Emerson Garcia (RJ)
Aspectos introdutórios
Dialética erística, ou simplesmente erística, é a técnica argumentativa utilizada para vencer um debate a qualquer custo. Para que o fim seja alcançado, a ética fica de lado e a desonestidade intelectual avança sem pudor. O objetivo dessas breves linhas é tão somente o de identificar algumas situações que fazem parte do cotidiano e que pouco contribuem para a elevação do nosso nível civilizatório. São técnicas argumentativas a que recorrem estudantes, profissionais do direito ou juristas consagrados com o só propósito de vencer o debate em que estão envolvidos, não para a evolução da ciência ou a consagração da verdade.
A base de nossas considerações é o opúsculo póstumo de Schopenhauer, intitulado Eristik e publicado pela primeira vez nos idos de 1864, por iniciativa de Julius Frauenstädt. Desde então, foi reeditado inúmeras vezes e traduzido para diversos idiomas. Esse esclarecimento é necessário para afastarmos qualquer sobreposição com o pensamento de Aristóteles, que via na dialética uma técnica honesta de confronto entre argumentos contraditórios, permitindo avançar na obtenção de uma resposta, e, na erística, uma espécie de debate contencioso cujo objetivo era o êxito, ainda que desacompanhado da solidez dos argumentos. A erística, nesse caso, não era propriamente uma ciência e muito menos um padrão de desonestidade intelectual. Schopenhauer, no entanto, associava a dialética à erística, nela visualizando uma forma de argumentação que independe da verdade. A demonstração da verdade seria preocupação da lógica. Não é demais lembrar que o seu objetivo era o de polemizar com Hegel, filósofo já consagrado à época e que utilizava a dialética como o epicentro de suas ideias.
Alguns estratagemas
A verdade, na dialética erística de Schopenhauer, é secundária. O fim almejado é o êxito no debate. Para tanto, oferece 38 estratagemas que bem expressam a deslealdade intelectual do debatedor. Mencionaremos aqui 10 deles
(§ 1º). A ampliação indevida estende a afirmação do adversário para além dos seus limites naturais. Muito utilizada no debate oral, tem o objetivo de demonstrar a incorreção da afirmação por existirem exceções a ela. Quando digo que a teoria da vontade é essencial para a interpretação dos contratos, o meu adversário rebate: todos sabem que as cláusulas contratuais escritas são lei entre as partes, o que teria sido ignorado por mim. Em resposta, é preciso esclarecer que a teoria da vontade não afasta a importância das cláusulas escritas, apenas contribui para a sua compreensão.
Para anular esse estratagema, o melhor a fazer é restringir nossas afirmações, diminuindo a margem de manipulação do debatedor. No referido exemplo, poderíamos dizer que a teoria da vontade é essencial para a interpretação das cláusulas contratuais escritas. Afinal, a essência do contrato é identificada a partir da convergência do animus e do scriptum.
A ampliação indevida também pode decorrer de um deslize do autor da afirmação, do qual se aproveita o debatedor. Se digo que todas as Constituições brasileiras foram aprovadas por representantes do povo, meu adversário poderia rebater afirmando que a Constituição Imperial e as republicanas de 1937, 1967 e 1969 foram outorgadas. Para escapulir, eu poderia afirmar, como o faz profícua doutrina portuguesa, que não existem Constituições outorgadas, senão Cartas Constitucionais. Portanto, sob esse prisma, minha afirmação estaria correta.
(§ 2º) A homonímia sutil estende a afirmação a um segundo objeto que, fora a identidade de denominação, não se confunde com o primeiro. O objetivo é o de demonstrar que a afirmação inicial estava incorreta, pois não se aplica ao segundo objeto homônimo, ou, no extremo oposto, permitir que os efeitos da afirmação sejam estendidos a esse segundo objeto, apesar de suas características serem distintas.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Reclamação nº 2.138/DF, decidiu que o uso do avião da FAB por Ministro de Estado, para desfrutar momentos de lazer com familiares na Ilha de Fernando de Noronha, não caracterizaria o ato de improbidade referido no art. 37, § 4º, da Constituição de 1988, que foi regulamentado pela Lei nº 8.429/1992. Em prol de sua conclusão, afirmou que esses agentes políticos estavam sujeitos à tipologia dos crimes de responsabilidade, e o art. 85, V, da Constituição de 1988, regulamentado pela Lei nº 1.079/1950, enquadrava nessa categoria qualquer atentado à “probidade na administração”. Como qualquer atentado à probidade configura crime de responsabilidade, não poderia haver responsabilização pelo ato de improbidade da Lei nº 8.429/1992. O que o Tribunal não observou, ou não quis observar, é que o sistema brasileiro adota o princípio da independência entre as instâncias de responsabilização, o que torna possível que uma única conduta enseje a responsabilização do agente em mais de uma instância (cível, criminal, administrativa etc.). Portanto, a improbidade referida no art. 37, § 4º, da Constituição é distinta da probidade mencionada no art. 85, V, e cada qual é detalhada em lei específica. Nesse caso, a homonímia sutil foi empregada para impedir a responsabilização do Ministro de Estado.
(§ 3º) A mudança do modo relativo para o absoluto é utilizada para generalizar o conteúdo de uma afirmação direcionada a um objeto particular. Posso dizer que o constitucionalismo norte-americano, ao disciplinar o funcionamento da federação, não cometeu erros similares ao brasileiro, cujo modelo real de federação a cada dia se aproxima mais do Estado unitário, quando muito, regionalizado. Meu adversário rebate afirmando que os norte-americanos também erram. Em seguida, lembra a “teoria da soberania dos Estados-membros”, defendida por John C. Calhoun, que apregoava o direito de o Estado-membro retirar-se da federação. Teorias como essa conduziram à guerra de secessão (1861-1865) e, no extremo, poderiam acarretar a própria dissolução do Estado Federal. Nesse caso, a refutação do adversário é verdadeira, mas diz respeito a objeto distinto daquele sobre o qual falamos. Caberia a mim esclarecer que não há pomar imune a ervas daninhas e a teoria de Calhoun existiu e foi devidamente refutada.
(§ 4º) Induzir o adversário a aceitar pré-silogismos, principalmente quando muitos e expostos de maneira confusa e desordenada, é ferramenta utilizada para dificultar a refutação da conclusão final. Trata-se de técnica muito eficaz na comunicação oral, mas que exige elevado poder de organização mental por parte do falante. Afinal, é preciso que distancie, o máximo passível, da conclusão final, as conclusões parciais alcançadas com os pré-silogismos. Essas conclusões parciais devem ser tão óbvias quanto possível, de modo a evitar qualquer refutação do adversário. Em determinado momento da argumentação, passam a ser utilizadas como premissas para embasar a conclusão final. Caso o adversário não tenha percebido a artimanha, terá muita dificuldade para convencer o auditório, máxime quando intelectualmente limitado, de que um punhado de proposições positivas pode resultar numa conclusão negativa. Tem grande utilidade no Tribunal do Júri, que é pródigo em valorizar a retórica em detrimento da justiça. O grande Fernand Payen, aliás, antigo advogado da Corte de Apelação de Paris, já nos falava da dificuldade em evitar o “escamotear das objeções, fazendo de quatro argumentos quarenta, e que o Júri, pouco a pouco, fique como um inseto numa teia de aranha, envolvido nos fios conjugados da argumentação vertiginosa”.
(§ 5º) O uso intencional de premissas falsas pode ajudar a superar a negativa do adversário em aceitar as premissas verdadeiras, quer por desconhecê-las, quer por constatar que a conclusão contrária aos seus interesses será naturalmente alcançada caso venha a reconhecer a correção dessas premissas.
O Supremo Tribunal Federal, no dia 17 de fevereiro de 2016, ao julgar o Habeas Corpus nº 126.292, entendeu que não ofendia o princípio constitucional da presunção de inocência o início de execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau de jurisdição. Esse acórdão foi influenciado por argumentos consequencialistas, baseados na riqueza do sistema recursal brasileiro e na sensação de impunidade que o abuso no manejo desses recursos traz para a população. É intuitivo que a tese é no mínimo audaciosa, já que se distancia dos limites semânticos do art. 5º, LVII, da Constituição de 1988, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Não bastasse isso, ainda desconsidera convenções internacionais encampadas pelo Estado brasileiro.
Ao constatarem a preponderância do argumento consequencialista, muitos defenderam que o pronunciamento dos tribunais superiores, antes da decretação da prisão, era necessário em razão do elevado percentual de reforma das decisões condenatórias proferidas pelas instâncias locais. O sistema então vigente, portanto, longe de conduzir à impunidade, evitava a punição de inocentes. Alguns falavam em 60% de reformas, outros em 30%, e um Ministro, durante o julgamento, chegou a falar em 25%. Esse tipo de argumento é nitidamente imprestável para a discussão, pela singela razão de não termos, em nosso País, estatísticas minimamente sérias a respeito dessa temática. A só disparidade dos percentuais indicados aponta para a necessária falsidade de todos eles com exceção de um, que é simplesmente desconhecido até o momento.
(§ 6º) A formulação de perguntas em desordem, de modo a encobrir o propósito almejado com as respostas obtidas, é particularmente útil nos procedimentos marcados pela oralidade, em que, ato contínuo à instrução processual, é proferida a decisão. Muitas e pormenorizadas perguntas, formuladas fora de ordem, darão ensejo a respostas desordenadas, permitindo que o falante hábil pince as informações que mais lhe interessem e transmita-as na ordem que lhe pareça mais adequada. Se a capacidade de compreensão do destinatário da informação for lenta e limitada, passarão despercebidas as lacunas da argumentação e as contradições que apresenta em relação às informações que o falante voluntariamente deixou de repetir. Essa inversão do método socrático, método este que se baseia na obtenção da verdade a partir do avanço cadenciado de perguntas e respostas, é muito útil no Tribunal do Júri, em que, ato contínuo à inquirição de testemunhas, passa-se aos debates e à fase decisória.
(§ 7º) Encolerizar o adversário é técnica que pode simplesmente impedir qualquer resposta minimamente razoável. A injustiça extrema e a humilhação pública são devastadoras para o homo medius. Somente pessoas dotadas de grande equilíbrio emocional conseguem reestruturar-se após sofrerem um ataque dessa natureza. Os juristas, mais especificamente aqueles que o mérito próprio e a paulatina ação do tempo terminaram por consagrar, devem ser muito comedidos em suas críticas. Errar a dose pode abreviar a carreira de um jovem opositor. O comedimento não deve ser afastado mesmo que o opositor, inflado pelos arroubos da juventude, tenha sido movido pelo propósito de pôr-se à luz às custas do mestre consagrado.
(§ 8º) A manipulação semântica tem o objetivo de designar o objeto a partir de uma metáfora que mais favoreça os nossos interesses, despertando sentimentos positivos ou negativos em determinado público alvo.
Esse tipo de técnica tem sido fartamente utilizado no ambiente legislativo, tencionando gerar na opinião pública a simpatia ou a repulsa a determinada proposição legislativa. A PEC nº 37/2011, por exemplo, dispunha que somente a polícia judiciária poderia investigar a prática de infrações penais, o que impediria que o Ministério Público exercesse essa atividade, possibilidade, aliás, que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Essa proposição recebeu a alcunha de “PEC da Impunidade” e terminou por ser rejeitada com o apoio popular. O objetivo oposto também é possível. A PEC nº 82/2007 almeja atribuir autonomia administrativa, orçamentária e financeira às estruturas orgânicas que formam a advocacia pública. Os seus idealizadores, cientes da importância das metáforas, atribuíram-lhe a pitoresca alcunha de “PEC da Probidade”, como se o assunto tivesse algo a ver com a probidade administrativa referida em dois preceitos da Constituição de 1988. O fim almejado, como se percebe, é o de gerar uma impressão favorável junto à opinião pública.
A manipulação semântica também é campo propício para o uso da figura de linguagem conhecida como eufemismo. Policiais, por exemplo, não praticam violência contra o criminoso recalcitrante, fazem uso de energia; e não invadem domicílios em comunidades carentes, são convidados a entrar pelo morador. Os exemplos, enfim, são múltiplos.
(§ 9º) A alternativa forçada tem por objetivo limitar o poder de escolha do nosso adversário, conduzindo-o à opção que mais nos favoreça para que não receba a pecha de contraditório ou injusto. Para tentarmos justificar a prática de violência dos pais contra os filhos, o que foi vedado pela Lei nº 13.010/2014 (“Lei da Palmada” – metáfora bem útil para realçar os objetivos da norma), perguntamos com grande alarde ao nosso adversário: os pais devem educar os filhos ou não? Se ele responde que não, será evidente o seu equívoco. Se responde que sim, interrompemos sua fala, antes que ressalte a impossibilidade de uso da violência, e afirmamos que educar é educar, o que não permite chamar de violento o ato de desferir algumas “palmadinhas”. Aqui, como lembrado por Schopenhauer, aproximamos o negro do branco e tornamo-lo cinza e, com um pouco de sorte, branco.
(§ 10) O uso intencional da mutatio controversiae pode ser visto como verdadeira saída de emergência. Quando se percebe que a argumentação do adversário vai subjugar-nos de maneira fragorosa, busca-se interromper o seu rumo, evitando-se que chegue ao final ou, mesmo, que avance ao ponto de ter a sua supremacia percebida pelos ouvintes. A interrupção pura e simples tende a ser descortês, atraindo uma imagem negativa para o seu autor. O melhor a fazer, portanto, seria direcionar as forças a um assunto periférico, conexo ao principal e no qual se tenha maior chance de êxito, nele prosseguindo com a argumentação.
Uma variação da mutatio controversiae é encontrada na conduta de alguns candidatos em concursos públicos. Muitos recebem a orientação de que, nas provas escritas, devem inaugurar a sua resposta valendo-se de uma pomposa redação afeta à área de concentração da respectiva banca examinadora. Até aí nada de mais. O problema é que, em muitos casos, a tal redação está desconectada da pergunta que devem responder. Esse proceder, que tanto pode ser ingênuo como mal-intencionado, muitas vezes sequer é acompanhado da resposta ao questionamento formulado. Um examinador sério não vê com bons olhos esse tipo de comportamento.
À guisa de conclusão
Não é preciso lembrar ou explicar o quão complexo é o conceito de verdade. O seu caráter absoluto ou relativo, temporal ou atemporal, objetivo ou subjetivo são apenas alguns aspectos que têm ocupado os estudiosos dessa temática. Apesar da multiplicidade de feições que pode assumir, que variam conforme o paradigma de análise, a dialética erística, por certo, não se afeiçoa ao sincero objetivo de alcançá-la. É um vírus, que contamina e macula a verdade, podendo chegar ao extremo de fazê-la sucumbir.
Conhecer alguns dos estratagemas comumente utilizados é de grande utilidade para compreendermos as técnicas de deturpação e encobrimento da verdade. Utilizá-las, ou não, depende dos padrões éticos que cada um de nós decide adotar em sua vida. A glória momentânea, embora suficiente para massagear o ego dos mais vaidosos, dificilmente produzirá bons frutos, máxime quando os estratagemas utilizados puderem ser identificados com alguns poucos minutos de reflexão suplementar, que cedo ou tarde será realizada pelos demais participantes do debate