Egon Bockmann Moreira (PR)
Conforme previsto, começam a dar frutos as modificações oriundas da Lei 14.026/2020 (Novo Marco do Saneamento Brasileiro – NMSB), que agregou dispositivos à Lei 11.445/2007 (Diretrizes nacionais para o saneamento básico). Isso porque os preceitos do NMSB não se contentam com a disciplina legislativa, mas exigem positivação de vários regulamentos que especifiquem as exigências legais e permitam sua aplicação prática. Isso ocorrerá aos poucos, majoritariamente por meio de atos da União.
Mas, atenção, a lógica do NMSB é exatamente essa: a União a estatuir diretrizes nacionais, dando aplicabilidade ao art. 21, inc. XX, da Constituição, muitas vezes por meio de regulamentos econômicos, nos termos do art. 174 da Constituição.
O Decreto 10.710, de 31 de maio de 2021, é uma dessas normativas infralegais, que tem por objeto estatuir metodologia de avaliação da capacidade econômico-financeira dos prestadores em vista do dever de universalização exigido pelo NMSB. A regulação do art. 10-B da Lei 11.445/2007 é funcionalizada pelo dever de uniformização positivado no art. 11-B da mesma lei. Essa é a diretriz expressamente positivada no art. 3º do Decreto.
Este artigo tecerá breves notas sobre tal regulamento, com especial enfoque para o fato de que ele (i) é plurifederativo e dinamizador; (ii) estabelece checklist de requisitos probatórios da capacidade e parâmetros das estimativas de viabilidade; (iii) define o procedimento a ser obedecido para a comprovação; e (iv) prescreve alguns dos efeitos da comprovação (ou não) da capacidade econômico-financeira.
1. Decreto plurifederativo e dinamizador
O Decreto 10.710/2021 foi exercitado com lastro formal no art. 84, inc. IV, da Constituição, para dar aplicabilidade aos arts. 10-B e 11-B da Lei 11.445/2007. Todavia, ele antes revela o exercício da competência constitucional do art. 21, inc. XX, c/c art. 174. Trata-se de típico ato administrativo regulamentar, com características próprias, por meio do qual o Estado define “diretrizes” para o setor de saneamento básico, na condição de “agente normativo e regulador da atividade econômica (...) na forma da lei” – no caso, a 11.445/2007.
Tradicionalmente, os regulamentos administrativos eram vistos como de execução, dirigidos à escala hierárquica subordinada ao respectivo chefe do Executivo. Os decretos presidenciais afetavam só a administração federal; ao passo os estatuais e municipais as respectivas administrações subnacionais. Apenas executavam a letra da lei, sem inovar coisa alguma.
O Decreto em exame comprova que esse tempo já passou, eis que se dirige a impor deveres aos “prestadores de serviços de água potável ou de esgotamento sanitário que detenham contratos regulares em vigor” (art. 1º). Aqui, está-se diante da definição de diretrizes setoriais da atividade econômica. O seu sujeito passivo são autoridades estaduais, municipais e consorciadas, seja como poder concedente ou na condição de signatários de contratos de programa, bem como e entidades reguladoras setoriais, lado a lado com os concessionários (pessoas privadas ou empresas estatais).
Essa é a lógica das “diretrizes nacionais”, que podem advir de regulamentos, e que disciplinam, em termos federativos, a pauta de ação das demais pessoas políticas. Os destinatários da regulação são, portanto, pessoas distintas daquelas que integram a Administração federal, bem como agentes privados. Podem ser entidades da Administração direta ou indireta, autárquica ou empresarial, reguladora ou não. Fato é que devem obediência ao regulamento de fonte federal, mas com efeitos nacionais. A sua lógica reflete o que se entende do NMSB: a universalização do setor de água e saneamento, de modo nacionalmente harmônico e uniforme.
Por outro lado, o decreto implica o exercício da função de dinamização da lei, para aqui nos valermos da classificação de Ana Raquel Gonçalves Moniz (“O regulamento administrativo”, RDPE 63/33-88, jul./set. 2018). Não é independente ou autônomo (eis que decorre da lei), tampouco o é puramente executivo (não reproduz o texto legal, mas incrementa sua eficácia). Reitere-se: a competência constitucional de estabelecer diretrizes significa a capacidade de a União editar leis e regulamentos que definam as linhas básicas, o mínimo a ser exigido, em termos materiais e procedimentais.
O Decreto complementa e desenvolve criativamente as previsões do NMSB, minudenciando a metodologia de capacitação econômico-financeira, com vistas à sua aplicação prática – tal como exigido pelo parágrafo único do art. 10-B da Lei 14.444/2007 e pelo art. 21, XX, da Constituição.
2. O checklist comprobatório da capacidade e parâmetros das estimativas de viabilidade
O art. 5º do Decreto define lista exaustiva de indicadores que permitam ver cumprida a primeira etapa da avaliação, que se destina a analisar índices referenciais mínimos. Trata-se de exame de demonstrações contábeis pretéritas relativas ao “grupo econômico” a que pertence o prestador.
Muito embora o Decreto não conceitue grupo econômico, pode-se recorrer à Lei 6.404/1976, que disciplina as sociedades coligadas, controladoras e controladas, bem como os grupos de sociedades (arts. 243 a 277). Nestes dispositivos da Lei de S.A. existem pistas do conceito de grupo econômico-empresarial, que pode ser compreendido como duas ou mais sociedades que se submetam ao mesmo controle ou administração. Supõe-se que o conceito tenha sido utilizado em vista do fato de que as concessionárias deverão organizar-se sob a forma de Sociedade de Propósito Específico – SPE (o que importa dizer que serão os seus acionistas a representar a capacidade demandada).
Logo, o prestador – concessionário – deverá apresentar os índices relativos da(s) pessoa(s) jurídica(s) que o controlam (Lei 6.404/1976, art. 166). Seriam eles os relativos a: (i) margem líquida sem depreciação e amortização superior a zero; (ii) grau de endividamento igual ou superior a um; (iii) retorno sobre patrimônio líquido superior a zero e (iv) suficiência de caixa superior a um (Decreto, art. 5º, incs. I a IV).
Nesta etapa, o critério de avaliação é vinculado, eis que não existe espaço para quaisquer cogitações: o checklist deverá obedecer às “normas contábeis aplicáveis, referentes aos últimos cinco exercícios financeiros já exigíveis e devidamente auditados”, a partir das medianas dos respectivos indicadores (Decreto, art. 5º, §§ 1º e 2º).
Vencida a primeira etapa, que se refere ao passado do prestador (rectius: do grupo econômico do qual ele faz parte), instala-se a segunda, cujo núcleo duro está no art. 7º do Decreto, pertinente ao futuro do contrato de concessão e da viabilidade de serem captadas receitas que sinalizem o cumprimento das metas de universalização. Ao contrário da fotografia revelada pelo checklist, as estimativas dizem respeito a projeções futuras esboçadas em estudos de viabilidade reveladores do fluxo de caixa e respectivos planos de captação.
Os estudos de viabilidade, como o nome já diz, são análises que pretendem conjugar dados pretéritos com projeções de obrigações futuras, a fim de demonstrar a consistência daqueles em vista do dever de cumprimento destas. A sua avaliação é marcadamente discricionária, com lastro nos parâmetros permitidos (repactuação tarifária e aportes) e proibidos (ampliação do prazo de contratos de programa, amortização de capital de terceiros e de bens reversíveis em prazo superior ao do contrato e indenização por valor residual de investimentos em bens reversíveis ao final do contrato), constantes dos §§ 2º e 3º do art. 7º do Decreto.
De qualquer forma, na segunda etapa o ônus argumentativo é imputado ao prestador do serviço, que haverá de comprovar, nos termos mais objetivos possíveis, que os seus dados são verídicos e as projeções, consistentes. Em suma, é a ele que cabe demonstrar que as finanças do contrato suportam a universalização devida – e como isso se dá. Essa demonstração exige o atendimento a rito específico.
3. O procedimento de comprovação de capacidade
As etapas previstas nos arts. 5º a 9º do Decreto deverão obedecer a procedimento, formal, público e regular, positivado nos respectivos arts. 10 a 14. Estes definem o sujeito a quem caberá avaliar o requerimento, bem como os deveres procedimentais para a atestação da capacidade econômico-financeira, imputados ao prestador (concessionário ou não). Tais obrigações serão exercitadas junto às respectivas entidades reguladoras, com prazo final em 31 de dezembro de 2021.
Uma vez instalado tal pedido, do qual a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA deverá ser copiada (art. 11, § 2º), a entidade reguladora competente deverá proferir decisão fundamentada a respeito do cumprimento (ou não), por parte do prestador, das diretrizes de capacidade econômico-financeira.
Muito embora a segunda etapa exija a apresentação de documentos técnicos, a entidade reguladora não estará a eles subordinada. Conforme acima mencionado, apenas a primeira etapa tem características vinculantes. A segunda é carregada de discricionariedade, o que exigirá cuidados reforçados no exame dos documentos, eventual produção de provas e, especialmente, na motivação do ato que declara (ou não) como comprovada a capacidade econômico-financeira do prestador.
4. Os efeitos da comprovação da capacidade econômico-financeira
O ato de comprovar significa tornar evidente, de modo absoluto, que o prestador conseguirá cumprir os deveres de universalização dos serviços. Que os números e as projeções por si elaboradas e submetidas à entidade reguladora são de tal modo consistentes e verossimilhantes, que permitem saber, no dia presente, que muito provavelmente as metas serão atendidas.
Sem a comprovação, está proibida a celebração de termo aditivo que incorpore as metas de universalização ao respectivo contrato (Decreto, art. 19), tal como exigido pelo art. 11-B da Lei 11.445/2007. O negócio jurídico-administrativo restará estagnado e desconforme a legislação vigente.
Por isso que os contratos que frustrarem tal expectativa serão considerados irregulares – ou seja, descumpridores do “princípio fundamental” positivado pelo art. 2º, inc. IX, da Lei 11.445/2207 (definidor de contratos regulares como “aqueles que atendem aos dispositivos legais pertinentes à prestação de serviços públicos de saneamento básico”). A qualificação de “irregular” não significa nulo ou anulável (eis que não atinge os elementos essenciais do contrato), mas desconforme a regulação setorial, eis que afastado dos princípios e regras que a disciplinam.
Por conseguinte, e quando menos, contratos irregulares certamente experimentarão ônus e encargos extraordinários quando da procura por financiamentos. De igual modo, não poderão ser prorrogados – mas deverão ser reestruturados ou ter seu vencimento antecipado. Afinal, comprovou-se tecnicamente que tais contratos não cumprem o dever de universalização.
Considerações finais
Como se pretendeu demonstrar nestas breves notas, o NMSB traz significativos desafios – não só econômico-financeiros, mas especialmente jurídicos. Mas, atenção: o texto pretendeu ser antes descritivo do que crítico em relação ao Decreto 10.710/2021. Trata-se de compreensão inicial. Permito-me uma só conclusão: caso pretendamos manejá-lo com conceitos e ferramentas antigas, haverá incremento proporcional nas dificuldades de cumprir as diretrizes nacionais de universalização dos serviços de água e saneamento.
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