em que se “apresente e ilustre o tema da homossexualidade a adolescentes e crianças sem que os pais sejam devidamente alertados”. Como se coubesse aos pais brasileiros o direito de decidir sobre ser preconceituoso e tratar os demais como desiguais – e ensinar isso aos seus filhos!
O alegado fundamento jurídico está nos artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O artigo 78 determina que “as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo” e que “as editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”. O artigo 79 impõe que “as revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Ocorre que tais valores éticos e sociais não são aquilo que a subjetividade dos poderosos ou a religião das autoridades afirmam. São conceitos que devem ser interpretados conforme o artigo 5o da Constituição e da legislação infraconstitucional correlata.
Classificações indicativas a respeito de produtos de exposição às crianças e jovens podem ser realizadas. O exemplo mais ilustrativo são as atividades da Coordenação de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que é responsável pela análise de vários produtos artísticos audiovisuais no Brasil. Os critérios da classificação implicam a verificação de três grandes assuntos: sexo, violência e drogas, mediante a utilização de vários itens de valoração, tais como a o contexto, a intensidade, a importância, a frequência e a relevância. Todavia, segundo o Manual da Nova Classificação Indicativa do MJ, sua fiscalização é uma atividade “processual” e que implica necessariamente a adoção de uma metodologia técnica. Ademais, deve necessariamente ser realizada de forma democrática e objetiva, por intermédio de agentes qualificados.
Não é qualquer grupo de pessoas ou de fiscais que está apto a opinar sobre produtos artísticos ou literários. A objetividade visa o afastamento de moralismos subjetivos que estejam fora do âmbito jurídico constitucional. Há tempos que especificamente a orientação sexual não é critério relevante, por si só, para a classificação indicativa. Isso significa que cenas de beijos com casais heteroafetivos ou homoafetivos são classificadas de idêntica forma no Brasil. Aliás, em geral, cenas discriminatórias podem implicar agravamento da classificação, enquanto o respeito à diversidade pode gerar a sua atenuação.
Não é possível deixar o assunto nas mãos de autoridades moralistas de plantão, que disfarçam seus preconceitos a partir de uma argumentação fundada na autonomia e na proteção da criança e do adolescente. Esta subjetividade não combina com a República e pode levar a sérias distorções e perplexidades. Nunca é demais lembrar que a novela da TV Record intitulada “Jesus” teve sua classificação ampliada para 12 anos e ao final chegou a ser indicada ao público maior de 14 anos por conter cenas de “violência, drogas e conteúdo sexual”. A evangélica Record, em sua autoavaliação, entendia que não havia problema com a classificação original.
O Prefeito do Rio de Janeiro queria as revistas em embalagem lacrada. Não falou das novelas e programas televisivos que as crianças assistem todos os dias. Nem nos telejornais e jornais, com notícias de tiroteios, violência contra as mulheres, despejos, pobreza. Não quis censurar todos os romances gráficos da Marvel, nem todas as revistas em quadrinhos, nem todas os contos infantis com bruxas comendo crianças ou adolescentes presos em torres ou obrigados a trabalhar e vender fósforos na neve.
Não quis censurar todos os beijos. Apenas o retrato de um beijo específico – um beijo entre dois homens. Para o Prefeito, e para o Desembargador Presidente do TJ-RJ, esse beijo configura “conteúdo afrontoso a valores éticos, morais ou agressivos à pessoa ou à família”.
Acontece que o beijo é constitucional. Assim já deixou claro – e nem precisava – o Supremo Tribunal Federal. Inconstitucional é a concepção destas autoridades; para além de retrógrada, é ilícita. E a própria decisão demonstra que se tem consciência disso. Como era de se esperar, já neste domingo dia 08 de setembro, a Procuradoria-Geral da República solicitou à Presidência do STF a reversão da decisão do TJ-RJ por ser contrária ao interesse público.
A decisão que, ao arrepio da Constituição, estabelece a censura, reconhece ser “inegável que os relacionamentos homoafetivos vêm recebendo amparo pela jurisprudência pátria, notadamente dos tribunais de cúpula, o que corroboraria o afastamento da vedação do art. 79, ao menos em parte”. Ora, qual parte? O magistrado sabe que a igualdade e a dignidade da pessoa humana são reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal em decisões sobre os direitos das minorias, mas resolve ignorar esses valores basilares em nome de sua visão própria de mundo. Como os nazistas da República Alemã que precedeu a guerra, entendem que podem censurar, esconder, e se possível até queimar, livros sobre aqueles que julgam inferiores, diferentes ou culpados de certo mal ou alguma condição que lhes impõe segregação.
Por trás do preconceito sempre há algo de ignorância. Nota-se que o julgador ou nunca leu um romance gráfico ou ignora a sexualidade imanente aos uniformes das heroínas das histórias em quadrinhos. Nunca leu um episódio sequer de Conan, o Bárbaro, nem reparou na diferença da roupa da Mulher Maravilha e do Super-homem. Nem lembra de Emma Frost e Ciclope dormindo juntos.
Ou, na realidade, tal julgador apenas segue a visão excludente e preconceituosa de mundo do Prefeito, que acha que tem o pretenso “dever” de esconder das crianças o exercício de um direito fundamental dos homoafetivos: o de existir e serem vistos por todos em igualdade de condições – sem serem párias sociais ou sem terem seu comportamento afetivo equiparado à pornografia.
A alegada proteção do interesse público e da criança e do adolescente não está presente nem no cotidiano da Administração municipal nem na administração do Poder Judiciário do Rio de Janeiro. São fartos os exemplos de situações muito mais importantes em relação a este grupo vulnerável e que não mereceram uma palavra sequer das autoridades – muito menos políticas públicas eficientes.
O caso é tão absurdo que talvez somente seja explicável como uma tentativa de publicidade política para o reforço do seu público cativo – um grupo que gira seu mundo no entorno das chamadas questões de gênero. Uma estratégia política para reforçar sua identificação com os tais “homens de bem” que se levantam contra um beijo gay em uma revista em quadrinhos mas não dizem nada sobre um adolescente chicoteado pelo furto de um chocolate.
Falta-nos, talvez, a proclamação de um novo tipo de “independência sexual” a fim de que as pessoas passem a valorizar em definitivo a autonomia dos demais. Uma autonomia que deve ser exercida com isonomia. Por razões óbvias e mediante exemplos históricos profícuos, a civilização moderna aprendeu (ou deveria ter aprendido) que não deve existir autonomia para ensinar e propagar o preconceito e a discriminação.
O fato é que, neste caso, o recurso hermenêutico a valores apenas serve para mascarar a imposição de censura e de desrespeito a um modo de vida diferente, mas que tem o direito à igualdade de tratamento por parte do Estado. Ao contrário do que afirma o Presidente do TJ, não há regra jurídica que autorize sua decisão e não há, absolutamente, “o risco de lesão à ordem pública”. É exatamente o contrário, como corretamente concluiu a decisão liminar que proibiu a ação da Prefeitura.
Não cabe aos pais decidir se querem ver tarjada uma revista que contenha cenas da afetividade entre negros, judeus ou ciganos, pois isso seria obviamente uma forma explícita de discriminação. Igual tratamento merece a população homoafetiva. Todo o mundo civilizado sabe disso neste confuso e paradoxal início de século XXI.
No conteúdo destas decisões discriminatórias há censura. Censura à publicação. Censura ao modo de vida. Censura aos afetos. Censura à liberdade. Censura à Constituição. Censura à civilização.