Edite Hupsel (BA)
Finalmente, após decorridos mais de 25 anos do PL 1292/1995 ter tido encaminhamento no Congresso Nacional e após sua junção com outros projetos de lei que buscaram regular as licitações e contratações públicas no nosso país (559/2013 e 6814/2017), temos, com a reunião de seus textos e de suas conquistas, uma nova lei disciplinando a matéria.
Longe de ser um diploma perfeito − até mesmo porque, como obra humana que é, a lei é imperfeita, demandando um aperfeiçoamento com sua melhor interpretação − é aquele que nos foi dado pelo legislador nacional.
Merece elogios nos seus avanços e conquistas; merece cuidados na sua aplicação.
Tendo entrado em vigor na data da sua publicação sem que lhe fosse instituída uma vacatio legis − como talvez recomendassem aplicadores da lei –, postergou, porém, a revogação da Lei nº 8.666, de 1993, da Lei nº 10.520, de 2002, e dos artigos 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 2011, para após 2 (dois) anos da sua publicação.
Durante esses dois anos vão coexistir no país diversos diplomas legais regulando licitações e contratações públicas. A escolha pela utilização de um ou outro regramento será feita pela Administração responsável pela licitação e contratação.
No que diz respeito ao âmbito de aplicação do novel diploma, foram expressamente afastadas as empresas estatais porque hoje, e após quase três décadas do comando constitucional [1], finalmente, têm disciplinamento próprio.
Aplica-se às administrações públicas direta, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, nelas incluídos os órgãos dos demais poderes quando no exercício de função administrativa, abrangendo, ainda, os fundos especiais controlados pelo Poder Público.
Mas nem todos os seus dispositivos são de aplicação obrigatória a todos os entes da federação.
À União foi dada, pela Lei Maior do país, competência privativa para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação pública, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todas as unidades federadas” [2]. Somente dispositivos que possam ser identificados como “normas gerais” têm aplicação obrigatória aos estados-membros, municípios e Distrito Federal.
E aí surgem questões de grande relevância.
Normas gerais, no Direito, são aquelas que protegem e reproduzem princípios gerais e específicos de um determinado ramo da ciência jurídica.
Quais os dispositivos da nova Lei protegem princípios constitucionais e, também, princípios da licitação? Quais disciplinam meros procedimentos administrativos e, por esta razão, se inserem no rol de competências das demais entidades federadas?
Na elaboração da nova lei foi perdida a oportunidade de serem afastadas todas as árduas questões que surgiram quando da aplicação da Lei no 8.666 de 1993 que dificultaram e retardaram a atuação dos legisladores dos entes federados e que provocaram, inclusive, algumas ações de inconstitucionalidade. No seu texto, não foram separados em capítulos os dispositivos que têm conteúdo de norma geral daqueles referentes a procedimentos, competências e bens, matérias específicas da União, da Administração Pública federal. Procedimentos administrativos devem ser regulados por cada entidade federada [3].
Mais uma vez, caberá aos intérpretes e aplicadores da lei e aos legisladores estaduais e municipais, em um árduo trabalho de “garimpagem”, a identificação dos dispositivos aplicáveis, obrigatoriamente, à Administração Federal e dos que, por protegerem princípios, importam em normas gerais e têm aplicação obrigatória a todos os entes federados. Mais uma vez, a competência legislativa suplementar dos demais entes da federação demorará a ser exercida.
Deixando de lado essas críticas referentes, inclusive, à flagrante invasão de competência da nova lei [4] merece elogios a inclusão expressa, dentre os princípios a serem observados quando da sua aplicação, o do planejamento, da segregação de funções e do desenvolvimento nacional sustentável.
O do planejamento está umbilicalmente ligado à eficiência, um dos princípios da Administração Pública insculpidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal. A obrigatoriedade de cada ente federativo elaborar o seu plano anual de contratações é um dos desdobramentos deste princípio.
O da segregação de funções, com seu alargamento no texto da lei, busca proteger a moralidade, separando relevantes atribuições de agentes públicos entre diversos servidores, com vistas a evitar que a acumulação de papéis no processo de licitação e contratação venha a facilitar conluios entre estes e os licitantes ou contratados.
O do desenvolvimento nacional sustentável, como princípio a ser observado nas licitações e contratações públicas, indica que é preciso respeitar critérios sociais, ambientais e econômicos nessas contratações. Tanto a sustentabilidade pode ser valorizada quando no julgamento de propostas, quanto pode servir de critério para desclassificação de licitantes.
O princípio da razoabilidade também consta dentre os elencados na Lei que, em diversos dos seus dispositivos, abraça e dá assento ao princípio do formalismo moderado, indicando, reiteradas vezes, a necessidade do aproveitamento de licitações e contratos onde sejam detectadas irregularidades que não os comprometam, em prol do interesse público e da continuidade do processo licitatório, da obra ou serviço. Neste sentido, em defesa do princípio do formalismo moderado já vinha evoluindo a doutrina e a jurisprudência do Tribunal de Contas da União − TCU [5].
Quase nada inovou a recente lei quanto aos tipos de licitação.
A do tipo maior desconto, na verdade, trata-se de uma do tipo menor preço.
Porém, aquela que tem como critério de seleção o maior retorno econômico, a ser utilizado para celebração de contrato de eficiência, traz alguma novidade a despeito de contratos deste tipo já virem, desde há muito, sendo celebrados pelo Poder Público. Nesta modalidade, há que ser levada em conta a maior economia a ser gerada para a Administração, com remuneração a ser fixada em percentual incidente de forma proporcional à economia obtida na execução do contrato.
No que diz respeito às modalidades, inovou o recente diploma quando afastou o critério do preço estimado para a contratação para indicação da modalidade do certame, deixando de nelas ter previsão o convite e a tomada de preços.
E a introdução do diálogo competitivo, já previsto em diretivas da União Europeia, tem sido bastante festejada pelos estudiosos da matéria[6]. Nas situações em que a Administração não tiver condições de definir, com precisão, as especificações técnicas de seu objeto, tratando-se de inovações tecnológicas ou técnicas, e houver a necessidade de definir e identificar os meios e alternativas que possam satisfazer a sua demanda buscando a solução técnica mais adequada, a utilização da modalidade do diálogo competitivo vem a ser mais do que indicada.
Modalidade a ser utilizada também nas licitações para contratação de concessões comuns e de parcerias público-privadas [7], há que ser processada em duas etapas, na forma disciplinada pela Lei: a do diálogo entre a Administração e particulares e a fase competitiva propriamente dita. O seu rito se encontra descrito de forma minuciosa no texto da Lei.
Outras novidades merecem também ser festejadas na medida em que objetivam propiciar maior controle e mais eficiência nas contratações públicas.
A criação do Portal Nacional de Contratações Públicas, um sítio eletrônico oficial destinado à divulgação oficial dos atos relativos às licitações e contratações, trará maior transparência e controle dos atos da Administração, nele sendo de divulgação obrigatória o edital e seus anexos, as notas de desempenho dos licitantes em contratos anteriores e os contratos e aditivos, nestes como condição de sua eficácia, maior publicidade terão os atos da Administração Pública.
Muito bem-vinda é a criação da figura do “agente de contratação”, encarnada por servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes ao quadro permanente da Administração - menos vulneráveis às pressões de agentes superiores e de agentes políticos em face à não precariedade de seus vínculos - designados pela autoridade competente para tomar decisões e impulsionar o procedimento licitatório.
No que diz respeito às garantias para o poder público como contratante, as inovações ocorridas com o “seguro-garantia” são festejadas. Nas contratações de grande vulto [8] o percentual equivalente a até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato é admitido e, também, a cláusula de retomada, com a obrigação da seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato [9].
A racionalidade econômica dos dispositivos se aproxima do chamado steps in rights previsto nas Leis de PPP e de Concessões como direito dos financiadores dos contratos de assumir o controle da SPE em caso de inadimplência com o Poder Público. No caso de seguro-garantia, poderá estar prevista, no edital, essa obrigação da companhia seguradora.
Como consequência de uma garantia de tal porte, o aumento do custo da obra é inevitável, daí porque cautelas e reflexões merecem sejam feitas quando da decisão de sua exigência no edital.
Outra novidade trazida no texto da Lei foi a possibilidade de a Administração dar caráter sigiloso ao orçamento estimado da contratação, assim como já previsto na Lei do RDC, sigilo que não prevalece, por óbvias razões, para os órgãos de controle.
O orçamento sigiloso não é regra e somente deverá ser utilizado quando houverem sólidas razões para tal medida. O argumento segundo o qual esse sigilo inicial pode trazer propostas mais vantajosas para o certame e aumentar a competitividade deve ser considerado.
Merece aplausos o fato de a nova Lei de licitações ter positivado, no seu texto, a desconsideração da personalidade jurídica quando esta for utilizada com abuso de direito para facilitar, encobrir ou dissimilar a prática de atos ilícitos ou para provocar confusão patrimonial, estendendo os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou às empresas do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado[10].
Trata-se de um instituto localizado na Teoria Geral do Direito que objetiva desestimular a fraude e o abuso de direito cometidos por meio da pessoa jurídica. Na legislação trabalhista, no direito tributário, no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.884, de 1994, que tipifica os crimes contra a infração da ordem econômica, tem essa teoria consagração. O novo Código Civil de 2002, no seu artigo 50, também prevê a possibilidade desta desconsideração.
Na esfera administrativa, as mesmas razões amparam a aplicação dessa teoria. E mesmo sem previsão expressa em lei [11].
No âmbito do Estado da Bahia, a desconsideração da personalidade jurídica, na esfera administrativa, já vinha sendo há muito aplicada, mesmo antes de ter previsão expressa na Lei Estadual nº 9.433, de 2005, que disciplina, no âmbito da Administração Pública estadual, o regime jurídico das licitações e contratos administrativos.
Aqueles que labutam na área de licitações e contratações públicas devem se alegrar com a positivação dessa teoria agora também na Lei nacional de licitações.
Mais uma novidade trazida na Lei vem a ser a obrigatoriedade de previsão, em determinados contratos, de uma matriz de riscos, cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidade entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiros decorrente de fatos supervenientes à contratação [12].
Nas contrações de obras e serviços de grande vulto ou quando forem adotados os regimes de contratação integrada ou semi-integrada adiante mencionados, existe obrigatoriedade de o edital contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado [13] Na ocorrência de eventos supervenientes alocados na matriz de riscos como responsabilidade da Administração, ocorrerá alteração do valor contratual em favor do contratado.
A Lei de PPP já trazia a previsão de alocação de riscos entre as partes[14] alterando a lógica tradicional dos contratos administrativos nos quais os acontecimentos futuros e incertos, em ocorrendo, eram resolvidos contratualmente com base na teoria da imprevisão, força maior, caso fortuito ou fato do príncipe. Também a Lei das Estatais impõe a previsão, nos editais, da matriz de riscos, quando se tratar de contratações integradas e semi-integradas [15].
Nesses ajustes administrativos que preveem a repartição de riscos entre as partes, fica afastada a incidência dos dispositivos da Lei que tratam de alterações contratuais para restabelecer a equação econômico-financeira inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis. O próprio dispositivo que trata das alterações contratuais indica o respeito, em qualquer caso, à repartição objetiva de risco estabelecida no contrato [16].
Ou observa-se a matriz de riscos − na forma prevista no edital e pactuada nos contratos indicados na Lei −, sem promover alterações nesses ajustes, ou reequilibra-se os contratos alterando-os com base nos dispositivos legais que fundamentam sua alteração para fazer o reequilíbrio da equação econômico-financeira inicial. Parece ser esta a compreensão a ser extraída do texto da Lei.
No rol dos procedimentos auxiliares da licitação, o procedimento de manifestação de interesse − referido com a conhecida sigla PMI − teve assento expresso na Lei, ao lado do credenciamento, pré-qualificação, sistema de registro de preços e registro cadastral[17]
Já antes amparado na Lei de Concessões [18], a sua utilização nas licitações para contratação de parcerias público-privadas é frequente e de bastante utilidade.
Através desse procedimento e na forma disposta em regulamento, a Administração solicita à iniciativa privada a propositura e a realização de estudos, investigações e projetos de soluções inovadores que contribuam com questões de relevância pública.
Concluídos os estudos, levantamentos e projetos, estes são disponibilizados ao Poder Público que seleciona aqueles que utilizará para o certame, se vier efetivamente a realizá-lo. O procedimento denominado de PMI não obriga a Administração a promover uma licitação, podendo ela, justificadamente, desistir de instaurar o procedimento licitatório. Em licitando, ao vencedor do certame cabe ressarcir a empresa dos dispêndios correspondentes.
Esse instrumento é muito bem-vindo na Lei geral de licitações e contratações públicas, visto que propicia a cooperação de empresas privadas na elaboração do ato convocatório e dos anexos de um edital de um procedimento licitatório. A interação prévia com o mercado para elaboração de objetos complexos é de grande utilidade.
Diferente do diálogo competitivo, modalidade de licitação introduzida pela nova Lei, no PMI, a relação do particular ocorre em momento anterior ao da licitação propriamente dita.
Ao disciplinar as fases do procedimento licitatório, a nova Lei indicou a da apresentação das propostas antes da fase de habilitação.
Não mais era tolerado o ineficiente procedimento previsto na Lei nº 8.666 de 1993. Tanto é assim que todos os diplomas legais que tratam da matéria editados nesses últimos anos trouxeram a inversão das fases do procedimento licitatório como obrigatória ou mesmo facultativa.
A Lei do Pregão, de 2002; a Lei baiana de licitações e contratações, de 2005; a Lei de licitações do Paraná, do Estado de São Paulo e tantos outros diplomas editados por outras entidades estatais assim procederam. A possibilidade desta inversão foi consagrada na Lei de PPPs e, também, introduzida na Lei de Concessões. A Lei federal nº 12.232, de 2010, que disciplina as licitações para contratação de serviços de publicidade pela Administração Pública, trouxe esse procedimento já invertido. A Lei do RDC impõe que a fase de apresentação das propostas anteceda a fase de habilitação, exigindo justificativa expressa para a não inversão. Da mesma maneira, a Lei das Estatais prevê o procedimento já invertido. Hoje tem assento na Lei geral de licitações e contratações.
Não mais se fará necessário enquadrar bens e serviços complexos e especializados como bens e serviços comuns, com vistas a justificar a realização de pregão para sua contratação e fugir do procedimento ineficiente fixado na Lei nº 8.666 de 1993.No que diz respeito
Somente o licitante vencedor será convocado para apresentar os documentos de habilitação. Uma só fase recursal foi instituída no novo diploma.
O princípio da celeridade e o da eficiência aí nortearam o legislador pátrio.
No que diz respeito a compra ou locação de bens, outra evolução veio a ocorrer no texto da Lei quando impôs a realização de estudo técnico preliminar de custos considerando os custos e benefícios de cada opção, com indicação da alternativa mais vantajosa [19].
O tema “locações anti-econômicas” muito foi debatido na Administração Pública e a relevante posição do TCU sobre o assunto marcou um divisor de águas no assunto [20]. A eficiência e a economicidade devem pautar a atuação administrativa.
Locações de imóveis, de veículos, de equipamentos de informática, ao invés da sua aquisição, devem ter a sua vantajosidade indicada, demonstrada, no processo licitatório. Assim impôs o legislador na Lei.
Quanto ao tema das “licitações internacionais”, oportunidade foi perdida pelo legislador de melhor dicipliná-lo na nova Lei geral.
Primeiro, acreditamos que merecia ser disciplinado em uma seçâo apartada na qual houvesse uma melhor sistematização do assunto,e que também tratasse da participação de empresas estrangeiras em licitações públicas nacionais e internacionais, facilitando a aplicação dos seus comandos e dando maior segurança aos agentes públicos e ao mercado.
Nessa seção seriam indicados os regramentos para os tipos de certames; apontada a forma, os prazos e os meios de publicação do edital; indicada a aceitação, ou não, de empresas estrangeiras sem autorização para funcionamento no país; declinadas as exigências para a habilitação; indicadas as moedas para pagamento; definida a questão da equalização das propostas, quando necessária; e, finalmente, indicada a questão da confidencialidade durante o processo de sua avaliação.
Também a definição de licitação internacional trazida no texto da Lei parece-nos insuficiente para pacificar questões que surgem da realização de certames desta natureza[21].
Ao revés, causa dúvidas quanto às licitações com editais publicados em sites internacionais e realizadas eletronicamente em sites de organismos financeiros internacionais de que o Brasil faça parte ou de agências estrangeiras de cooperação. Esses certames claramente não podem ser entendidos como processados em território nacional e, no entretanto, são certames internacionais.
O critério de publicação do edital no exterior e, também, do chamamento de empresas interessadas na contratação, sem restrições referentes à sua nacionalidade ou local do seu funcionamento, melhor definiria licitação internacional. Para a maioria dos estudiosos do tema, a licitação é internacional quando for divulgada no exterior. “É equivocada a ideia de que a simples possibilidade de participação de empresas estrangeiras tornaria o certame internacional, pois, como vimos, em uma licitação comum, há, no mais das vezes, a presença de empresas alienígenas” [22]. O entendimento do TCU sobre o tema deveria ter norteado o legislador na definição de licitação internacional [23], [24]..
Ousamos, aqui, repetir as conclusões de estudo de nossa autoria [25] no sentido de que uma melhor definição da expressão “licitação pública internacional” se fazia necessária, com vistas a traçar um divisor de águas dentro do tema, separando certames desta natureza daqueles nacionais nos quais, por diversas razões, permite-se a participação de sociedades ou empresas estrangeiras sem autorização para funcionamento no país.
Elogios merecem ser feitos ao fato de a nova Lei ter disciplinado a participação de cooperativas nas licitações públicas [26]. Silente a Lei nº 8.666 de 1993 sobre o tema, distorções e irregularidades nessas contratações vieram a ocorrer deixando monumentais passivos trabalhistas para o Estado.
À luz do diploma anterior e considerando a polêmica questão da possibilidade, ou não, da participação de cooperativas em licitações públicas, inúmeros tribunais de contas de entes federados e o Tribunal de Contas da União enfrentaram esse tema, ao analisarem editais de licitação que excluíam expressamente tais entidades dos certames.
O Poder Judiciário também foi instado a se pronunciar sobre o assunto e a doutrina, por seu turno, debruçou-se sobre a questão e diversos foram os opinativos a respeito.
O fato de essas pessoas jurídicas gozarem de privilégios fiscais não estendidos às demais espécies de sociedades era usado como argumento para defender o impedimento de sua participação por desrespeito à lei de licitação, na medida em que o diploma já vedava a participação de concorrentes em condições desiguais.
Com a edição da nova Lei, ficou pacificado o fato de profissionais organizados sob a forma de cooperativa poderem participar de licitações e contratar com a Administração Pública.
As amarras e cuidados impostos na Lei como condições exigidas para tal participação trazem algum alento no sentido de proteção ao trabalhador cooperativado e de proteção à Administração como tomadora do serviço.
Novidade elogiada pelos profissionais de engenharia e arquitetura foi a indicação, na Lei, da preferência de adoção da Modelagem de Informação da Construção, a Building Information Modeling − BIM, ou tecnologias similares, nas licitações para realização de obras e serviços de engenharia e arquitetura, sempre que adequado ao objeto do certame. A melhor compatibilização entre projetos trará a redução do número de termos aditivos contratuais.
Ao tratar dos princípios e diretrizes que passaram a constar expressamente do texto da Lei, fizemos referência ao do formalismo moderado, que não consta expresso, no texto, porém desdobrado em inúmeros dos seus dispositivos.
Ao indicar a trilha do saneamento de irregularidades ocorridas em licitações e contratos tanto para ser seguida por agentes públicos quanto pelos órgãos de controle[ 27] a Lei abraçou os princípios do formalismo moderado e da eficiência. Aliás, como não poderia deixar de fazê-lo considerando os novos ventos que sopram na Administração Pública trazidos pelo Direito Administrativo e considerando as novas disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [28] que recomenda saneamento e manutenção de atos praticados pela Administração Pública [29].
Também a possibilidade de a Administração dar continuidade a contratos irregulares foi uma relevante inovação trazida no texto da Lei, considerando que a anulação, muitas vezes, vem a ser a pior medida a ser tomada, observado o interesse público. A avaliação dos impactos da paralisação e/ou anulação do contrato há que ser feita pela autoridade competente.
Caso a paralisação ou anulação se revele flagrantemente contrária ao interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis [30] Este é o comando da Lei.
O agente público, fundamentadamente, poderá dar continuidade a um contrato irregular, livrando-se do doloroso “dever” de prejudicar a Administração com a sua anulação.
Muito festejada tem sido a introdução, dentre os regimes de contratação previstos na Lei, do regime da contratação integrada e semi-integrada. Mesmo já anteriormente introduzido em outros diplomas legais – o primeiro pela Lei do RDC[31] e o segundo, ao lado do primeiro, pela Lei das Estatais [32]− a sua previsão na Lei geral de licitações e contratações trouxe elogios. Hoje foram estendidos a toda a Administração Pública.
Considerando que, muitas vezes, grandes dificuldades existem para a Administração Pública elaborar projetos que de complexidade se revestem, a opção por esses regimes de contratação para obras ou serviços de engenharia vem atender ao interesse público na medida em que os contratados neles se responsabilizam pela elaboração do projeto básico e executivo, na contratação integrada, e do projeto executivo, na contratação semi-integrada.
Na contratação integrada, nos termos da Lei, o contratado é responsável por elaborar e desenvolver os projetos básico e executivo, executar obras e serviços de engenharia, fornecer bens ou prestar serviços especiais e realizar montagem, teste, pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto 33]. A elaboração do anteprojeto permanece, como não poderia deixar de ser, a cargo do Poder Público. Deixaram, os diplomas legais que preveem esse tipo de regime de contratação, de vincular o mesmo à realização de licitação com critério de julgamento de técnica e preço, como inicialmente foi feito no RDC.
Parecido com o regime da empreitada integral, com este não se confunde na medida em que naquele é obrigatória a existência de projeto básico e, em princípio, também, de projeto executivo para a realização da licitação. Na contratação integrada, a autonomia do contratado é bastante mais ampla do que naquele outro regime. Como bem lembrado, o regime é bem-vindo dado que presta deferência à expertise dos particulares que, por vezes, são obrigados a apresentar propostas com base em projetos básicos defeituosos e que comprometem a boa execução da obra [34].
Na contratação semi-integrada, o contratado é responsável por elaborar e desenvolver o projeto executivo, executar obras e serviços de engenharia, fornecer bens ou prestar serviços especiais e realizar montagem, teste, pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto [35].
Outro avanço ocorrido na Lei foi ela ter trazido, no seu texto, a possibilidade de utilização de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias para os contratos em geral. A conciliação, a mediação, a arbitragem e o comitê de resolução de disputas foram previstos na Lei[36].
Possibilidade já positivada, inclusive, em outros diplomas legais que tratam de contratações públicas[37], a previsão feita na Lei pacificou questões derredor da utilização da arbitragem nos contratos administrativos em geral. Merece registro, porém, que, com a alteração na Lei da Arbitragem[38] as dúvidas quanto a essa possibilidade já tinham deixado de existir, fato que não torna desimportante a inclusão feita na nova Lei.
No que diz respeito à restrição quanto à utilização de arbitragem para dirimir conflitos patrimoniais disponíveis, controvérsias sobre o conteúdo e alcance dessa expressão também parecem afastadas. As questões derredor do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, do inadimplemento de obrigações e cálculo de indenizações certamente têm enquadramento na expressão.
A Lei somente admite a arbitragem de direito, considerando o princípio da legalidade ao qual está submetida a Administração Pública. Também há necessidade de os editais de licitação e dos contratos preverem a arbitragem, delimitando as matérias contratuais sobre as quais ela é possível, eis que essa previsão tem impacto nos preços das propostas dos licitantes.
A novidade trazida quanto ao tema dos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias foi, em verdade, a previsão do comitê de resolução de disputas, o dispute boards, sendo a primeira lei federal a prever o instituto. Consiste ele na formação de um comitê de especialistas em matérias técnicas e diversas que acompanham o desenvolvimento de um contrato desde o seu início, propiciando a total compreensão das etapas de sua execução e evitando a paralisação ou inviabilização dos trabalhos, em momento de crise, em razão de disputas técnicas [39].
O papel dos Tribunais de Contas no acompanhamento das licitações e contratações públicas restou bastante delineado no texto da Lei.
Na previsão do controle das contratações públicas, foram mencionados na terceira linha de defesa integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pela Corte de Contas.
Em pretendendo a Administração contratante alterar a ordem cronológica de pagamento das faturas mediante prévia justificativa dentre aquelas previstas na Lei, impõe a Lei posterior comunicação ao tribunal de contas competente [40].
Quando trata da fiscalização do controle dos tribunais de contas, dispõe a Lei que, na suspensão cautelar do processo licitatório, esse órgão de contas deverá se pronunciar sobre o mérito da irregularidade que tenha dado causa à suspensão no prazo de 25 (vinte cinco) dias úteis, com possibilidade de prorrogação [41]. Argumentos derredor da inconstitucionalidade do dispositivo por invasão da autonomia do órgão têm sido levantados.
Recomenda, ainda, a promoção de eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para funções previstas no seu texto, por meio de suas escolas de contas [42].
No que pertinente às penalidades, o seu rol não difere daquele trazido pelo diploma anterior.
Quanto à autoridade competente para sua aplicação, manteve a nova Lei as inconstitucionalidades antes existentes no que diz respeito à fixação de competências de agentes públicos de outras entidades federadas, invadindo matéria própria desses entes.
No Código de Processo Civil, introduziu a Lei alteração para instituir prioridade de tramitação de processo em que se discuta aplicação do disposto nas normas gerais de licitação e contratação a que se refere o inciso XXVII do caput do artigo 22 da Constituição Federal, ao lado de outras prioridades já instituídas naquele diploma.
Alterou, também, o Código Penal Brasileiro, introduzindo novos tipos penais no capítulo que trata dos crimes em licitações e contratos administrativos. Esses dispositivos têm aplicação imediata.
Conclusões
Longe de ter pretendido, neste trabalho, exaurir todas as novidades e questões trazidas pela nova lei geral de licitações e contratações públicas, buscamos enfocar aquelas que chamaram a atenção e mereceram maiores reflexões.
Vimos que o novo diploma legal não é perfeito, sequer atende a todas as necessidades do Estado quanto à matéria. Traz, porém, inovações significativas extraídas de outros regramentos nacionais e internacionais, também de experiências acumuladas pela própria Administração Pública brasileira.
É uma Lei inovadora quando institui, por exemplo, o diálogo competitivo como nova modalidade licitatória; recomenda a adoção da Modelagem de Informação da Construção nas obras e serviços engenharia e arquitetura; absorve de outros diplomas legais os regimes de contratação denominados de contratação integrada e contratação semi-integrada;e prevê o comitê de resolução de disputas como mecanismo de resolução de conflitos entre os contratados.
É um projeto com equívocos quando disciplina exaustivamente matérias de competência dos estados e municípios, com clara invasão de competências legislativas.
O projeto, como é obra humana, não é perfeito.
O aperfeiçoamento da nova lei de licitações e contratações, prestes a ser sancionada, deve ser feito através da sua melhor interpretação.
Que a doutrina e a jurisprudência pátria bem desempenhem esse papel!
[1] Art. 173, §1º da Constituição Federal.
[2] Art. 22, inciso XXVII da Constituição Federal.
[3] Ferraz, Sérgio e Dallari, Adilson, in Processo Administrativo, 1ª. ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2001, p. 29.
[4] O seu art. 156, 6º, I, por exemplo, dá competência a secretários estaduais e municipais para aplicação de penalidade.
[5] Acórdãos nos 1542/2019; 357/2015 e 187/2014.
[6] Rodrigo Augusto LazzariLahoz in Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, coord. Joel de Menezes Niebuhr, Zênite, p. 74.
[7] Na forma do artigo 179 da nova lei, que alterou os incisos II e III do caput do art. 2º da Lei nº 8.987 de 1995 e do art. 180, que alterou o caput do art. 10 da Lei nº 11.079 de 2005.
[8] Art. 6º, inc. XXII da nova Lei.
[9] Arts. 99 e 102 da Lei.
[10] Art. 160 da Lei.
[11] Essa possibilidade foi confirmada, em sede jurisprudencial, com o julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 15.166 que teve voto brilhante do Relator, o Ministro Castro Meira, e, como recorrente, empresa baiana afastada das licitações realizadas pelo Estado da Bahia e por suas entidades descentralizadas. Jurisprudência – 781/126/ago/2004.
[12] Art. 6º, inc. XXVII da Lei.
[13] Art. 22, §§3º e 4º da Lei.
[14] Lei nº 11.079, de 2005: “Art. 5º As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 no que couber, devendo também prever: III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária”.
[15] Lei nº 13.303 de 2016, art. 42, §1º. Inc. I, “d”.
[16] Art. 124, inc. II, alínea “d” da Lei.
[17] Art. 78, incs. de II a V da Lei.
[18] Lei nº 8.797 de 1995, art. 21: “Os estudos, investigações, levantamentos, projetos, obras e despesas ou investimentos já efetuados, vinculados à concessão, de utilidade para a licitação, realizados pelo poder concedente ou com a sua autorização, estarão à disposição dos interessados, devendo o vencedor da licitação ressarcir os dispêndios correspondentes, especificados no edital”(grifo nosso).
[19] Art. 44 da Lei.
[20] Neste sentido, o lúcido e brilhante julgamento proferido pelo Tribunal de Contas da União − Acórdão 918/2005, da Segunda Câmara − que julgou irregulares as contas e em débito solidário os responsáveis, em julgamento da tomada de contas especial instaurada em razão de auditoria realizada no Ministério do Transporte. Como ato de gestão antieconômica, ilegal, pois enquadrou a Corte de Contas a “locação de microcomputadores, notebooks, servidores de rede, impressoras e plotters, com custo, no período considerado, significativamente maior do que o custo de aquisição desses equipamentos”.
[21] Art. 6º, inc. XXXV: “Licitação processada no território nacional na qual é admitida a participação de licitantes estrangeiro, com a possibilidade de cotação de preços em moeda estrangeira, ou licitação na qual o objeto contratual pode ou deve ser executado em todo ou em parte em território estrangeiro”.
[22] Ferreira Neto, Francisco Damasceno. Licitação internacional. Revista de Direito e Administração Pública – L&C, v. 7, n. 74, p. 6-10, ago. 2004.
[23] TCU,Acórdão nº 2672/2017. Plenário. “O permissivo constante no art. 42, §1º, da Lei nº 8.666/1993 (possibilidade de cotação de preço em moeda estrangeira nas concorrências de âmbito internacional) não seria aplicável ao certame e ao contrato, visto que não se tratou de licitação de âmbito internacional, ressaltando-se que não houve a publicação do edital em idioma estrangeiro, nem divulgação deste no exterior, nem foi permitida a participação isolada de empresas estrangeiras que não funcionassem no país e que ainda não tivessem decreto de autorização”.
[24] TCU, Acórdão nº 220/2013. Plenário. Rel. Min. Ana Arras, DOU, 27 fev. 2013. Em igual sentido, precedentes formados a partir das Decisões nos 289/1999 e 488/2001. “Em licitações internacionais, a ausência de comprovação de divulgação do instrumento convocatório na imprensa internacional ou em agências de divulgação de negócios no exterior, conforme verificado nos processos licitatórios GAC.T/CO.I-002/07 e GAC.T/CO.I-004/08, afronta entendimento firmado por este Tribunal nas decisões 289/1999 e 488/2001, ambas do Plenário”.
[25] Hupsel, Edite. Licitação internacional: sentido e alcance das normas vigentes. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 17, n. 64, p. 197-244, jan./mar. 2019.
[26] Artigo 16 da Lei.
[27] Art. 71, I, “retorno dos autos para saneamento de irregularidades”; art. 147, caput e inc. VI; art.169, §3º, I, “saneamento de impropriedades formais”; art. 171, §3ª,
[28] Dec-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, recentemente alterado.
[29] Art. 20. “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.
[30] Art.147, parágrafo único da Lei.
[31] Lei nº 12.462 de 2011, art. 8º, V.
[32] Lei nº 13.303 de 2016, art. 42, incisos V e VI.
[33] Art. 6º, inc. XXXII, da Lei.
[34] Quint, Gustavo Ramos da Silva, in Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, coord. Joel de Menezes Niebuhr, Zênite, p. 64.
[35] Art. 6º, inc. XXXIII da Lei.
[36] Art. 151 a 154 da Lei.
[37] Já antes prevista na Lei nº 8.987, de 1995, Lei de Concessões (art. 23ª); Lei nº 11.074, de 2004, Lei de PPP (art. 11, III), além das leis de telecomunicações, transportes aquaviários e terrestres, energia elétrica, dentre outras.
[38] Alteração feita pela Lei nº 13.129 de 2015. 1Os arts. 1º, 2º, 4º, 13, 19, 23, 30, 32, 33, 35 e 39 daLei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º, §1. A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
[39] Cardoso de Oliveira, Murillo Preve, in Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, coord. Joel de Menezes Niebuhr, Zênite, p. 136-137.
[40] Art. 141, §1º, da Lei.
[41] Art. 171, §1º.
[42] Art. 173 da Lei.
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