Colunistas

A negociação processual e sua incidência nos processos administrativos

ANO 2016 NUM 228
Egon Bockmann Moreira (PR)
Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFPR. Professor Visitante na Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e nos Programas de Mestrado e Doutorado da USP e da FGV/RJ (2018). Mestre e Doutor em Direito. Especialista em Regulação Econômica (Universidade de Coimbra) e Mediação (Harvard Law School e Pepperdine Law School). Advogado. Árbitro.


05/08/2016 | 6578 pessoas já leram esta coluna. | 14 usuário(s) ON-line nesta página
Desde março do corrente ano, o processo administrativo brasileiro é regido (também) pelo Novo Código de Processo Civil (“CPC/2015”). Isso porque os artigos 14 e 15 prescrevem sua aplicação imediata, de modo supletivo e subsidiário, aos processos administrativos. Por conseguinte, o que determina a incidência do CPC/2015 aos processos administrativos é o princípio da legalidade: em virtude da lei, os agentes públicos e as pessoas privadas são obrigados a aplicá-lo nas relações jurídico-processuais administrativas.
 
Conforme destacado no artigo publicado nesta Revista Colunistas Direito do Estado (“O impacto do CPC/2015 nos processos administrativos: uma nova racionalidade”), fato é que o processo administrativo brasileiro experimentou significativa mutação com o CPC/2015. Muito embora as normas processuais-civis precisem se submeter à lógica processual-administrativa, fato é que elas instalaram série substancial de alterações. Dentre elas, uma de maior relevância é a “negociação processual” prevista pelo art. 190: a competência atribuída às autoridades administrativas para que pactuem com as pessoas privadas os respectivos direitos, ônus e deveres processuais em sentido estrito. Isto é, aqueles vínculos e prerrogativas que digam respeito exclusivamente à relação jurídica processual (e não à relação de direito material a ela pertinente), inclusive o calendário processual (art. 191). 
 
Para melhor compreensão do tema, vale a transcrição do art. 190 do CPC/2015: “Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único.  De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”
 
Bem vistas as coisas, trata-se de negociação endoprocessual: aquele ato por meio do qual as partes na relação jurídico-processual negociam o processo ele mesmo. Este dispositivo autoriza que as partes desenvolvam tratativas a respeito do procedimento a ser implementado no processo, bem como o ajustem “às especificidades da causa”, além de poderem convencionar sobre os “ônus, poderes, faculdades e deveres processuais”. Aqui existe forte integração entre os direitos das partes e os direitos do processo (estes a ser matizados por aqueles, ao interior da negociação), acentuando o caráter cooperativo do CPC/2015 – a ser observado também nos processos administrativos. 
 
Mas reitere-se que as tratativas e a futura convenção dirão respeito ao processo em si mesmo, a confirmar a existência de uma relação jurídica diferenciada, a processual, com direitos, ônus e deveres específicos. Afinal de contas, se não houvesse uma relação jurídico-processual, não existiriam direitos, deveres e ônus processuais a ser negociados. Esta ordem de negócios jurídicos atípicos diz respeito a direitos e deveres processuais eles mesmos. O objeto do negócio jurídico será uma situação jurídico-processual e a sua eficácia será processual stricto sensu.
 
No que respeita a tais negociações endoprocessuais, o regime jurídico do processo administrativo impõe cautelas extraordinárias. Isso porque a Administração Pública será, ao mesmo tempo, parte e julgador – além de detentora de deveres de ordem pública (isso sem se falar em sua posição de hipersuficiência material-processual, decorrente de seu poder político-econômico). Logo, ela não poderá convencionar no sentido de abdicar de competências relativas ao seu dever-poder processual. Demais disso, tampouco poderá submeter e/ou induzir as pessoas privadas a negociações impostas. Quem negocia, dispõe e abdica consensualmente; jamais subordina e impõe de modo unilateral.
 
Porém, feitas essas ressalvas, é de se levar muito a sério essa possibilidade de negociações no processo administrativo. Afinal de contas, se a Administração pode transacionar no processo civil, por que não no administrativo?; se pode se submeter à arbitragem, por que não pautar negocialmente o processo administrativo?; se pode realizar contratos e termos aditivos, por que não efetivar transações processuais?
 
Por exemplo, pense-se num processo de licitação, em que a Administração e os interessados podem transacionar a respeito do efeito suspensivo (ou não) dos recursos administrativos. Já num processo administrativo disciplinar pode-se estabelecer tratativas a propósito do prazo para a defesa e do termo para ser proferida a decisão final. De igual modo, em pedido de reequilíbrio econômico financeiro de contrato administrativo deduzido em agência reguladora, as partes podem negociar a respeito das fases, prazos e eventual prova a ser desenvolvida – bem como do perito escolhido por elas de comum acordo. O mesmo se diga sobre os processos de controle por parte dos Tribunais de Contas, aos quais pode ser atribuída consensualmente a necessária celeridade – prefixando-se a agenda processual. Nada disso atenta nem contra a lógica nem contra o regime jurídico do processo administrativo. Ao contrário, tais soluções amigáveis prestigiam os princípios da legalidade, da eficiência e da duração razoável do processo.
 
O importante está em que as partes interessadas e a Administração Pública tenham consciência de que negociações processuais devem ser republicanas e legítimas – qualificadas pela impessoalidade e publicidade. Por meio delas, as pessoas que possuem maior conhecimento a respeito das peculiaridades do caso podem inibir medidas despiciendas ou protelatórias e abdicar expressamente de formalidades. Em outras palavras, a maior parte das queixas feitas quanto aos formalismos inúteis dos processos administrativos podem ser transpostas através de pactos endoprocessuais.


Por Egon Bockmann Moreira (PR)

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