Daniel Giotti de Paula (MG)
“Vingadores: Ultimato” encerra uma epopeia, unindo diversão com reflexões sobre questões filosóficas, éticas e jurídicas. Por trás do enigma principal acerca de se e como os heróis do Universo Cinematográfico (MCU) venceriam Thanos, outras enigmas se revelam.
A principal questão filosófica posta é sobre quem seriam propriamente os heróis do filme e se Thanos é tão mau quanto parece. Isso porque a intenção do Titã Louco, como ficou conhecido nos quadrinhos da Marvel, é reduzir metade da população do Universo, sem priorizar quaisquer espécies, suas opções e suas origens, pois alega que não haveria recursos naturais para suprir as necessidades de todos os seres vivos.
A justiça de sua medida está em que, valendo-se do poder de uma Manopla parra reunir as Joias do Infinito, a escolha sobre quem morreria ou viveria seria totalmente aleatória. Haveria uma teoria a embasar a conduta de Thanos?
Antes de apresentamos a grande teoria filosófica que tenta fundamentar sua conduta, deve-se deixar claro que o que nos angustia é Thanos desconsiderar o valor individual da vida, o que vai de encontro às ideias de que a vida vale por si mesma e de que todos podem buscar sua preservação, desde que esse desejo de existir não afete outras vidas de maneira desarrazoada.
Se a vida possuir um valor em si, não se podendo tratar qualquer outro ser como instrumento, o imperativo categórico kantiano, que se relaciona à tradição judaico-cristã, já levaria a repelirmos a atitude do Titã.
Thanos nos coloca diante do que, em filosofia e no Direito Constitucional, sobretudo, seria uma escolha trágica, pois haveria argumentos fáticos e substanciais tanto para se escolher matar metade dos seres do Universo, quanto para tentar uma solução que conserve a vida de todos.
É verdade, porém, que seus argumentos fáticos não estão bem postos. Pode-se perguntar: se a Manopla por ele criada é tão poderosa e com um estalar de dedos lhe permite matar metade da população do Universo, não haveria a possibilidade de ele aumentar os recursos naturais e evitar o massacre?
Isso acabaria com a trama, é verdade, mas nos encaminha para um outro enigma. As teorias da justiça surgem para lidar com a distribuição de recursos, naturais ou apropriados pelas pessoas ao longo de sua existência, sabendo que as necessidades humanas são infinitas, ainda que os avanços tecnológicos, muitas vezes, possam resolver os problemas antes de se tornarem crônicos.
Há quem afirme, por exemplo, que a tecnologia se desenvolverá tanto, que, ainda que a população aumente ainda mais, haverá mais produção de comida, com ganhos de escala contínuos.
O que quero ressaltar, porém, é que a distribuição de recursos envolve como arranjar institucionalmente a sociedade, o que seria do terreno da política, por excelência, mas que nos leva ao choque entre dramas individuais e da sociedade como um todo.
O direito universal à saúde, que é uma previsão constitucional no Brasil, deve exigir do Estado o tratamento de uma doença rara, que custará milhões aos cofres públicos com reduzida chance de cura?
Para ficar apenas nessa questão, tem-se que a política não consegue resolvê-la em definitivo, no sentido de gerar o consenso esperado, porque é natural que encaremos um drama pessoal ou de quem nos é próximo, independente da escolha racional e republicanamente deliberada.
Encaramos a questão sob o prisma da microjustiça, e não da macrojustiça, e isso faz com que busquemos reverter a decisão legitimamente feita pela política via atuação judicial.
Quando o Judiciário substitui uma política pública de restrição de um tratamento de saúde, por ser demasiadamente caro e pouco eficaz, colocando a dignidade da pessoa humana de um indivíduo à frente do que seriam os interesses coletivos e determinando que se imponha aquele tratamento, não raro, está-se prejudicando toda a sociedade, pois, se não há recursos orçamentários para aquela decisão, alguma escolha política legitimamente feita passa a ser desconsiderada.
Chego, então, à grande questão ética que Thanos nos apresenta: por que o natural seria preservar a vida de alguém, a qualquer custo, ainda que isso implique o mal de muitos ou de todos?
Mais do que um sádico, o que não parece ser o caso de Thanos, que após concluir seu plano na primeira realidade proposta pelo filme, isola-se, sem usufruir do seu poder e desistindo do seu passado de guerreiro, há uma lógica em sua conduta, pois ele desafia a ordem natural das coisas, aquela que foi posta pela tradição judaico-cristão, que seria a de preservar a vida de alguém em detrimento da coletividade.
O sacrifício que faz da vida de sua própria filha indica que há uma forte teoria que tenta explicar o curso de suas ações. Thanos pode ser visto como um tipo de utilitarista, na linha dos filósofos ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill, para os quais as consequências dos atos é que realmente importam, e não propriamente as condutas.
Trata-se, já adianto, de um utilitarismo mambembe, que não faz jus ao que, de fato, é essa vertente filosófica.
O utilitarismo nos remete, essencialmente, ao consequencialismo. Obviamente, isso não pode justificar qualquer ação, como a de Thanos, que parece não ter vencido o especial ônus argumentativo de demonstrar que a Manopla não teria o poder de criar mais recursos para o Universo ou, mesmo, de que a situação era tão ruim, a ponto de se necessitar da solução drástica proposta.
O utilitarismo não pode ser uma cláusula que chancele condutas, apenas pelas consequências que produz, pois isso seria a deturpação da própria teoria. É bem sintomático que Bentham e Mill tenham sido reformadores sociais e que sempre se preocuparam com questões práticas e políticas de sua época.
Não viviam no terreno das meras especulações filosóficas, mas encontraram na filosofia um veio para resolver as questões éticas importantes que as sociedades pluralistas exigem.
Não criaram uma teoria que chancelasse qualquer conduta com base nos seus fins, antes propuseram uma mudança de perspectiva no julgamento das condutas, não crendo que as coisas valem por si só e que exista uma ordem natural das coisas.
A potência teórica do utilitarismo poderia indicar, por outro prisma, que a radicalidade da conduta de Thanos está longe de promover a felicidade, pois após sua ação, na realidade inicial criada, as pessoas não parecem, de fato, felizes, vivendo em um Universo ainda pior que o anterior.
É que Thanos, ao acreditar que as consequências valem por si só, enfraquece algo que a própria experiência humana sugere: é má ideia confiar que apenas uma pessoa ou grupo, ainda que seja um rei filósofo, tome as decisões por todos.
Instituições equilibradas e que cheguem à verdade como consenso se mostram melhores.
O altruísmo de Thanos esbara ainda na proposta utilitarista de que a felicidade de todos deve contar da mesma forma. Como esperar que isso se dê matando metade da população do Universo?
Lembre-se de que na teoria da justiça de John Rawls, que parece ser uma das melhores explicações para o constitucionalismo moderno, há uma preocupação marcante com aqueles que são prejudicados na loteria da vida, pois deixar alguém a sua própria sorte não gera a cooperação, que é o grande propulsor da evolução do ser humano
Joshua Greene sugere que “a moralidade é o conjunto de adaptações psicológicas que permite que indivíduos, de outro modo egoístas, colham os benefícios da cooperação”.
Embora em seu livro “Tribos Morais: a tragédia da moralidade do senso comum”, ele sugira que justamente o utilitarismo é a melhor teoria para resolver conflitos de metamoralidade, a disputa entre grupos diversos que a princípio não conseguem cooperar, vejo que Thanos não capta toda a complexidade que o utilitarismo traz consigo, fazendo da teoria mero uso retórico.
Não é muito diferente do que políticos e juristas, pessoas e juízes, têm feito atualmente: simplesmente por uma decisão institucional trazer consequências que julgam erradas, com base nas suas convicções ou do grupo a que pertencem, concluem que elas prejudicam a coletividade e devem ser substituídas.
Na linha do que propõe Humberto Ávila em seu novo livro, “Constituição, Liberdade e Interpretação”, na página 62, consequencialismo
“pode ser definido como a estratégia argumentativa mediante a qual o intérprete molda o conteúdo ou a força do Direito conforme as consequências práticas que pretende evitar ou promover, em detrimento a estrutura normativa diretamente aplicável, dos efeitos diretamente produzidos nos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais e dos princípios fundamentas imediatamente aplicáveis à matéria”.
O consequencialismo não pode substituir uma previsão abstrata por outra consequência, com base apenas na busca de uma finalidade escolhida pelo intérprete ou aplicador do Direito.
De boas intenções o Inferno está cheio, diz o senso comum. Consequencialismo, sem respeitar as bases teóricas do utilitarismo, pode indicar um voluntarismo, o solipismo de quem decide por se crer iluminado, como é Thanos, ou o populismo, a estratégia de se decidir conforme um sentimento social que, convenhamos, ainda é de um ser isolado, o único que captaria a vontade da maioria.
O utilitarismo exige muito mais de quem o utiliza: as premissas fáticas devem ser comprovadas e serem levadas a sério, as consequências devem ser avaliadas à luz da maximização da felicidade e, quando há fontes sociais legisladas sobre o tema, com textos claros – sim, eles existem! -, não podem vencer o direito posto.
As digressões feitas servem como uma apresentação do utilitarismo e demonstra os requisitos para que seja bem utilizado, deixando de ser mero argumento retórico e de confirmação de decisões previamente tomadas.
No mundo real, Thanos não existe, mas nos quadrinhos da Marvel é curioso que seu nome verdadeiro seja Dione, que, na mitologia grega, é mãe de Afrodite, a deusa da beleza e do amor.
Falsos deuses, semideuses, heróis e mitos são aqueles que podem encantar pela palavra, pelo discurso, pela retórica, fazendo-nos afastar do ganho civilizatório real que trazem a democracia e a Constituição.
A perda suave da liberdade ocorre com boas intenções também ou, o que é pior, com falsas intenções camufladas.