Emerson Gabardo (PR)
O Supremo Tribunal Federal colocou fim a uma polêmica (ou parte dela) relativa ao disposto no parágrafo 5o, artigo 37, da Constituição. Nos últimos 30 anos (e até antes disso), os juristas brasileiros discutem se as ações de ressarcimento ao erário pretendidas pela Administração Pública podem ser obstadas pela prescrição, haja vista a dubiedade do texto constitucional, que assim dispõe: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causarem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”
Este pequeno comentário, todavia, não possui como objetivo apresentar a discussão teórica da doutrina a respeito do assunto. Fiz isso em artigo escrito com o colega Lucas Bossoni Saikali e que deverá ser publicado em breve na Revista Jurídica UniCuritiba. Nesta oportunidade, a ideia é apenas comentar as sessões de julgamento do STF que foram televisionadas para os geeks jurídicos (segundo expressão da professora Vanice Lírio do Valle). Os que assistiram, conhecerão a minha versão do ocorrido; os que não assistiram, terão a oportunidade de entender melhor o que se passou.
De início, é importante registrar que nas sessões deliberativas ocorridas nos dias 01 e 08 de agosto de 2018 não ocorreu exatamente um “debate”. A busca por uma resposta moderna ao problema, ou seja, pautada numa discussão lógica, racional e congruente não tem sido a praxe. A metodologia do Supremo no século XXI segue uma corrente deliberativa pós-moderna que visa extrair conclusões a partir de uma bricolagem, ou seja, um brainstorm multilógico pautado em ideais de justiça e sabedoria prática que pululam entre os julgadores a fim de tentarem se acomodar.
Na minha óptica, esta nova taumaturgia da Corte segue em prejuízo do Direito, da Constituição, da República, da Segurança Jurídica, do Consenso e da Compostura Institucional. Mas é o que temos. Vamos ao caso.
O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, com repercussão geral, que as ações de ressarcimento ao erário oriundas de atos dolosos de improbidade são imprescritíveis. Ocorre que na semana anterior a maioria já havia se pronunciado em sentido contrário. A guinada foi surpreendente.
É importante relembrar que no julgamento no Recurso Extraordinário nº 669.069 (realizado em 03 de fevereiro de 2016) o STF havia decidido, com repercussão geral, que as ações de ressarcimento ao erário oriundas de ilícitos cíveis eram prescritíveis. Esta decisão foi impactante, pois reverteu tendência jurisprudencial anterior que vinha reconhecendo interpretação favorável à imprescritibilidade para qualquer caso.
No primeiro julgamento, em 2016, foi protagonista da decisão o Ministro Luis Roberto Barroso, cujo voto determinou o dos demais, com exceção do Ministro Luiz Edson Fachin. Ao final, Barroso devolveu o relatório para o Ministro Teori, não sem antes conseguir o intento de criar uma distinção inexistente na Constituição: entre o ressarcimento decorrente de ilícitos cíveis e o ressarcimento decorrente de improbidade.
Por ampla maioria o STF reconheceu, portanto, a prescritibilidade para as ações de ressarcimento quanto aos ilícitos civis, sem entrar no mérito da questão em relação a atos criminais e de improbidade. O fundamento primordial utilizado para esta decisão foi a necessidade de garantir a ampla defesa.
No segundo julgamento, em 2018, novamente o protagonista foi Barroso, que definiu os termos do resultado, ainda que formalmente os ministros tenham acompanhado Fachin (que adaptou seu voto).
Não tenho dúvidas. No final das contas, o Príncipe do Supremo é Luis Roberto Barroso. Mas comecemos do início...
A sessão do dia 01 de agosto se realizou com a Corte num clima animado e conciliatório. O caso concreto do Recurso Extraordinário 852.375, cuja repercussão incidirá em ao menos 999 outros casos em stand by, dizia respeito ao reconhecimento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo da prescrição da pretensão ressarcitória de alguns trocados oriundos da venda de dois carros/sucata por valores um pouco inferiores ao que o Ministério Público julgou adequado.
O professor Georghio Tomelin sustentou na tribuna pela improcedência do recurso, ressaltando as peculiaridades do que chamou de “kombigate”. Os “valores pífios” tornaram o caso ainda mais “bizarro”, disse Barroso, logo no começo.
Alexandre de Moraes estava incumbido do relatório. Sua segurança intelectual e sua clareza de raciocínio durante todo o julgamento foram notáveis (tenho que dar a mão à palmatória, pois eu sou um daqueles que não esperavam muita coisa). Em resumo, concluiu pelo reconhecimento da prescrição também para os casos de improbidade, fundado em quatro argumentos centrais: 1. A proteção da segurança jurídica; 2. O respeito ao devido processo legal; 3. A garantia da ampla defesa; 4. A necessidade de comprovação da responsabilidade subjetiva. Este último ponto foi, todavia, o mais insistentemente defendido pelo ministro.
Alexandre de Moraes ressaltou o quanto são comuns as ações de ressarcimento ajuizadas autonomamente após o prazo prescricional das demais penas da improbidade. Tais ações acabam sendo fundadas, implicitamente, em uma responsabilidade objetiva. Segundo o ministro, a própria União defendeu em sua manifestação que bastaria a descrição dos fatos e a identificação da ilicitude, para que fosse julgada procedente a ação ressarcitória. E destacou, ainda: que o constituinte teve como intenção coligar improbidade e má-fé; que a improbidade não pode ser confundida com a mera ilegalidade; que a imprescritibilidade, na Constituição, só se aplica nos casos expressos; que a regra geral principiológica deve ser a prescritibilidade; que já é mais gravoso ser o prazo inicial da prescrição contado do conhecimento do fato (e não do próprio fato). E, por fim, lembrou que na redação inicial do primeiro projeto da Constituição havia a previsão da imprescritibilidade, mas o constituinte afastou expressamente esta regra.
Para explicar o sentido da expressão “ressalvadas” do parágrafo 5o do artigo 37, o relator afirmou que esta parte do dispositivo nada mais é do que uma regra de transição; texto que se refere aos prazos gerais das ações de ressarcimento que existiam antes de ser editada a Lei de Improbidade Administrativa, em 1992.
Fachin, como era de se esperar, divergiu. Seu voto, no geral, foi claro e bastante lógico, como já havia sido no julgamento anterior. Mas seu tom era o de cauteloso reconhecimento de uma evidente derrota. Pautou-se em quatro premissas: 1. De que a prescrição é um instituto importante para a segurança jurídica; 2. De que há exceções explícitas à prescritibilidade na Constituição; 3. De que é inegável a prescrição das demais sanções referentes ao ilícito em si mesmo; e 4. De que o parágrafo 5o do artigo 37 possui uma “vírgula” importante, seguida de uma ressalva: as ações de ressarcimento. Tal redação não deixaria dúvidas. Embora sempre seja possível, segundo o Ministro, ser realizada uma interpretação histórica, uma hermenêutica evolutiva ou uma visão sistemática (e que poderiam, admite, sustentar a posição do relator), o fato é que a literalidade da Constituição está posta. Ao final, ainda, teceu algumas considerações a respeito da “projeção do Direito privado pretérito para o Direito público”. Mas esta parte eu não entendi.
Barroso explicou as três teses inerentes à matéria: 1. A da imprescritibilidade, 2. A tese da imprescritibilidade apenas da execução (que seria defendida por Toffoli); 3. A de que a lei pode estabelecer prazo específico de prescrição para as ações de improbidade (ora defendida pelo voto em debate). Explicadas as teses, acompanhou o relator, pois: 1. Onde o constituinte quis instituir a imprescritibilidade, o fez de forma inequívoca; 2. A imprescritibilidade é manifesta exceção no sistema brasileiro; 3. Se há ambiguidade, o princípio da segurança jurídica é o melhor vetor para a tomada de decisão.
O ministro ainda concluiu sua participação dizendo que iria sustentar que o prazo aplicável fosse o do Código Civil, mas que deixaria de fazer isso, pois:
“Aí mesmo é que vão dizer que eu gosto de legislar!”.
Cá com meus botões eu pensei:
“Ora, mas quem é que iria pensar uma coisa dessas?”
Rosa Weber acompanhou Fachin fundamentando-se na vírgula. Novamente eu vislumbrei: “Ah! Se a vírgula estivesse em outro local... quem sabe...”
Luiz Fux foi arrebatador. Estava empolgado e vibrante. Ressaltou o quanto era importante a Constituição não ter mencionado expressamente a imprescritibilidade no caso do ressarcimento; afinal, “quando o fez, o fez expressamente”. Citou Carlos Maximiliano para ressaltar: “o excepcional deve ser interpretado restritivamente”. E a regra é a prescritibilidade!
Afinal, asseverou o ministro: “se a lei não mencionou a imprescritibilidade, não me parece que se possa por criação judicial superar a vontade do legislador constituinte”. E não parou por aí. Inovou até mesmo os argumentos do relator para sustentar que a aceitação da imprescritibilidade violaria o princípio isonômico, haja vista que o prazo para os particulares ingressarem contra a Fazenda seria o de 5 anos. Ao final, ainda fez questão de ressaltar que se até na ultima ratio (o Direito criminal) há prescrição, não faria qualquer sentido o reconhecimento da imprescritibilidade para o caso – “isso contrariaria a própria lógica da Constituição”, concluiu o Ministro.
Mas... depois de uma semana... de um pito do MP e de uma chamada na xinxa da Rede Globo... nada mais seria como dantes no quartel de Abrantes!
Enfim.
Toffoli votou com o relator (embora tivesse uma terceira posição, que deixou de lado, como sempre).
Eu fico meio embaraçado em comentar o voto de Lewandowski, que citou largamente (e até de forma exagerada) meu artigo intitulado “A mudança de entendimento do STF sobre a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário”, publicado aqui no Colunistas, em 17.02.2016. Disse que anteriormente reconhecia a imprescritibilidade, mas que estava errado. Reconheceu os argumentos já destacados por Alexandre de Moraes e Fux (falta de declaração expressa da imprescritibilidade, supressão do devido processo legal e da ampla defesa, etc.). E concluiu: “não é só uma questão de segurança jurídica, mas de justiça”.
Gilmar Mendes votou como o relator, como previsto. Fez observações a respeito de aspectos históricos no entorno da questão e ressaltou que dar mais prazo significa, no mais das vezes, piorar a capacidade de recompor o patrimônio público, bem como facilitar a utilização de ações com objetivos meramente políticos. E explicou a tese do ministro Alexandre, a respeito da expressão “ressalvadas”, que se reporta à “não cessação da ultratividade das normas então em vigor”. Foi quando Dias Toffoli fez um aparte que me pareceu de suma importância, ao lembrar que a lógica da imprescritibilidade é pior para o interesse público, haja vista que impede a responsabilização dos órgãos de controle que não exercerem corretamente seu mister.
Mas responsabilização de órgãos de controle é um assunto tabu e não cola.
E assim terminou a sessão, já com a maioria firmada de seis votos favoráveis à prescritibilidade (Alexandre, Barroso, Fux, Toffoli, Lewandowski e Gilmar) e dois contrários (Fachin e Rosa). Os demais votos ficariam para a próxima quarta-feira.
Dia 08 de agosto o clima já não era o mesmo. Barroso e Fux não escondiam a ansiedade e já de antemão avisaram que haveria um “reajuste”.
Reajuste? Confesso que eu, que não tenho muita intimidade com o Supremo, não sabia que este era o eufemismo padrão para o “esqueçam tudo o que escrevi”, eternizado por FHC.
Marco Aurélio iniciou seu voto esclarecendo que nem sempre o legislador prima pela tecnicidade e este seria o caso do parágrafo 5o. Mas a resposta poderia ser dada, sem maiores problemas, pelo método sistemático. Afinal, “não passa pela minha cabeça a imprescritibilidade de ação patrimonial”. Já a expressão “ressalvadas” seria uma simples “admissão” do ressarcimento. Um dispositivo desnecessário, fruto da má técnica legislativa.
Eu peço vênia para não relatar com detalhes o voto do ministro Celso de Mello, que passou quase dois terços do seu tempo ministrando uma aula básica de mais óbvia e incontroversa teoria do Direito público. Booooring total. Ao final, concordou com o ministro Fachin, não apresentando um argumento sequer para além do “dever moral” de recompor o erário por parte de quem se locupleta.
Cármen Lúcia reconheceu a redação não tão clara do dispositivo. Mas o “espírito” destas normas conduziria ao reconhecimento da ressalva. Ademais, o valor “probidade” seria argumento suficiente para ser excepcionada a regra da prescritibilidade.
E finalmente chegou a vez de Fux para que pudesse se retratar.
Aparentava estar mais sensível o ministro, mas nem por isso tinha menos convicção do que a demonstrada na sessão anterior – só que agora no sentido oposto. Citou Cass Sunstein para afirmar a importância da “humildade judicial”. Explicou que “debaixo da toga bate o coração de um homem”. Citou Kelsen. Citou Calamandrei. Lembrou seu voto no caso de 2016 e que teria acompanhado o ministro Teori. Lembrou seus votos no STJ, que sempre eram pela imprescritibilidade. Por fim, reconheceu que não sabia exatamente o que estava julgando na semana anterior. Teria debatido o tema no dia 01.08 sob o ângulo da imprescritibilidade dos danos cíveis e não da improbidade.... etc.
Nesta hora fiquei meio tenso, achando que ele iria culpar o assessor, mas não.
Fux não disse, entretanto, a razão pela qual seus argumentos da semana passada estariam inválidos. Apenas acompanhou a divergência para reconhecer a imprescritibilidade do ressarcimento nos casos de improbidade, dizendo que foi convencido pelas razões do memorial do MP.
Logo após, seguiu-se o brainstorm, no qual Fux tornou-se o mais arraigado defensor da tese contrária à esboçada por ele mesmo durante o seu lapso garantista da semana anterior. Nesta altura do campeonato, Fachin flutuava, mediante ponderações calmas e objetivas, enquanto o circo pegava fogo a ponto de até Rosa Weber perder um pouco a paciência.
A discussão residia no entorno das questões processuais. Foi lamentável a dificuldade dos demais ministros em entender a situação descrita por Alexandre de Moraes. O fato é que existem, ao menos, dois tipos de casos: a prescrição do ressarcimento no caso de discussão na própria ação de improbidade e sua execução; a prescrição anterior ao ajuizamento da ação de improbidade e que reclama por ação posterior independente para o ressarcimento. No segundo caso, o relator alertava para a perigosa situação atual, em que são ajuizadas ações materialmente objetivas, pois sem a averiguação de culpa ou dolo para a caracterização de improbidade (Fux disse que nunca viu isso).
Rosa Weber, todavia, insistia que não via problema em uma ação ordinária meramente declaratória de improbidade. Afinal, “tem algo semelhante no Direito do Trabalho!” E leu o CPC para explicar a ideia aos demais colegas. Pois bem. Espera-se que nenhum membro daquele Tribunal desconheça que as ações exclusivamente declaratórias são admitidas pelo ordenamento. O problema é de outra ordem. Uma declaração de improbidade jamais será só uma declaração. Será sempre uma condenação, mesmo se não executada qualquer pena a ela correspondente. E a ministra, a certa altura da discussão, reconhece tal fato. Mas quem se importa? Ninguém. O negócio é achar um jeito de conferir regularidade processual à decisão material tomada.
Discutiu-se então, qual seria a natureza desta ação autônoma ressarcitória. Celso de Mello chegou a cogitar que se a ação de improbidade está prescrita, não se poderia falar mais em improbidade na ação de ressarcimento (mas depois deve ter se arrependido do comentário quando percebeu que isso iria complicar a lógica do seu voto). A ação ressarcitória seria uma nova ação com rito de improbidade? Seria uma ação ordinária? Seria uma ação civil pública?
Finalmente, surge Barroso para recolocar ordem na casa. O ministro vota, “reajustando-se” e elaborando uma distinção entre atos de improbidade culposos e atos de improbidade dolosos, para declarar a prescritibilidade só dos primeiros. Convenhamos, tal distinção é fruto da imaginação fértil do ministro e por óbvio não está prevista na Constituição. Mas foi uma sacada de mestre. No mais, Barroso colocou um ponto final na estória: “o rito é da ação ordinária”.
E ninguém mais discutiu. Mas o assunto mereceria maior atenção. Se o reconhecimento da imprescritibilidade já é por si só uma afronta à ampla defesa material, a possibilidade de reabertura da discussão sobre a caracterização de improbidade fora do rito legal específico é uma afronta à ampla defesa formal e à legalidade. Isso porque a Constituição prevê no artigo 37, parágrafo 4o que os atos de improbidade importarão o ressarcimento, mas na forma da lei (e a Lei regulamentadora do dispositivo é a 8.429/92). Ao querer interpretar literalmente o parágrafo 5o, o STF descumpriu a literalidade do parágrafo 4o. Como resultado, a improbidade em si mesma passa a ser imprescritível. E tal mecanismo processual, agora oficializado pelo STF, passa a ser uma arma política nas mãos do MP.
Juridicamente, não havia saída para o Supremo. Ao reconhecer a imprescritibilidade do ressarcimento, torna-se imperiosa a admissão da imprescritibilidade da condenação de improbidade. Este dilema era juridicamente insuperável, salvo se admitida a responsabilidade objetiva. Mas os ministros não estavam prontos para chegar a este ponto. Então, somente uma escada política ou um trampolim moral seriam capazes de oferecer alternativas para superar o obstáculo. Foi o que fez o colegiado.
Antes de votar, entretanto, Luiz Roberto Barroso explicou o método de raciocínio que norteia as suas decisões: 1. O juiz deve se ater às possibilidades semânticas da norma (fora disso estará legislando); 2. O juiz deve fazer valer os direitos fundamentais incidentes o caso, ainda que isso seja totalmente impopular; 3. O juiz deve produzir o melhor resultado prático para a sociedade.
Achei super interessante este check list. Mas quando fui aplicá-lo à decisão do ministro não fui capaz de entender o voto, salvo pelo último item. Sem dúvida, Barroso atendeu aos anseios punitivistas da sociedade brasileira. Lastro semântico e defesa de direitos fundamentais, contudo, não encontrei.
Depois de tudo praticamente decidido, Gilmar Mendes insistiu nas suas já conhecidas digressões sobre as irresponsabilidades do MP, sobre o ônus atribuído aos agentes públicos na atualidade, sobre o “Estado Policial”, etc. Concordo com tudo, mas tais argumentos foram pouco úteis ao deslinde do problema. E, afinal, já estava tudo decidido.
O resultado foi proclamado para devolver o processo ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que deverá se pronunciar sobre a existência ou não de ato doloso no caso. E quanto à tese, prevaleceu o texto de Fachin: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na lei de improbidade administrativa.”
Impressiona imaginar que se a Presidenta tivesse colhido todos os votos no primeiro dia do julgamento, certamente a questão teria sido resolvida de forma diversa. A maneira como os ministros se comportaram no caso demostra de forma evidente a captura da Corte por agentes que lhe são externos, bem como expõe a sua insegurança quando do julgamento de temas sensíveis.
Eu consigo entender, e concordo, com a posição do ministro Marco Aurélio; e eu consigo entender, e discordo, da posição do ministro Fachin. Para ambas, ou o parágrafo 5o do artigo 37 diz que é prescritível o ressarcimento, ou diz que não é. A dubiedade reside neste ponto. O que o STF fez, todavia, vai muito além e não se explica por qualquer critério objetivo, racional e jurídico (ainda que possa ser facilmente explicado do ponto de vista subjetivo, político e moral). Ouvindo a argumentação de alguns ministros, inconscientemente, vinha-me na cabeça o Xangô de Baker Street, personagem de Jô Soares.
No mais, a falta de cotejamento entre os argumentos usados no julgamento dos ilícitos cíveis e no da improbidade é algo assustador. A simplicidade com que os ministros alteram posicionamentos e são capazes de sustentar posições antitéticas quando lhes convém, também é algo preocupante.
A solução do STF irá fomentar um problema grave. A partir de agora, nenhum juiz que se preze irá condenar um sujeito sem dolo em casos que envolvam prejuízo ao erário. Afinal, eles sabem que isso poderá acarretar a prescrição. Aliás, estou certo que o MP fará um esforço imenso para sempre protocolar ações que reconheçam o dolo. Ou então, no mínimo, o “dolo presumido”, ou a “cegueira deliberada”, ou “domínio do fato”, ou qualquer outra tese que permita a imprescritibilidade. Na prática, o ônus da prova já foi invertido faz tempo no tocante às ações de improbidade. E assim, passo a passo, vão proliferando as teses defensoras de institutos utilizados para driblar direitos fundamentais.
Eu sigo firme na contramão desta história.
E repito o que escrevi em artigo anterior: dizer que a prescritibilidade favoreceria a impunidade dos detratores do interesse público é algo nonsense. A Administração tem o dever de cobrar, mas tem um tempo pra isso. E este tempo é um marco para que os agentes públicos competentes ingressem com as ações de ressarcimento, sob pena de eles estarem cometendo uma falta. Se não têm prazo, tais agentes jamais estarão em mora. Portanto, a imposição da prescritibilidade nos casos de ressarcimento não favorece a impunidade. Ao contrário, caso o agente responsável pela apuração não o faça, passa a ser ele o requerido do ressarcimento (além das penalidades administrativas possivelmente incidentes). Este seria um forte incentivo para que tivéssemos mais cobranças, e não menos, com a adoção da tese da prescritibilidade.
Ademais, presumir que o Poder Público sempre estará correto em suas pretensões ressarcitórias seria um total absurdo – mas esta talvez seja a premissa implícita de alguns defensores do erário. Aliás, cada vez mais há aqueles que defendem que vale a pena condenar alguns inocentes para pegar vários culpados. O combate à corrupção se tornou um lamentável mantra que autoriza toda sorte de decisões inconstitucionais.
Enfim, “a ampla defesa é incompatível com a eternidade”. Portanto, a prescritibilidade não é só uma questão de segurança jurídica ou de garantia de direitos ou interesses particulares. É uma questão de justiça inerente ao interesse público primário – este sim, típico de um Estado de Direito.
E por falar em justiça, não resisto e termino com a frase lapidar de Gilmar Mendes por mim adaptada: “A gente deve rezar para não perder o senso de justiça, mas se as nossas orações não são acolhidas, devemos continuar rezando para não perder o senso do ridículo”.
Deus nos acuda.