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O Novo Código de Defesa do Usuário do Serviço Público: Lei 13.460/17

ANO 2017 NUM 367
Emerson Gabardo (PR)
Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/PR. Professor Adjunto de Direito Administrativo da UFPR. Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham University School of Law. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo


27/06/2017 | 14628 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

No dia 26 de junho último foi publicada a Lei 13.460, que “dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública”. Trata-se de uma importante regulação, mas que demorou quase trinta anos para ser editada. Não que inexistissem normas assemelhadas, mas a Constituição de 1988 e a Reforma do Estado de 1998 exigiam mais em termos de controle do Estado na gestão e execução dos serviços públicos prestados. Embora eu seja um crítico da inflação legislativa que assola o país, creio que neste âmbito ainda tínhamos uma lacuna a ser preenchida. E o mesmo pode ser dito do ambiente doutrinário. Poucas são as obras que tratam do direito de reclamação do usuário dos serviços públicos. Correndo o risco de alguma injustiça, só consigo me lembrar do excelente e precursor livro de Adriana da Costa Ricardo Schier – A participação popular na Administração Pública: o direito de reclamação (obra que irá requerer, agora, uma nova edição).

O artigo 27 da Emenda Constitucional no 19 de 1998 havia estabelecido um prazo de 120 dias para a publicação da lei. Esta, por sua vez, era uma exigência do artigo 37, parágrafo 3o, da Constituição Federal, que assim prescreve: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5o, X e XXXIII; III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.” Todavia, até o presente, a norma não havia sido editada.

Em 2013 a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão solicitando que fosse determinada pelo Supremo Tribunal Federal a edição da lei e, enquanto não cumprida a determinação, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Recebida como a ADO 24, a ação teve deferida a medida liminar pleiteada pelo Ministro Dias Toffoli em julho do mesmo ano. A decisão asseverou que o Congresso deveria cumprir a determinação constitucional no prazo de 120 dias. Desde então, a decisão judicial vinha sendo ignorada pelo Poder Legislativo, ainda que o assunto tenha se mantido em trâmite permanente desde 1999. Cabe salientar que a liminar/cautelar não autorizou a incidência provisória do CDC, embora já exista farta jurisprudência que o utiliza para serviços públicos (notadamente os remunerados mediante tarifa) e não sejam poucos os doutrinadores que defendem sua aplicação no setor público (no que for cabível). O assunto é controvertido, mas não é novo.

No presente artigo não pretendo discutir os absurdos do sistema judicial brasileiro, que compreendem a tomada de decisões como esta de maneira liminar e monocrática (ad referendum do plenário) para se ficar aguardando eternamente o julgamento do mérito. E, para completar, decisão esta que, afinal, não apresenta a efetividade jurídica adequada. O fato é que, simbolicamente, o aval do Judiciário à óbvia omissão legislativa talvez tenha colaborado para fomentar a busca por uma solução ao problema. Curioso é o advento de uma lei tão esperada em um momento tão ruim do Congresso Nacional em termos de sua legitimação. Ademais, chamar a lei de um “Código de Defesa do Usuário de Serviço Público”, talvez seja um exagero haja vista a singeleza da norma editada, mas não deixa de ser um signo oportuno como meio de ampliar sua importância do ponto de vista cultural.

A despeito de a decisão cautelar do STF gastar páginas e páginas de uma retórica jurídica absolutamente desnecessária para o deslinde da questão (por exemplo, explicando que é possível o deferimento de liminar em ADO – entre outras citações de doutrina totalmente despiciendas), há itens importantes que ficaram em aberto sobre o significado e o impacto da nova legislação. O mesmo se pode dizer do texto final da lei, que é superficial e impreciso, haja vista a complexidade e sofisticação do tema “serviços públicos” no contexto do Direito administrativo contemporâneo.

O próprio conceito de serviço público utilizado pela lei é ambíguo (como em geral ocorre no texto constitucional). Perdeu-se a oportunidade de conferir mais segurança jurídica à matéria mediante o estabelecimento de uma terminologia de melhor precisão. Para além do cumprimento do artigo 37, parágrafo 3o, a lei também pretende dar consecução ao parágrafo único do artigo 175 da Constituição, que possui a seguinte regra: “A lei disporá sobre: I (...); II – os direitos dos usuários; III (...); IV – a obrigação de manter o serviço adequado.” Este artigo, todavia, reporta-se aos serviços públicos em sentido estrito (também denominados de privativos ou exclusivos de Estado), que em larga medida já possuem mecanismos de controle mais bem estabelecidos na legislação infraconstitucional (seja em decorrência da Lei 8.987/95 – Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos; seja em função da sua respectiva regulamentação setorial).

O artigo 1o, parágrafo 3o, da Lei 13.460 prevê a sua aplicação apenas subsidiária no caso dos serviços prestados por particular. Mas subsidiariedade em relação à quais leis? E de que particular estamos falando? Dos concessionários e permissionários ou dos prestadores de serviço público não privativo (e que, portanto, exploram o serviço no regime de atividade econômica em sentido estrito)? Tenho um palpite...

Por outro lado, o parágrafo 2o do mesmo artigo reconhece a validade da aplicação do CDC se caracterizada relação de consumo (inciso II). Mas na relação entre a Lei 13.460 e a Lei 8.078/90, qual delas terá aplicação subsidiária? E, ademais, o “Código” não afasta as normas específicas “quando se tratar de serviços sujeitos a regulação ou supervisão” (inciso I). Ora, qual o serviço público não está sujeito à regulação ou, ao menos, supervisão? O particular aqui mencionado é o concessionário e permissionário? Ou são incluídos outros sujeitos tais como entidades do terceiro setor? E os ofícios púbicos (serviços notariais e de registro)?

Enfim, restam muitas perguntas, pois estas regras são cumulativas e trabalham com conceitos que se cruzam, além de serem indeterminados. Espero que a interpretação a ser aplicada seja aquela que melhor atenda ao direito fundamental de acesso aos serviços públicos a partir da garantia de um regime jurídico especial. Neste caso, como se trata de uma norma que visa a limitação do poder, o raciocínio hermenêutico milita em sentido favorável ao cidadão.

No artigo 2o, inciso II, a lei define o que é serviço público para os seus próprios fins. Aqui fica claro que a lei se utiliza da noção ampla de serviço público (aquela decorrente do ideário de Léon Duguit e que abarca qualquer atividade administrativa). Por outro lado, faz menção expressa à “prestação direta e indireta de bens ou serviços à população”, o que é uma ênfase no conceito restrito de serviço – desnecessária juridicamente, mas importante simbolicamente.

Infelizmente a lei utiliza uma expressão equivocada ao definir os sujeitos prestadores, dizendo que será serviço público a atividade “exercida” por órgão ou entidade da Administração. Isso não é verdade, pois o artigo 1o é claro ao asseverar que a incidência se dá para serviços públicos prestados “direta ou indiretamente”. A interpretação sistemática confirma este efeito, razão pela qual seria mais prudente este inciso utilizar a expressão “titularizada” ao invés de exercida. Em resumo: a lei vale para os serviços públicos, os quais consistem em quaisquer atividades administrativas e as demais ações titularizadas pelo Estado exercidas por entidades estatais ou por prestadores privados. Aparentemente, este conceito exclui os serviços sociais (os não privativos do Estado) quando prestado por particulares – o que me faz pensar, então, que o parágrafo 3o do artigo 1o está lá justamente para impor tal regime aos exploradores privados dos serviços sociais (educação, saúde, previdência) – ainda que subsidiariamente. Este é o meu palpite.

Quanto à definição subjetiva de Administração Pública contida no inciso III do artigo 2o, presta-se um desserviço hermenêutico, pois “sem querer querendo” a Lei 13.460/17 restringe o conceito às entidades designadas: ou seja, os três Poderes da União, Estados Distrito Federal e Municípios, além da Advocacia Pública e da Defensoria Pública. Por um lado, não seria necessário citar estes dois últimos órgãos, que já estão açambarcados pelo conceito geral; por outro lado, faltou uma salutar menção expressa ao Ministério Público e aos Tribunais de Contas. Por óbvio, espero que a norma incida também sobre estes dois organismos.

Uma questão interessante é que a Constituição manda que seja elaborada a presente lei por três razões contidas respectivamente nos três incisos do artigo 37, parágrafo 3o.

O inciso II já havia sido contemplado de forma plena com a edição da Lei de Acesso à informação (Lei 12.527/11) – como reforçado no parágrafo único do inciso V do artigo 2o do “Código”. E sobre este assunto já temos vasta doutrina, como os comentários à LAI da professora Eneida Desiree Salgado, publicados pela editora Atlas.

De fato, a Lei 13.460/17 vem, então, para regulamentar o inciso I, em que pese quase não utiliza a expressão constitucional “reclamação”. O problema é que seu texto peca ao deixar totalmente de lado o inciso III, que exigia “a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”. Sobre isso a lei não é específica e, na minha óptica, resta uma lacuna legislativa na matéria. Falta-nos mais regras que controlem o abuso de autoridade, notadamente os abusos dos agentes controladores. Ficar apenas com a Lei 4.898/65 não faz mais sentido.

Ainda, a lei contém uma espécie de regulamento geral para as ouvidorias. Todavia, seu texto é paradoxal ao não impor que todos os órgãos públicos estejam submetidos a alguma ouvidoria. Por outro lado, tendem a ocorrer problemas de compatibilidade legislativa entre as normas específicas de cada órgão em cada Poder e esfera política da federação. Aliás, falando neste tema, seria de se perguntar se algumas normas contidas na nova legislação não afrontariam a competência legislativa específica dos Estados, Municípios e Distrito Federal para inovar na matéria de auto-organização administrativa. Pensando melhor: who cares?

Enfim, para não ficarmos somente em críticas (e haveriam várias outras), cabe ressaltar alguns aspectos muito positivos da nova legislação, tais como: 1. O estabelecimento de um rol interessante de direitos básicos dos usuários, inclusive com a obrigação atribuída a todos os Poderes para que elaborem uma “Carta de Serviços”, contendo informações claras e precisas sobre os serviços prestados; 2. A obrigatoriedade da criação de “Conselhos de Usuários”, interessante órgão consultivo de promoção da participação popular na Administração; 3. A  previsão de um “Regulamento de Avaliação” da efetividade da prestação dos serviços e respectiva satisfação do usuário (tenho dúvidas apenas na obrigação de publicação de um ranking das entidades com maior incidência de reclamação – não sei se isso funciona em se tratando de Administração Pública).

Em rápidas pinceladas, creio que estas são as questões que mais me provocaram em uma análise ainda inicial da lei. Mas muito ainda há que ser dito a discutido.

Várias outras críticas poderiam ser feitas ao resultado publicado e que ainda cumprirá vacacio legis de trezentos e sessenta dias (União, Estados e DF) até setecentos e vinte dias (Municípios com menos de cem mil habitantes) para podermos refletir melhor sobre o seu conteúdo. Entretanto, uma adequada hermenêutica da norma feita pela doutrina e pelo Poder Judiciário poderá aprimorar a sua aplicação, corrigindo defeitos e preenchendo lacunas. O que não se pode negar é que a proposta da Lei 13.460/17 de fomentar o acesso ao serviço de qualidade e a transparência no seu controle é incontestável. O resultado é, sem dúvida, muito positivo e promissor, mas vai implicar treinamento dos agentes públicos e criação de infraestrutura satisfatória para o alcance da atuação administrativa almejada. Um adequado respaldo orgânico e funcional será fundamental para a efetividade da lei, para além de qualquer direito ou dever jurídico que dela se possa extrair.



Por Emerson Gabardo (PR)

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