Daniel Wunder Hachem (PR)
Tem circulado nas redes sociais, desde o dia 13 de novembro de 2015, a notícia de que a Presidente da República Dilma Rousseff teria expedido um decreto “transformando” – tal qual a Profª Minerva McGonagall de Hogwarts em suas aulas de Transfiguração (!) – o rompimento de barragens em “desastre natural”. Acusa-se então a chefe do Poder Executivo federal de ter se valido de sua prerrogativa constitucional de regulamentar as leis com o intuito de eximir a mineradora Samarco de sua responsabilidade civil e penal pelo rompimento de barragens em Mariana (MG), que ocasionou – e continua ocasionando – danos devastadores ao meio ambiente e à vida de inúmeras pessoas. Uma leitura apressada e parcial do decreto, no trecho em que estabelece que “considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais”, poderia levar o leitor menos atento a tal conclusão.
Sob o ponto de vista jurídico, porém, a tese não se sustenta sequer minimamente. O ato em questão jamais poderia produzir tais efeitos. Nem os detratores da Presidente da República – que não perdem a oportunidade de tentar emporcalhar sua imagem – nem as pessoas físicas e jurídicas responsáveis pelos irreparáveis prejuízos gerados pela quebra das barragens poderão atribuir ao Decreto nº 8.572/2015 esse poder ou dele extrair tal consequência jurídica. Nem mesmo a própria Dilma Rousseff, se de fato tivesse essa intenção, poderia fazê-lo, pelas razões que se pretende demonstrar a seguir.
É preciso analisar o conteúdo do Decreto nº 8.572/2015, mas para compreendê-lo um esclarecimento prévio é necessário. A Constituição da República assegura como direito fundamental social do trabalhador o fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS). O empregador deposita, mês a mês, um percentual do salário do empregado em sua conta vinculada a esse fundo. Sua finalidade principal nos dias atuais é proteger o trabalhador, seja em razão do encerramento do contrato de trabalho (dispensa sem justa causa, fim do contrato por tempo determinado...), seja por situações ou fatos ocorridos em sua vida que tornem necessário o uso dos recursos depositados, tal como doença grave que leve o trabalhador ou seu dependente a estágio terminal. Um desses casos, previsto na Lei nº 8.036/90 (art. 20, XVI), é o de “necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento (...)”. A Lei do FGTS, portanto, dispõe expressamente que é o Poder Executivo que deverá regulamentar tais situações e especificar quais delas permitem o uso dos recursos depositados no fundo. E assim foi feito no ano de 2004.
O Decreto nº 5.113/2004 regulamentou o art. 20, XVI da Lei do FGTS, fixando que para fins de movimentação da conta do trabalhador vinculada ao FGTS são considerados como desastre natural: vendavais ou tempestades; vendavais muito intensos ou ciclones extratropicais; vendavais extremamente intensos, furacões, tufões ou ciclones tropicais; tornados e trombas d’água; precipitações de granizos; enchentes ou inundações graduais; enxurradas ou inundações bruscas; alagamentos; e inundações litorâneas provocadas pela brusca invasão do mar. A questão que então surgiu, diante do rompimento das barragens no Município de Mariana, foi: a situação se enquadra ou não nas hipóteses descritas no decreto? Poderiam os trabalhadores atingidos pelo ocorrido realizar de imediato o levantamento dos recursos inseridos em sua conta do FGTS, em razão da urgência e gravidade dos danos por eles sofridos, para satisfazer suas necessidades prementes? Ou a única solução que o ordenamento jurídico lhes disponibilizaria seria propor ação de responsabilidade civil contra a mineradora Samarco, tendo de esperar longos anos – possivelmente mais de uma década – até o julgamento final do processo para finalmente obter a reparação dos prejuízos experimentados?
Foi para solucionar essa dúvida que o Decreto nº 8.572/2015 foi expedido pela Presidente da República no dia 13 de novembro. Com apenas um artigo de conteúdo, o ato incluiu o parágrafo único no art. 2º do Decreto nº 5.113/2004, acima mencionado, que trata das situações que podem ser consideradas como “desastre natural” para autorizar o uso dos valores da conta do trabalhador no FGTS. Ele veio afastar as dúvidas sobre o enquadramento ou não do caso Mariana na hipótese autorizadora do uso do FGTS.
Prevê o dispositivo que “Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990 [Lei do FGTS], considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais”. Significa que o Decreto nº 8.572/2015 veio deixar claro que para o trabalhador utilizar os recursos de sua conta vinculada no FGTS – e só para esse fim! – o rompimento ou colapso de barragens pode ser considerado como “desastre natural”. Ou seja: o polêmico decreto destina-se a permitir que os trabalhadores e trabalhadoras que foram desgraçados pela enxurrada de lama tóxica – em muitos casos com suas casas totalmente destruídas – poderão se valer das quantias existentes em suas contas no FGTS para atender às suas necessidades mais urgentes.
Duas questões se colocam, então, a partir dessa reflexão: (i) o fato de o Decreto nº 8.572/2015 considerar “como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais” afasta a responsabilidade da empresa e das pessoas responsáveis por evitá-lo? (ii) se o trabalhador levantar suas economias no FGTS e posteriormente for declarada judicialmente a responsabilidade da empresa por negligência, terá ele direito a reaver os valores?
A primeira pergunta é a que mais aflige os críticos do decreto e a resposta a ela é bastante simples: obviamente que não, um decreto regulamentar expedido pelo Presidente da República não tem o condão de transformar em “natural” um desastre ocasionado por negligência de alguém, muito menos de derrogar normas de responsabilização previstas nos Códigos Civil e Penal e demais leis veiculadoras de sanções administrativas. O Decreto nº 8.572/2015 foi editado nos termos do art. 84, IV da Constituição de 1988, que habilita o Presidente da República a “(...) fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Por meio de tais atos normativos, portanto, não pode o chefe do Poder Executivo federal inovar no ordenamento jurídico, criando direitos e obrigações não antes previstos ou extinguindo aqueles já assegurados por lei – deve limitar-se a pormenorizar e especificar o conteúdo das leis, garantindo a sua correta aplicação. Os regulamentos executivos são atos infralegais, de hierarquia normativa inferior à das leis, não podendo contrariá-las nem alterá-las. As normas previstas em leis civis, penais ou administrativas que sancionem a negligência causadora de danos às pessoas e ao meio ambiente (como, por exemplo, os arts. 186 e 927 do Código Civil, que obrigam o causador do prejuízo a repará-lo) permanecem vigentes e jamais poderiam ser modificadas por decreto.
Dessa resposta se deduz que se em uma ação judicial restar comprovado, fática e tecnicamente, que a quebra das barragens não derivou de um “acidente natural”, mas sim da negligência de pessoas físicas ou jurídicas que poderiam ter evitado a catástrofe e não o fizeram, surgirá o dever jurídico de responder pelos seus atos independentemente do que dispôs o decreto, incidindo a obrigação de reparar as lesões causadas e suportar as sanções penais e administrativas cabíveis. Afinal, esse dever decorre diretamente das leis, que estão acima do decreto. É preciso que se entenda que a investigação da origem do desastre – se oriunda da natureza ou da omissão humana – deve ser feita em ação judicial, pois consiste em uma questão fática a ser demonstrada mediante produção de provas, e não em questão jurídica a ser definida por um decreto.
Vamos então à resposta da segunda pergunta: caso o dinheiro do FGTS seja utilizado pelo trabalhador atingido e depois, em ação judicial, for comprovado que a raiz do desastre não era natural (mas sim proveniente da falta de cuidado da empresa), há o direito de recuperar os recursos extraídos da conta do trabalhador? É evidente que sim. O que fez o Decreto nº 8.572/2015 foi instituir uma presunção de que o rompimento de barragens é desastre natural apenas para fins de autorizar o levantamento dos valores do FGTS pelo trabalhador atingido. É essa presunção que o permite movimentar sua conta e utilizar os recursos nesses casos. Porém, se posteriormente em demanda judicial for atestado que a origem dos prejuízos estava na negligência da empresa, inverte-se a presunção, deixa-se de considerar “natural” o ocorrido e surge então o dever do responsável pelos danos de: (i) reparar todos os prejuízos suportados pelas pessoas afetadas e pelo meio ambiente; (ii) devolver ao trabalhador os valores de sua conta do FGTS que foram utilizados para satisfazer suas necessidades prementes, pois deveriam ser destinados a suprir as demandas advindas de desastres naturais e não daqueles derivados da negligência de uma empresa.
Portanto, se bem compreendido o Decreto nº 8.572/2015 e a sua posição hierárquica no sistema jurídico brasileiro, não há motivos para temê-lo ou supor que por meio dele poderia a Presidente Dilma transformar em natural uma catástrofe proporcionada pela desídia de uma mineradora. E isso porque a Constituição brasileira não autoriza que o ocupante do cargo de Presidente da República possa, por meio de decretos regulamentares, fazer mágica. Ao menos não ainda...