Egon Bockmann Moreira (PR)
Se há algo com que todos os brasileiros concordam, independentemente de crenças e partidos, é a necessidade imediata de ações que implementem a retomada do crescimento econômico. No que respeita à Administração Pública, são medidas de Estado – e não de governo – que precisam ser adotadas, o quanto antes, sob pena de a recessão convolar-se em depressão. Será necessário muito trabalho, comprometimento ético e temperança. Quanto às políticas públicas, o princípio da eficiência precisa assumir papel sobranceiro.
Ocorre que muitos juristas tendem a desprezar a eficiência administrativa, em favor de medidas de controle repressivo. Parte-se da ideia de que o Poder Público precisa ser inibido – seja por leis, seja por ações jurisdicionais, seja pelo Ministério Público, seja pelas Cortes de Contas – refletindo aquilo que já foi chamado de “Direito Administrativo do Inimigo”.
São poucos os cursos e manuais de Direito Administrativo – ou mesmo de Direito Econômico – que se preocupam com temas relativos a condutas proativas da Administração Pública. Ou com medidas de cooperação amigável entre Administração, pessoas privadas e órgãos de controle. Ao contrário: extensos são os capítulos referentes ao controle repressivo, a maioria dos quais discorrendo sobre medidas inibitórias. Isso vem contaminando o Direito Administrativo brasileiro: basta ver a reação negativa quanto à arbitragem nos contratos administrativos e ao Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI. De igual modo, poucos são os trabalhos que se preocupam com a negociação contratual pré-adjudicatória, apesar de prevista expressamente nas Leis 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), 10.520/2002 (Pregão) e 12.462/2011 (RDC). Impera a denominada indisponibilidade do interesse público e a correspondente impossibilidade de realizar composições amigáveis.
Isto é, a Administração Pública tornou-se refém de uma legalidade ortodoxa combinada com múltiplos controles externos (intensos e extensos; preventivos e repressivos). Tal perspectiva inibe o administrador, sempre receoso de ser punido por males que não causou. A academia e os tribunais se dedicam à repressão, porém não se preocupam com cooperação nem com a eficiência. Claro que isso intimida o administrador e desestimula as iniciativas. Mas, como sair desse ciclo vicioso? O que está por detrás dele? Talvez uma boa pista esteja no conceito de discricionariedade administrativa.
De alguns tempos para cá, a discricionariedade ficou marcada pelo dever de sempre gerar a melhor decisão para executar a lei no caso concreto. Só a melhor, nenhuma outra. Assim, a decisão discricionária só seria válida se atendesse de forma excelente ao interesse público cometido ao agente administrativo. A ideia por detrás disso é ótima, mas o resultado é péssimo.
Isso porque, quando se fala em medidas de valor gradativas como “a melhor”, “a superior” ou “a excelente”, abre-se a possibilidade de se discutir a qualidade da decisão: se foi – ou não – a melhor de todas. E se parte do pressuposto de que os administradores não são seres humanos, mas deuses em constante competição com outros deuses (os órgãos e entidades de controle), cada qual devendo dizer qual é a (mais) excelente decisão para o caso concreto.
Ora, caso se defenda que o exercício da competência discricionária precisa sempre resultar na melhor decisão, tem-se que só pode ser prestigiada aquela escolha superior a todas as outras disponíveis. Se assim não for, o ato administrativo deve ser anulado. Porém, devemos nos atentar para o fato de que essa situação é de difícil, senão impossível, concretização no mundo dos fatos. Cogita-se justamente daquela escolha que o homem médio – o administrador bem preparado, em sua condição humana -, está impossibilitado de realizar: a que agrade a todos. Isso simplesmente não existe.
Porém, não haveria nada de mais quanto a isso, se porventura existisse uma só pessoa a dar a última palavra sobre o que é melhor ou excelente: o administrador público a quem foi cometida a competência discricionária para proferir o ato. Em outras palavras, caso se respeitasse o núcleo duro da competência privativa que permite a decisão discricionária. Porém, não é isso que se passa no direito brasileiro: há vários sujeitos que se auto-atribuem a comparação entre as escolhas e a definição da melhor delas. Contudo, se bem vistas as coisas, fato é que só o administrador que enfrenta os desafios da prática tem condições – objetivas e subjetivas – de definir o que é melhor (ou pior) para as circunstâncias do caso concreto.
Por exemplo, se o agente público competente definir de modo fundamentado que determinada proposta na licitação é a mais vantajosa (a mais eficiente para o escopo da contratação pública), apesar de ter o preço mais alto do que o das demais, esta parte da decisão não deveria ser revisada nem pelo Ministério Público nem pelo Poder Judiciário nem pelo Tribunal de Contas. O mesmo se diga quanto a soluções técnicas, altamente especializadas, de engenharia ou de gestão – sobretudo as proferidas por agências reguladoras. De igual modo, as decisões de Direito Ambiental, vindas de órgãos especialmente constituídos para zelar do meio ambiente equilibrado.
Todavia, isso nem sempre ocorre. Os órgãos de controle externo tendem a se arrogar a competência para atribuir qualificativos à decisão administrativa – e inventam outra, que qualificam como “a melhor ainda” do que a proferida pela pessoa a quem a lei e os regulamentos definiram como competente.
A toda evidência, não existe solução única para tais excessos no controle das decisões discricionárias. Mas há alguns caminhos que permitem atenuar tais usurpações de competência. Dentre eles, está o denominado princípio da deferência, ao estabelecer que decisões proferidas por autoridades detentoras de competência específica – sobretudo de ordem técnica – precisam ser respeitadas pelos demais órgãos e entidades estatais (em especial o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Cortes de Contas).
Lastreado nos princípios da separação dos poderes e da legalidade, o princípio da deferência não significa nem tolerância nem condescendência para com a ilegalidade. Mas impõe o devido respeito às decisões discricionárias proferidas por agentes administrativos aos quais foi atribuída essa competência privativa. Os órgãos de controle externo podem controlar o devido processo legal e a consistência da motivação nas decisões discricionárias, mas não podem se imiscuir no núcleo duro daquela competência. Precisam respeitá-la e garantir aos administradores públicos a segurança jurídica de suas decisões.
Assim, a necessária retomada do crescimento econômico passa também pelo prestígio ao princípio da deferência. Caso se persista na busca incessante da decisão excelente – com a sucessão de controles extraordinários – haverá imensa dificuldade em se implementar as soluções cabíveis para atos e contratos administrativos, tal como definidas pelos administradores a quem a lei atribuiu a o dever de decidir. Haverá incremento significativo nos custos de transação e imenso desestímulo aos administradores que pretendem trabalhar com perseverança. Muito há a ser feito, mas a aplicação do princípio da deferência e o respeito à discricionariedade já seriam grandes passos.
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