Cristiana Fortini (MG)
A abordagem que, em breves linhas, aqui se faz reflete a pesquisa que estou a desenvolver sobre o combate à corrupção nas licitações e contratações públicas, doença que afeta todos os países do mundo e, infelizmente, como universalmente se sabe, não poupa o Brasil.
O combate à corrupção demanda cuidados que se entrelaçam numa incessante tentativa de evitar desvios comportamentais e incentivar a adoção de práticas que possam minimizar os riscos de sua ocorrência. Evidentemente, é preciso considerar a falibilidade dos mecanismos voltados a impedir o malfeito, pelo que ferramentas que permitam a detecção dos atos ilícitos e medidas repressivas, voltadas à punição de pessoas físicas e jurídicas, também compõem o artefato com o qual se poderá frear a corrupção.
No cenário das licitações e contratações públicas, certamente não há um conjunto perfeito de ferramentas e mecanismos capazes de eliminar os desvios, mas a existência de um sistema que possa de forma harmônica contribuir para desincentivar/reduzir/detectar/punir é fundamental para sinalizar a preocupação da sociedade e do governo.
Os Estados Unidos da América também convivem com a corrupção e estabeleceram uma vastidão de medidas com o propósito de evitar sua ocorrência, sem descuidar da penalização dos responsáveis.
Dentre os diversos procedimentos e previsões normativas aqui encontradas, uma especial atenção merece o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), cujas linhas gerais serão aqui mencionadas.
O FCPA remonta ao ano de 1977, após uma série de escândalos sobre pagamentos de propinas em ambiente doméstico e internacional, atingindo aproximadamente 400 empresas. Não se trata da mais poderosa arma de combate à corrupção (se é que se pode assim reconhecer qualquer uma delas), sobretudo porque não atinge os atos de corrupção a envolver agentes públicos norte-americanos, mas o elegemos para este breve comentário considerando a possibilidade de oferecer uma contraposição com a Lei nº 12.846/13.
Substancialmente, o FCPA proíbe a oferta e a efetiva realização de pagamentos impróprios a “foreign official”, destinados a garantir um ajuste ou a manutenção de um vínculo preexistente, mesmo que o ajuste que se queira estabelecer ou preservar não envolva o governo estrangeiro ou suas entidades. O fato de o agente ser capaz de influenciar o governo estrangeiro a adotar comportamento desejado também atrai a aplicação do FCPA.
A abrangência do conceito de “foreign official” é maior do que a literalidade poderia sugerir. Está a se incluir não apenas o que no Brasil chamaríamos de agentes públicos, mas qualquer pessoa que possa estar a atuar em benefício de órgãos públicos ou organismos internacionais, como o Banco Mundial e a Organização dos Estados Americanos. Inclui, como já se suporia pela menção a agentes públicos, empregados de organizações do terceiro setor e de empresas estatais.
O Departamento de Justiça (DOJ) e a Secutiries and Exchange Commision(SEC) são os órgãos encarregados de aplicar o FCPA, pelo que deles emerge a interpretação da norma. Já se considerou foreign official o membro de um comitê na India, responsável por decidir sobre o registro/licença de produtos químicos naquele país. Não identificamos, por enquanto, na pesquisa em desenvolvimento manifestação de órgãos do Poder Judiciário norte-americano sobre a abrangência do termo. Robert Tarum, em seu “The Foreign Corrupt Practicess Act Handbook” , edição de 2010, afirma inexistir, até aquela data, manifestação judicial. Isso é possível porque, diferentemente do Brasil, em que o atuar Judiciário é acionado por qualquer dissabor, admitindo-se a ampla revisão judicial, nos EUA as decisões das agências gozam de maior prestígio e as discussões judiciais não são tão comuns.
A primeira e importante distinção para a nossa lei está na ausência de distinção entre agentes estrangeiros ou brasileiros como destinatários da propina. Nos Estados Unidos, trata-se de forma apartada, mediante outras regras, a corrupção interna, a atingir os agentes norte-americanos.
Repudia-se pagar, oferecer ou prometer pagar dinheiro, presente ou algo de valor, como viagens, jóias, desde que com o intento de corromper. A comprovação do “evil motive” , da intenção de influenciar de forma inaceitável o destinatário da vantagem indevida a obter ou manter vínculos comerciais é requerida nos EUA, tanto sob a influência do FCPA quanto nas hipóteses de corrupção interna. Deve ser demonstrado que havia consciência do ato ilícito do ato praticado, ainda que não necessariamente o responsável pelo pagamento ou oferta tenha conhecimento de que o destino final seria o “foreign official”. A responsabilidade das empresas subsistirá se a empresa autorizar (implícita ou explicitamente) ou tiver conhecimento de atos de terceiros, como advogados ou consultores, considerados ilícitos nos termos do FCPA.
A Lei brasileira estabelece responsabilidade objetiva, não importando se a empresa tinha ou não conhecimento, se havia autorizado ou demandado a prática dos atos considerados nocivos por seus colaboradores. Trata-se de regra que facilita a responsabilização das empresas, dado que desnecessária a comprovação do intuito de corromper exigido nos Estados Unidos.
Ao apresentar a Lei Brasileira, a reação dos norte-americanos foi de surpresa. Consideram um excesso a responsabilização de uma empresa sem que se investigue em que medida ela estava efetivamente ciente do “wrongdoing”. A mim, contudo, soa inocente imaginar que a corrupção, sobretudo, e de forma muito acentuada, a que ocorre para além dos mares, assunto abordado no FCPA, possa ocorrer sem que a empresa tenha ciência. De toda sorte, não é possível ignorar a prática brasileira de criar regras extremamente rígidas, em especial quando o propósito é a responsabilização civil, penal ou administrativa, cuja efetiva aplicação apenas se torna mais difícil.
Explicar que a existência de um forte sistema de integridade, da demonstração de cooperação por parte das empresas, da ausência de histórico prévio anterior apenas servirão como balizas para a aplicação das penalidades, mas não as afastarão, também causa perplexidade na terra de George Washington.
Regra a sugerir uma excessiva flexibilidade, sob o meu ponto de vista, relaciona-se com a possibilidade constante no FCPA de se admitirem alguns tipos de pagamentos e dois tipos de defesas, o que não existe na realidade legislativa brasileira, ao menos não de forma expressa.
À luz do FCPA, justifica-se o pagamento, a título de “facilitating payments” , assim consideradas despesas destinadas ao escalão inferior do governo (e equivalentes) para sustentar ações rotineiras, chamadas de “ routine government actions", como licenças, vistos. Evidentemente que a nomenclatura não alcança decisões sobre o destinatário de dado contrato. A despeito de a Lei nº 12.846/13 não excluir pagamentos dessa ordem do seu guarda-chuva de abrangência, parece razoável concluir pela impossibilidade de condenação dado que não estaria configurada a ilicitude que a lei visa reprimir.
O FCPA refere-se ainda a duas “affirmative defenses”. Não se condena o pagamento de dinheiro ou equivalente quando ajustado expressamente à legislação do país estrangeiro. Segundo Robert Tarun, entretanto, ainda que se faça o pagamento de algo tolerado pela legislação estrangeira, a existência do intento de corromper poderá atrair a incidência do FCPA. Para o autor, a transparência do pagamento é um dos fatores que o DOJ e a SEC irão considerar para decidirem as ações a serem adotadas em casos assim.
A Legislação brasileira não traz regra semelhante. Até este momento da pesquisa, os argumentos para a previsão no FCPA acima descrita não foram convincentes. A regra parece ignorar que, ainda que a legislação externa autorize o pagamento, a preocupação mundial deve ser a de evitar qualquer sorte de ofensa ao ambiente competitivo, pelo que todos os esforços devem ser congregados com vistas a desestimular de forma irmanada práticas incorretas, sobretudo porque a corrupção danifica de forma mais acentuada os países mais pobres, impedindo o bem estar social e por vezes afetando a democracia.
A segunda defesa é relativa ao que no FCPA é denominado como “reasonable and bona fide expenditures”. Quando se verifica que a empresa pagou despesas razoáveis e imbuída de boa fé, tais como viagens em favor do “foreign official” para promover, demonstrar ou explicar os produtos e serviços, afastam-se as penalidades. Vê-se, como o nome sugere, que apenas razoáveis despesas são admitidas. Por isso, em 1999, o DOJ não aceitou a utilização da defesa quando a empresa americana Metcalf & Eddy Inc. pagou viagens de primeira classe de agentes egípcios para os Estados Unidos com todas as demais despesas da viagem incluídas, inclusive valores em dinheiro.
Defesa assim igualmente não é reconhecida na legislação brasileira, cuja ideia central é a rigorosa responsabilidade objetiva.
Novas informações, surgidas no caminhar da pesquisa, serão oportunamente reveladas.
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