Egon Bockmann Moreira (PR)
Ao examinar a página do site da Presidência da República denominada de “Legislação COVID-19”, imediatamente veio-me à memória as imagens de cidades europeias no segundo pós-guerra. Estruturas tradicionais despedaçadas. Monumentos destruídos. Prédios históricos em ruínas, com vigas e tijolos dispersados sem lógica alguma. Toda a ordenação harmônica da vida urbana transformada em terra arrasada. Mas, por que isso se deu quando examinei o site eletrônico da legislação federal relativa à pandemia que nos assola?
Um exame rápido, feito ao final da primeira semana de abril, detectou que a dita legislação é composta por, em ordem crescente: 01 projeto de lei; 01 ato conjunto da Câmara e Senado; 01 decreto legislativo; 01 circular; 01 decisão; 01 deliberação; 02 recomendações; 03 leis; 08 instruções normativas; 11 medidas provisórias; 12 decretos; 33 resoluções e 133 portarias. Por enquanto, são quase duzentos atos legislativos.
Nessa legislação, editada desde fevereiro até 02 de abril de 2020, num período de aproximadamente dois meses já se pode notar a significativa proeminência dos atos regulamentares (que vinha desde o início de 2020: já temos 114 decretos presidenciais neste ano, numa média de 38 por mês...). Com a curiosidade de que que nem todos os atos federais obedecem ao Decreto 10.139/2020, cujo art. 2º limitava os atos normativos inferiores a decreto à forma de portarias, resoluções e instruções normativas. Existem os mais variados atos e muitas nomenclaturas, em dinâmicas até então inéditas.
O mesmo se dá na página do governo do Estado do Paraná dedicada ao COVID 19, onde constam 10 resoluções e 23 decretos. Se pesquisarmos os 26 Estados e o Distrito federal os números assumem progressão geométrica, em velocidade igual ou superior à federal. O que essa rápida e imprecisa pesquisa revela? Como ela me lembrou as ruínas do Pós-Guerra?
Se pensarmos bem, os edifícios do Direito Administrativo clássico já foram atingidos. Não precisamos gostar (ou não) disso, é apenas uma constatação. As leis, outrora estruturantes da convivência público-privada e editadas para vigorar eternamente (ou até nova lei revogadora), passaram ao segundo plano. Uma só lei e 11 medidas provisórias não representam nem 10% das portarias no plano federal. Claro que aqui temos atos das mais diversas autoridades, mas isso também é muito revelador: a hierarquia normativa está oficialmente posta em xeque. É preciso adotar medidas normativas e elas vem sendo implementadas, num ritmo que não se submete ao Poder Legislativo.
Por outro lado, é certo que existem atos administrativos federais, estaduais, distritais e municipais os mais variados – desde ordens de requisição até recomendações e empurrõezinhos -, os quais interferem brutalmente nas nossas liberdades clássicas. Estamos fazendo e deixando de fazer muita coisa não em virtude de lei, mas em razão de atos regulamentares editados de forma inovadora. Decretos e portarias que não nascem para dar “fiel execução” à lei, mas criam deveres e dizem como podemos (ou não) exercitar algumas das nossas liberdades. Logo, o art. 5º, inc. II, e o 84, inc. IV, da Constituição, saíram de cena e cederam espaço ao art. 174: o Estado como “agente normativo e regulador” da vida privada (não só das atividades econômicas, mas de quase todas as liberdades).
O prédio da legalidade está sendo atingido, portanto. Ao menos na sua compreensão tradicional. O que nos coloca diante de novos desafios, ainda mais agudos do que apenas escrever artigos, teses e dissertações sobre princípio da juridicidade, capacidade normativa de conjuntura e consensualidade administrativa. Tais temas chegaram ao mundo real. Deixaram de ser Law in the books e se tornaram Law in action. Está na hora, portanto, de levarmos a sério a ressignificação do princípio da legalidade e compreender que a administração pública deve atuar “conforme a lei e o Direito” (Lei 9.784/1999, art. 2º, par. ún., inc. I), sempre levando em conta “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (LINDB, art. 22).
Tal como o magnífico livro do historiador britânico Tony Judt (Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945) nos demonstra, a Europa não só se reconstruiu exemplarmente de suas ruínas, demonstrando o esforço e a capacidade dos povos de vencer os desafios mais árduos. A Europa do Pós-Guerra, assim como hoje o princípio da legalidade, assumiu novo significado. Passou a ser reconhecida como um espaço conjunto de defesa dos direitos humanos. Logo, hoje a nossa missão é a de compreender os fatos que nos circundam e desenvolver técnicas e métodos que permitam ao Direito Administrativo reocupar o espaço que lhe é próprio: a defesa das liberdades privadas num mundo desafiador.
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