Edite Hupsel (BA)
Em primeiro de abril próximo passado foi sancionada, com alguns vetos, a Lei Nacional de Licitações e Contratos Administrativos que vem a substituir a Lei nº 8.666, de 1993, a Lei nº 10.520 de 2002 e os arts. 1º ao 47, da Lei nº 12.462 de 2011. Após dois anos da sua publicação, serão efetivamente revogados os citados diplomas legais os quais, até que seja implementado esse período, conviverão com a nova lei, sendo a opção pela sua utilização ou pela utilização do regramento dos outros diplomas citados, escolha da Administração contratante.
No seu art. 1º, diz estabelecer normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Ao tempo em que trouxe a Lei inovações há muito esperadas pela Administração Pública como um todo, introduzindo avanços já consagrados no direito alienígena e positivando, no seu texto, orientações da Corte de Contas federal, pecou em desrespeitar competências constitucionais conferidas aos Estados, Distrito Federal e Municípios pela Lei Maior federal.
Tem nos causado estranheza o silêncio dos juristas e especialistas da matéria derredor das invasões de competências dos demais entes da federação trazidas pela nova lei.
No afã de verem aplicadas as suas disposições, eis que a lei foi muito esperada em razão do seu longo processo legislativo e traz boas inovações, acreditamos muitos fazem “vista grossa” para tais invasões.
Essa conduta em nada contribui para o nosso federalismo e para a autonomia dos estados-membros e municípios, na forma consagrada pela Constituição Federal.
No delineamento constitucional da matéria, resta claro que não existe competência legislativa plena da União para legislar sobre licitações e contratações públicas.
Primeiramente, como diz a Carta Magna federal, compete privativamente à União legislar sobre “normas gerais de licitações e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI [...]” [1]
Não é dado ao intérprete presumir a existência de palavras inúteis no texto da lei. Não é dado ao intérprete fazer essa mesma presunção quando a lei a ser interpretada é a Lei Maior do país. A competência da União é para editar “normas gerais” e não todo o regramento sobre a matéria.
É mais do que sabido que o parágrafo único do art. 22 da CF − onde está posto que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas naquele mesmo artigo − não se aplica às hipóteses dos seus incisos XXI [2] e XXVII. Em relação a estas matérias, não dependem os entes federados de autorização para exercerem a sua competência legislativa.
Os Estados, Municípios e o Distrito Federal, respeitadas as normas gerais editadas pela União, podem legislar sobre a matéria aqui tratada. Podem legislar sobre licitações e contratações públicas no exercício da competência suplementar assegurada constitucionalmente. [3]
Somente dispositivos que possam ser identificados como “normas gerais” têm aplicação obrigatória aos estados-membros, municípios e Distrito Federal.
E aí surgem questões de grande relevância.
Normas gerais, no Direito, são aquelas que protegem e reproduzem princípios gerais e específicos de um determinado ramo da ciência jurídica.
Quais os dispositivos da nova Lei protegem princípios constitucionais e, também, princípios da licitação e contratação pública? Quais disciplinam meros procedimentos administrativos e, por esta razão, se inserem no rol de competências das demais entidades federadas?
Como já registramos anteriormente [4] , na elaboração da nova lei foi perdida a oportunidade de serem afastadas todas as árduas questões que surgiram quando da aplicação da Lei no 8.666 de 1993, que dificultaram e retardaram a atuação dos legisladores dos entes federados e que provocaram, inclusive, algumas ações de inconstitucionalidade. No seu texto, não foram separados em capítulos os dispositivos que têm conteúdo de norma geral daqueles referentes a procedimentos, competências e bens, matérias específicas da União, da Administração Pública federal [5]
Mais uma vez, caberá aos intérpretes e aplicadores da lei e aos legisladores estaduais e municipais, em um árduo trabalho, a identificação dos dispositivos aplicáveis, obrigatoriamente, à Administração Federal e dos que, por protegerem princípios, importam em normas gerais e têm aplicação obrigatória a todos os entes federados.
De logo vale seja registrado que a disciplina derredor dos bens públicos, desde que observada as disposições do Código Civil sobre o tema e, também, as regras que impõem licitação ou a dispensa para sua alienação, é de competência de cada entidade federada.
Rigorosamente, uma lei federal não poderia imiscuir-se na alienação dos bens públicos estaduais, municipais e distritais [6]. Qualquer interferência sobre sua autonomia administrativa para gerir os próprios bens seria incompatível com a Lei Maior federal [7]
Também no que diz respeito à fixação das penalidades administrativas a serem aplicadas aos licitantes e contratados, é da competência das entidades federadas, assim como também é de competência de cada uma dessas entidades a fixação, nos seus estatutos, das penalidades a serem aplicadas aos seus servidores.
A absorção, em suas leis locais, do elenco das penalidades fixadas na nova lei de licitações e contratações vem a ser talvez mesmo indicada, sem, entretanto, ser impositiva. A competência legislativa dos entes federados na matéria não pode ser esquecida, pena de “achatamento” do nosso federalismo.
As competências atribuídas a agentes públicos estaduais, municipais e do Distrito Federal, na categoria incluídos os agentes políticos e servidores públicos como um todo, são fixadas das constituições dos estados-membros, nas leis orgânicas municipais e do Distrito Federal e na legislação administrativa de cada um desses entes.
Por esta razão causa estranheza que no texto da nova lei existam dispositivos que atribuem competências aos secretários estaduais e aos secretários municipais para a prática de atos de autorização [8] e de penalização de licitantes e contratados [9].
Também a imposição de deveres e obrigações a advogados públicos das demais entidades federadas, que não a União [10], traz invasão de competência desses entes, desrespeitando, inclusive, suas leis complementares que disciplinam o funcionamento das suas procuradorias e as atribuições dos seus órgãos e dos integrantes da carreira de procurador.
A defesa de autoridades e servidores públicos na esfera administrativa, controladora ou judicial em razão de ato praticado com observância da orientação constante em parecer jurídico, se vem a ser uma medida que se recomenda deve ser ela imposta nas leis estaduais e municipais que tratam dessas competências.
Finalmente, sabe-se que respeitada a pauta principiológica consagrada na Constituição Federal, todas as entidades federativas têm competência para legislar sobre seus processos e procedimentos administrativos. A multiplicidade de leis estaduais e municipais que disciplinam processo administrativo no âmbito dessas entidades é por demais conhecida.
Com Sérgio Ferraz e Adilson Dallari: “É palmar que todas as pessoas jurídicas de direito público dotadas de competência normativa na Lei Maior podem regular, exaurientemente, até, seus processos (e procedimentos) administrativos. O que há de comando normativo nacional é a pauta principiológica, figurando a consagrada na Constituição do Brasil como patamar mínimo indeclinável, de obrigatória observância para a União, Estados, Municípios e Distrito Federal” [11]
A possibilidade de instituição de um rito procedimental não idêntico ao instituído pela nova Lei remanesce para os demais entes estatais, desde que sejam respeitados os princípios constitucionais da Administração Pública e, também, os princípios norteadores das licitações e contratações públicas.
A preocupação com a ameaça de achatamento da autonomia administrativa dos entes federados e com a “usurpação” de algumas das suas competências legislativas nos levou a apontar, neste trabalho, as inconstitucionalidades da nova Lei.
Não podemos deixar de louvar, porém, os seus avanços e inovações, tão bem-vindos no espaço das contratações públicas.
Muito festejada foi a menção expressa, dentre os princípios a serem observados quando da sua aplicação, o do planejamento, da segregação de funções e do desenvolvimento nacional sustentável.
Também a introdução do diálogo competitivo, já previsto em diretivas da União Europeia, tem sido bastante elogiada pelos estudiosos da matéria.
A criação do Portal Nacional de Contratações Públicas, sítio eletrônico oficial destinado à divulgação oficial dos atos relativos às licitações e contratações, certamente trará maior transparência aos atos da Administração.
As inovações ocorridas com o “seguro-garantia”, cuja racionalidade econômica passou a ser similar a do chamado steps in rights previsto nas Leis de PPP e de Concessões, foram elogiadas.
A positivação, no seu texto, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para as situações nas quais esta for utilizada com abuso de direito, estendendo os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica, foi muito bem vinda.
No rol dos procedimentos auxiliares da licitação, a previsão do procedimento de manifestação de interesse, PMI, também é festejada.
Valorizada, também, vem sendo a obrigatoriedade de previsão, em determinados contratos, de uma matriz de riscos, cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidade entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato.
Ao reforçar a ideia do saneamento de irregularidades ocorridas em licitações e contratos [12], a Lei abraçou os princípios do formalismo moderado e da eficiência, como não poderia deixar de fazê-lo, considerando os novos ventos que sopram na Administração Pública trazidos pelo Direito Administrativo e considerando as novas disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [13].
Outro avanço foi a Lei ter trazido a possibilidade de utilização de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias para os contratos em geral. A conciliação, a mediação, a arbitragem e o comitê de resolução de disputas foram previstos na Lei.
Com todos esses avanços, a Lei federal de licitações e contratos vem sendo comemorada por aqueles que atuam na área por ela regulada.
Esse fato não obsta, porém, e até recomenda, que as demais unidades da federação venham, no exercício de sua competência suplementar, a elaborar suas leis sobre a matéria, usando como vetores os princípios insculpidos no caput do art. 37 da Constituição e os elencados no art.5º da Lei º 14.133/21, atentos, também, às disposições e comandos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – o Decreto-Lei nº 4.657/42.
Outros avanços podem trazer esses novos diplomas, suprindo lacunas percebidas na Lei pelos seus aplicadores.
Outras figuras contratuais - como marketplace e smart-contract, como já lembrado - podem neles encontrar previsão e delineamento.
Os legisladores das demais entidades federadas têm grandes espaços para sua atuação, respeitando os dispositivos que como normas gerais possam ser “catalogados”; acrescentando novidades que entendam pertinentes e de interesse da Administração Pública, e disciplinando as matérias atinentes a suas competências administrativas.
Resta para aqueles entes estatais federativos que declinarem de sua competência legislativa suplementar a aplicação, por inteiro, do novo diploma, da Lei nº 14.133 de 2021.
Notas
[1] Art. 22, inc. XXVII da CF.
[2] CF, art. 22, inc. XXI: “Compete privativamente à União legislar sobre: [...] normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiro militares; [...]”.
[3] Art. 24, §2º da CF/88.
[4] No artigo “Lei 14.133 de 2021 – A nova lei de licitações – inovações e desafios”. Direito do Estado, ano 2021, no 477.
[5] A Lei nº 11.079 de 2004, Lei de PPP, que trata de contratação pública, no seu capítulo VI, trouxe os dispositivos somente aplicáveis à União.
[6] Marçal Justen Filho, ao comentar o art. 17 da Lei nº 8.666 de 1993 já assim se manifestava, afirmando que as regras daquele artigo vinculavam, sem margem de dúvida, à União, que pode dispor legislativamente sobre o destino dos seus próprios bens.
[7] O STF, ao proceder ao julgamento da ADIN nº 927-3-RS, que questionou a constitucionalidade das limitações impostas aos Estados-membros, Municípios e Distrito Federal pelos arts. 17 e 18 da Lei nº 8.666/1993, concedeu medida liminar afastando a obrigatoriedade destas entidades federadas de se submeterem a tais limitações, em razão do princípio federativo e da sua autonomia administrativa. É, pois, em sede de legislação de cada ente que deve ser disciplinada a matéria relativa a bens públicos. Relator: Ministro Carlos Veloso (Brasília, 8 nov. 1998. Disponível em: http://www.stf.gov.br.Ver nota nº 23. STF, ADIN nº 927-3-RS, interposta pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul contra a aplicação do art. 17 da Lei nº 8.666/93 aos Estados, Municípios e Distrito Federal.
[8] Art. 139. “A extinção determinada por ato unilateral da Administração poderá acarretar, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei, as seguintes consequências: II − ocupação e utilização do local, das instalações, dos equipamentos, do material e do pessoal empregados na execução do contrato e necessários à sua continuidade; [...] §2º Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, o ato deverá ser precedido de autorização expressa do ministro de Estado, do secretário estadual ou do secretário municipal competente, conforme o caso”.
[9] Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções: “IV −declaração de inidoneidade para licitar ou contratar. [...] §6º A sanção estabelecida no inciso IV do caput deste artigo será precedida de análise jurídica e observará as seguintes regras: I − quando aplicada por órgão do Poder Executivo, será de competência exclusiva de ministro de Estado, de secretário estadual ou de secretário municipal e, quando aplicada por autarquia ou fundação, será de competência exclusiva da autoridade máxima da entidade.
[10] Art. 10 caput e §2º da Lei.
[11] Ferraz, Sérgio e Dallari, Adilson, in Processo Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 29.
[12] Art. 71, I: “retorno dos autos para saneamento de irregularidades”; art. 147, caput e inc. VII; art.169, §3º, I, “saneamento de impropriedades formais”; art. 171, §3º.
[14] Dec-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, recentemente alterado.
Ver video 155 Edite Hupsel (BA) O Poder Geral de Cautela da Administração Pública no Processo de Licitação e de Contratação: a Proteção do Patrimônio Público Através de Medidas Atípicas |