César de Faria Jr (BA)
A Carta Magna da República assegura ao preso o direito de permanecer calado, além da assistência da família e de advogado, nos precisos termos do inciso LXIII, do seu art.5º.
E o faz como direito e garantia fundamentais, que não podem ser objeto de emenda à Constituição, constituindo-se em verdadeira cláusula pétrea.
Com efeito, mesmo na vigência do “Estado de Defesa”, quando podem ser restringidos vários direitos como de reunião, sigilo de correspondência, de comunicação telegráfica e telefônica, e é permitida até prisão sem flagrante e sem prévia ordem judicial, por crime contra o Estado (art. 136, § 3º, CF), permanece incólume o direito ao silêncio do preso, bem como à assistência familiar e jurídica, tanto que, expressamente, é vedada sua incomunicabilidade (art. 136, § 3º, IV, CF).
De igual modo, também no “Estado de Sítio”, quando poderá haver, dentre outras, restrições relativas à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão (art. 139, III, CF), nenhuma mitigação existe no tocante ao direito de permanecer calado, direito ao silêncio, enfim, a não autoincriminação.
Evidente que o direito de permanecer calado vigora em qualquer interrogatório, seja judicial ou extrajudicial, esteja, solto ou preso, o interrogado. Trata-se de um direito individual de eficácia plena, tanto que o nosso vetusto Código de Processo Penal de 1941 foi alterado, no particular, pela Lei 10.792/2003, para, em consonância com a Constituição Federal, assegurar ao acusado, “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, ser informado, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”, tendo, na nova dicção do art. 186, sido acrescentado parágrafo único, para proclamar que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.”
É claro que o interrogado não pode fazer uso do direito ao silêncio na sua qualificação, quando deverá informar seu nome completo, endereço, profissão, e fornecer demais dados pessoais necessários a sua devida qualificação.
Contudo, após a qualificação, qualquer que seja a autoridade inquisidora (juiz, delegado, parlamentar), tem o dever, antes de iniciar o interrogatório propriamente dito, de informar do seu direito de não responder a perguntas que lhe forem formuladas, sem nenhuma outra condição, podendo o imputado, na autodefesa, ou seguindo orientação da sua defesa técnica, se for o caso, não responder a todas ou a algumas das perguntas, sem que para isso tenha que apresentar qualquer justificativa, muito menos que tal ou qual pergunta poderá incriminá-lo, o que soaria como uma “confissão tácita”.
No direito americano, no famoso caso MIRANDA v. ARIZONA (1966), a Suprema Corte dos EUA anulou a condenação de Ernesto Miranda por sequestro seguido de estupro, pelo fato dos policiais não terem alertado dos seus direitos durante o interrogatório, dentre eles, o de permanecer calado e de ser assistido por um advogado.
Acredita-se, inclusive, que o “Aviso de Miranda” tenha inspirado o dispositivo do inciso LXIII, do art. 5º, da Constituição Brasileira, e agora o STF terá a oportunidade de definir se o Estado brasileiro tem a obrigação de informar o direito ao silêncio no momento da abordagem policial, em face do reconhecimento da repercussão geral da questão (tema 1.185) no RE 1.177.984, Rel. Min. Edson Fachin, Advs. Alberto Zacharias Toron e Renato Marques Martins. (03/12/21).
No Brasil, o STF já havia firmado posição no sentido de tais garantias serem direito do investigado, como reafirmado no recente caso da CPI de Brumadinho, no julgamento do HC 171.438, em 28/05/2019, Rel. Min. Gilmar Mendes, quando a Segunda Turma assegurou ao paciente: “a) o direito ao silêncio, ou seja, de não responder, querendo, a perguntas a ele direcionadas; b) o direito à assistência por advogado durante o ato; c) o direito de não ser submetido ao compromisso de dizer a verdade ou de subscrever termos com esse conteúdo; e d) o direito de não sofrer constrangimentos físicos ou morais decorrentes do exercício dos direitos anteriores”.
Neste Habeas Corpus, o Min. Gilmar Mendes, como decorrência dos direitos garantidos, concedeu a ordem também “para convolar a compulsoriedade de comparecimento em facultatividade e deixar a cargo do paciente a decisão de comparecer, ou não, à Câmara dos Deputados”, no que foi seguido in totum pelo Min. Celso de Mello, mas não pelos Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia, que concederam a ordem em menor extensão.
No seu substancioso voto, lembrou o Min. Gilmar Mendes que o pleno do STF na ADPF 395 (da qual também fora Relator), para chegar à conclusão que a condução coercitiva do interrogatório do investigado é incompatível com a Constituição Federal, reconheceu o direito subjetivo de ausência ao interrogatório, policial ou judicial. Ademais, ressalte-se que o acusado pode abrir mão de estar presente até ao próprio julgamento pelo Tribunal do Júri – art. 457,§ 2º, do CPP, sendo vedado às partes, sob pena de nulidade, fazerem referências, durante o julgamento, ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório, em seu prejuízo (art. 478, II, CPP).
O Ministro Fachin, por sua vez, após assentar a premissa de que “as CPIs detém, nos termos do art. 58 da Constituição, poderes de investigação que são próprios das autoridades judiciais”, trazendo à colação o HC 79.244, “no qual o eminente Ministro Pertence assentou que: ´O direito ao silêncio confere à pessoa que comparece perante qualquer dos Poderes Públicos a prerrogativa de não responder a perguntas cujas respostas, em seu entender, possam lhe incriminar” (Grifou-se), assegurou ao paciente todos os direitos pleiteados, exceto o de deixar de comparecer ao ato.
No mesmo sentido, a Min. Cármen Lúcia acompanhou a divergência, ressalvando que não estava rediscutindo o quanto assentado na ADPF 444, quando o pleno declarou a não recepção parcial do art. 260 do CPP, mas que o investigado tinha o dever de comparecer, até porque haveria a primeira fase do interrogatório, referente à sua identificação.
Como bem ressaltou o Relator, Min. Gilmar Mendes, “o direito à não autoincriminação tem fundamento mais amplo do que o expressamente previsto no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal.” Envolve diversos preceitos constitucionais como o do art. 1º, III (dignidade humana), o do art. 5º, LIV (devido processo legal), do art. 5º, LV (ampla defesa), e do art. 5º, LVII (presunção de inocência). Foi justamente nesse sentido que a jurisprudência se posicionou no período imediatamente posterior à Constituição (HC 68.929, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 22.10.1991).
Deixando de lado, neste momento, por não ser objeto de discussão deste artigo, o direito ao não comparecimento, a jurisprudência da Suprema Corte é pacífica e remansosa no sentido de assegurar o direito de permanecer calado e de assistência de advogado ao investigado convocado para interrogatório em CPIs.
Durante a CPI da COVID ou da Pandemia, em que pese a importância do objeto da sua investigação, data venia, assistiu-se a inadmissíveis abusos na tomada dos depoimentos de alguns convocados, quando eles deixaram de responder a algumas perguntas ou mesmo fizeram uso do direito ao silêncio, tanto assim que várias liminares foram concedidas por diversos Ministros do STF, no sentido de assegurar o direito de permanecer calado.
Dentre as liminares, causou polêmica à concedida no HC 204.422/DF, pelo Min. Presidente do STF, Luiz Fux, tendo sido objeto de embargos de declaração por ambas as partes, após o depoimento da paciente na CPI, em 13/07/2021, quando permaneceu em silêncio, negando-se a responder a todas as perguntas formuladas pelos membros da Comissão.
A questão posta em discussão consiste em definir a quem caberia proceder ao juízo de avaliação se as perguntas formuladas se relacionavam a fatos que pudessem incriminar a depoente, quando lhe seria assegurado o direito de permanecer em silêncio, ou se seriam fatos que a paciente seria meramente testemunha, quando teria o dever de depor e de dizer a verdade.
Ao acolher parcialmente os embargos de declaração, disse o Min. Fux que “o primeiro juízo sobre o conteúdo desse direito compete ao seu próprio titular”, mas que “às Comissões Parlamentares de Inquérito, como autoridades investidas de poderes judiciais, recai o poder-dever de analisar, à luz de cada caso concreto, a ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não-incriminação. Se assim entender configurada a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para adoção fundamentada das providências legais cabíveis.”
Com a devida vênia, embora diga o atual Presidente do STF, que sua decisão não representa “qualquer inovação jurisprudencial sobre o tema”, é certo que o STF já havia firmado posição que compete ao interrogado, ´a prerrogativa de não responder a perguntas cujas respostas, em seu entender, possam lhe incriminar”, nos termos do voto do eminente Ministro Pertence no HC 79.244, acima referido pelo Min. Fachin.
No mesmo diapasão, o plenário da Suprema Corte, no HC 79.812-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.2.2001, durante a CPI do Narcotráfico, afirmou o enunciado que: “o privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Judiciário.” (Confira-se também o HC 78.814-PR).
Permitir-se que a autoridade inquisidora, seja ela qual for, possa exigir de um investigado que responda a determinadas perguntas, porque as respostas, ao seu juízo, não lhe incriminariam, afigura-se extremamente contraditório para quem ainda não sabe as respostas, vulnerando, na avaliação da defesa, o direito fundamental a não autoincriminação.
Convém lembrar, outrossim, que a jurisprudência já se firmou no sentido de que o interrogado pode exercer seu direito ao silêncio de forma parcial, respondendo, por ex., apenas às perguntas formuladas pela defesa, é o denominado direito ao silêncio parcial, assegurado como estratégia defensiva, consoante recente decisão da 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Felix Fischer (HC 628.224/MG).
Além disso, nesta hipótese, se o acusado declara que somente responderá as indagações da defesa, não cabe ao Juiz ou ao MP ficar fazendo perguntas, uma após outra, como forma de pressioná-lo a responder, tanto que, com a Lei 10.792/2003, deixou de existir a exigência de “consignar as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo”, prevista na redação original do art. 191 do CPP (“Art. 191. Consignar-se-ão as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo”, redação original, CPP).
Advirta-se, ainda, que o pleno do STF já reconheceu que “Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la”. (RTJ 163/626. Rel. Min. Carlos Velloso).
Portanto, se até mesmo à testemunha é assegurado o direito de não responder determinadas perguntas que possam lhe comprometer, com maior razão poderá permanecer em silêncio o investigado, ainda que sobre fatos em relação aos quais seja considerado “meramente como testemunha”.
Na prática, não se compreende como um investigado, na mesma investigação, possa ser “meramente testemunha” com relação a determinados fatos e a outros não, a critério da autoridade que investiga, quando ainda não se sabe de todo o contexto probatório. É de se pressupor que haja entre eles ao menos uma relação de conexidade, a serem tratados, futuramente, em uma mesma ação penal, caso haja oferecimento de denúncia. E, nesta hipótese, tornando-se réu, ainda assim poderia, no mesmo processo, ser tratado como “meramente testemunha” em relação a fatos que não o incriminam? Evidentemente que não.
O entendimento contrário, data maxima vênia, implicará em inaceitável retrocesso, quando, sob os holofotes da mídia em CPIs, parlamentares sem o devido preparo sentir-se-ão livres para ameaçar de prisão depoentes e até seus advogados (os quais têm o dever profissional de reagir), para obterem, a qualquer custo, as respostas que querem ouvir.
E o mais perigoso de todo este espetáculo é, sem dúvida, o mau exemplo, a mensagem distorcida que, lamentavelmente, ressoará no inconsciente coletivo do que seria legítimo ocorrer no âmbito de uma investigação, impondo-se a reflexão: se um Senador da República pode, publicamente, em uma importante CPI, destratar testemunhas, investigados e até seus advogados, o que não se sentirão autorizadas a fazer outras autoridades, onde a mídia não chega, nos rincões deste País continental?
Por tudo isso, passadas as paixões de momento, é imperioso reafirmar a jurisprudência da Suprema Corte, fiel aos princípios democráticos da Carta política de 1988, notadamente o da presunção de inocência e a relevância de seu significado político-jurídico, que impõe ao Poder Público (CPI, v.g.) o respeito como regra de tratamento a toda pessoa, que não pode ser desconsiderada por qualquer dos poderes da República.