César de Faria Jr (BA)
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No momento em que o Congresso Nacional discute uma nova Lei de Abuso de Autoridade, quando o país expõe suas “vísceras” em uma operação da magnitude da “Lava Jato”, considerada por alguns críticos como uma autodefesa contra a “operação lava jato”, mas, para outros, imprescindível para punir seus inegáveis excessos, não se pode negar, mesmo reconhecendo a necessidade de atualização da polêmica lei, ser de suma importância a preservação da independência das autoridades, sobretudo dos juízes, uma vez que não existe, nem pode existir, o chamado “crime de hermenêutica”.
Nessa perspectiva, oportuno revisitar o famoso processo criminal a que foi submetido o Juiz Alcides de Mendonça Lima, há mais de cem anos, para constatar o vigor de sua atualidade e a lição de que os verdadeiros exemplos de resistência ao arbítrio, de independência e de coragem na luta pela justiça projetam-se no tempo.
Nele encontra-se o caso de um Juiz que, ao abrir uma sessão do Tribunal do Júri, interpretando a Constituição Republicana, declarou inconstitucionais dispositivos de uma lei de organização judiciária do Rio Grande do Sul, no tocante à abolição das recusas dos jurados e à exigência do voto a descoberto, determinando que fosse aplicada uma lei do Império.
A forma sensacionalista com que um jornal da época, ligado ao governo estadual, divulgou o fato, dando-lhe conotação política, despertou a ira do então Presidente da Província, Júlio de Castilho, que passou a empreender uma ferrenha perseguição ao Juiz “delinqüente e faccioso”.
No bojo desse processo, estão temas de grande atualidade: sobreleva-se a independência da Magistratura, quando se discute hoje uma polêmica lei de abuso de autoridade, a independência do Juiz, quando já se adota o questionável sistema das súmulas vinculantes.
Além disso, arrastaram para o banco dos réus, ao lado do Juiz Alcides Lima, o Júri Popular, tema igualmente empolgante quanto polêmico, também muito presente, no instante em se analisam sugestões para reformá-lo.
O advogado Ruy Barbosa defendeu a ambos, oferecendo verdadeira monografia sobre esses temas, pondo a questão nos seguintes termos: “Não é só a defesa de um magistrado que nesse rápido improviso se empreende, mas a dos dois elementos, que, no seio das nações modernas, constituem a alma e o nervo da liberdade: o júri e a independência da magistratura”.
Ao que Ruy denominara de rápido improviso, transformara-se no livro “O Júri e a Responsabilidade Penal dos Juízes”, contendo 146 páginas.
Revivendo episódios significativos do processo a que foi submetido o destemido Magistrado, pondo em evidência a douta e veemente defesa da lavra de Ruy Barbosa, objetiva-se prestar uma contribuição à cultura, ainda que singela, na busca incessante do aprimoramento das instituições democráticas.
O CASO CONCRETO(*)
(*) Servimo-nos, neste escorço histórico sobre o processo do Juiz Alcides de Mendonça Lima, do primoroso trabalho do ilustre e saudoso jurista RUBEM NOGUEIRA, um dos mais doutos e autorizados Ruístas, contido no Cap. 2, 5a parte, da sua consagrada obra, “O ADVOGADO RUI BARBOSA”.
“Jornal Reforma, aqui se publica, inseriu último número seguinte telegrama: “Rio Grande, 28 de março. Foi hoje instalada a 1a sessão do júri no corrente ano. O juiz da comarca, Dr. Alcides Lima, ao abrir a sessão declarou ser contrária às Constituições federal e estadual a lei que dá nova organização judiciária ao Estado na parte do júri referente à recusações de jurados e ao voto a descoberto. Justificando esta inconstitucionalidade, o Dr. Alcides Lima mandou observar a antiga lei nesses pontos. Informai com urgência sobre a veracidade tal comunicado.”
Este o telegrama do então Governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilho, ao Juiz de Direito, Dr. Alcides Mendonça Lima, que respondeu simplesmente: “Informo ser exata comunicação telegráfica Jornal Reforma a que se refere vosso telegrama de ontem.”
De fato, antes da sessão do Júri na cidade do Rio Grande, no dia 28 de março de 1896, o Dr. Alcides Lima declarou que nos dois processos que iriam ser julgados não poderia ser observada a lei de organização judiciária do Estado, no tocante às recusas de jurados e ao voto a descoberto, em virtude da sua inconstitucionalidade.
Argumentou o Dr. Mendonça Lima que a Constituição Federal de 1891, pelo seu art.72, § 31, mantinha a instituição do Júri tal qual existia à época da sua promulgação, segundo as leis do Império, onde as recusas eram consentidas e a votação secreta. Por conseguinte, revelavam-se manifestamente inconstitucionais os dispositivos que proscreviam as recusas e o sigilo do voto, razão pela qual deixava de aplicá-los.
Ao receber a breve resposta do Juiz Alcides Lima, o Presidente Castilho encaminhou ao Procurador-Geral do Estado um ofício no qual, depois de narrar o ocorrido, determinava-lhe que promovesse “com a possível brevidade, a responsabilidade do juiz delinqüente e faccioso”.
Já no dia 01 de abril, o Procurador-Geral do Estado oferecia denúncia contra o Dr. Alcides Lima, imputando-lhe a prática do crime de prevaricação (art.207, § 1º do Código Penal de 1890), com as circunstâncias agravantes do art.39, §§ 2º e 14 do mesmo Código de 1890.
Dispunha o art.207 do CP de 1890:
“Cometerá crime de prevaricação o empregado público que, por afeição, ódio, contemplação ou para promover interesse seu:
I- julgar, ou proceder contra literal disposição de lei. Penas: de prisão celular por seis meses a um ano, perda de emprego com inabilitação para exercer outro e multa de 200$ a 600.” (*)
(*) Atualmente, art.319 do CP/1940: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”
A circunstância agravante, narrava o Procurador, seria o fato de o denunciado não ter apresentado emenda à lei quando da sua elaboração, embora pudesse fazê-lo, como um cidadão qualquer, e agora “na cadeira de presidente do júri, com abuso flagrante de autoridade, veio dar o seu grito de sedição, obedecendo a interesses dos perturbadores da ordem.”
Neste primeiro momento, apresentou o Dr. Alcides Lima sua própria defesa, destruindo, ponto por ponto, todos os frágeis argumentos da denúncia, que não passava de uma atitude política do Castilhismo dominante no Rio Grande do Sul.
Preliminarmente, argüiu a incompetência do foro em razão da matéria, entendendo que só o Supremo Tribunal seria competente para declarar a constitucionalidade daquela lei, sem a qual não se deveria dar andamento ao processo de responsabilidade.
No mérito, seus argumentos foram assim sintetizados pelo eminente Prof. RUBEM NOGUEIRA:
“1º) O júri mantido pela Constituição de 1891, era o do tempo da sua promulgação; 2º) Ao legislador ordinário, estadual ou federal, não era dado legislar sobre essa instituição, suprimindo-lhe quaisquer atributos essenciais; 3º) Entre esses atributos, o sigilo do voto e o direito às recusações peremptórias ocupam lugar relevante, segundo a mais pura fonte doutrinal, e os mais remotos assentos legais que sobre o júri existem no Brasil, desde a sua emancipação política, podendo citar-se o decreto de 18-6-1822, “que iniciou no país o julgamento pelo júri”; o decreto de 22-11-1823, a lei de 20-11-1830 ( sobre liberdade de imprensa), e, por fim, o Código de Processo Criminal; 4º) Mesmo nos momentos de vicissitudes, porque entre nós passou, “jamais perdeu a instituição os seus dois atributos essenciais: o direito a recusações peremptórias e o voto secreto”; 5º) Na Legislação Geral e dos Estados foram eles respeitados, tendo alguns Estados alterado a legislação anterior, apenas em pontos secundários; 6º) Só no Rio Grande do Sul se percebia uma tendência para desnaturar e inutilizar o júri, desde o Ato n.283, de 25-4-1891 e as discussões travadas no Congresso Constituinte, até à Lei 10, de organização judiciária, onde o empenho de arrasar o júri havia ficado patente; 7º) Mas o juiz não devia aplicar uma lei inconstitucional, e assim procedendo, estava enquadrado nos postulados federativos por nós adotados, e no art.8º da própria lei averbada de atentatória da Constituição; 8º) Logo, não havia delito a imputar-se ao denunciado, mesmo porque ele se limitara a interpretar a lei, e “não se pode honestamente ver um crime na interpretação, embora, má ou errônea, que o magistrado dá aos textos de uma lei”. (O ADVOGADO RUI BARBOSA, Belo Horizonte: Ciência Jurídica, 4a ed., 1996, págs. 215/16).
Quanto à aludida agravante do presumido delito, obtemperou tratar-se de simples faculdade, não passando de um falseamento do regime democrático, justificando não ter apresentado emendas tendentes a restaurar o sigilo do voto e as recusas peremptórias, para não projetar sua atividade fora da missão especial do Poder Judiciário.
Após salientar que a acusação não produziu prova alguma dos motivos reprovadores do crime previsto no art.207, § 1º (afeição, ódio e interesse pessoal, a denúncia chegava a aludir a ódio político e interesse partidário), concluiu o destemido Magistrado:
“Portanto, o que tendes diante de vós, Srs. Juízes do Superior Tribunal, não é uma denúncia que se inspira no bem público e no zelo pela administração da Justiça. É obra da imoderada e passageira irritação presidencial, infelizmente, transmitida ao Procurador-Geral, que no texto da própria denúncia deixou estereotipada a falta de madura e séria reflexão. Nessa importante peça judicial, início e base do processo de responsabilidade, do qual podem resultar as mais graves consequências morais e materiais para o processado, a Procuradoria Geral foi dúbia e hesitante ao capitular o crime, demonstrando, assim, a sua pouca ou nenhuma convicção jurídica na existência real do delito. Ora atribui ao denunciado o crime de alta prevaricação - não definido no Código -, ora de conduta irregular (art.239), depois o de abuso de autoridade (art.224), em seguida os de sedição (art.118) e rebelião, e finalmente, o de prevaricação.
Percebe-se que a perplexidade da Procuradoria origina-se na carência de base jurídica para a incriminação de um ato regular.
Está concluída esta resposta. O Superior Tribunal, inspirando-se na sua alta missão, decidirá se deve ser submetido a julgamento um membro do Poder Judiciário pelo fato de haver dado à lei uma interpretação que lhe pareceu a mais jurídica.
A sociedade rio-grandense desde este momento tem voltada a sua atenção para o mais elevado tribunal do Estado, porque a decisão desse tribunal é que vai mostrar-lhe clara e definitivamente se a independência do Poder Judiciário, a que estão ligados os vitais interesses da população, é realmente um fato ou um simples adorno constitucional.”
No dia 29 de maio, o Superior Tribunal rio-grandense pronunciou o Dr. Alcides Lima, alterando apenas a classificação do delito, para considerá-lo incurso nas sanções mais brandas do art.226 do Código Penal (“exceder o limite das funções próprias do emprego”).
Por força do acórdão de 18 de agosto de 1896 do Tribunal Gaúcho, o Dr. Alcides de Mendonça Lima fora condenado a nove meses de suspensão do emprego (grau mínimo do art.226 do Código Penal de 1890).
Agora por meio de advogado (o Dr. Pinto Alvim), interpôs o Juiz condenado recurso de revisão para o Supremo Tribunal Federal, fundado em que o acórdão condenatório havia infringido lei expressa e estava em contradição com a prova dos autos.
Todavia, o advogado do recorrente não chegou a arrazoar o recurso, limitando-se a interpô-lo e, segundo os estilos forense da época, a protestar por mais amplas demonstrações jurídicas.
O MEMORIAL DE RUY BARBOSA
Ruy Barbosa já havia exarado um sucinto parecer nos autos, mas somente nesta fase foi constituído advogado do Juiz Alcides Lima, para prosseguir na sua defesa. Entretanto, o rel. Min. José Higino não permitiu fosse juntado aos autos o memorial que Ruy havia escrito, sob a alegação de que não comportava razões que não houvessem sido apreciadas pelo juízo a quo. Contudo, Ruy desempenhou sua missão de defensor do Juiz, fazendo imprimir o longo e erudito memorial, distribuindo entre os membros do Supremo Tribunal, o que mais tarde dera lume a verdadeira monografia intitulada “O Júri e a Responsabilidade Penal dos Juízes”, Rio, 1896, contendo 146 páginas.
Retomando as teses suscitadas pelo próprio denunciado perante o Tribunal Gaúcho, Ruy deu-lhes feição de novidade, pela exuberância da análise doutrinária, pela forma abundante e convincente dos argumentos, pondo a questão, logo na epígrafe da sua monografia, nos seguintes termos: “Não é só a defesa de um magistrado que nesse rápido improviso se empreende, mas a dos dois elementos, que, no seio das nações modernas, constituem a alma e o nervo da liberdade: o júri e a independência da magistratura.”
Compõe-se a peça jurídica de seis capítulos. Em primeiro lugar, vem a análise da história das origens da instituição do Júri Popular, desde Tácito e através da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da França, Itália e Áustria. Depois, a da Lei rio-grandense nº10, do art.72, §31 da Constituição, do sigilo do voto no júri, das recusas peremptórias e, por fim, do denominado novum crimen: o crime de hermenêutica, quando discorre, ainda, sobre a nulidade das leis inconstitucionais.
Combate, sem perda de tempo, a concepção positivista que do Júri possuía o Presidente Júlio de Castilho, a julgar pelos termos da exposição de motivos da lei de organização judiciária, onde, baseado em Garofalo e Ferri, sustentara que “o júri é uma instituição regressiva, segundo os dados da história e da sociologia, porque representa a fase medieval e instintiva da Justiça Penal”.
“Dizer-se que o júri nos atrasa a um período instintivo da civilização, nos reconduz à idade média é, não obstante, os nomes de Lombroso, Ferri e Garofalo, um desses abusos da logomaquia dos sistemas, tão autorizado pela verdade, quanto é o que denunciasse uma entidade retardatária e medieval no governo representativo, cujas remotas origens se perdem, também muito longe, na Germânia de Tácito e na luta dos barões ingleses com João Sem Terra, em princípios do século treze. São duas teses irmãs, em que os panegiristas da autocracia política estariam naturalmente de acordo com “os novos terroristas do magistério penal”. As suas instituições descem das mesmas vertentes para o mundo contemporâneo, apresentam mais ou menos a mesma antigüidade; e o paralelismo da sua evolução, da sua consolidação, da sua propagação evidencia uma evolução quase orgânica, de que a história de mais de um século nos mostra indícios constantes.
Se o júri, de que já se encontra a prefiguração longíngua nos judices romanos, se não nos dicastas gregos, e nos centeni comites dos primitivos germanos, imortalizados por Tácito, autorizando historiadores e entusiastas seus a gabarem-no de medir o curso da civilização; se o júri, associado na investigação das suas origens históricas, ora aos teutões, ora aos eslavos, já aos romanos, já aos dinamarqueses, recebeu os primeiros traços da sua forma definitiva no solo britânico, depois da conquista normanda, sob Henrique II, extinguindo-se na França, de onde fora transplantado nos seus mais grosseiros rudimentos com as capitulares, na média idade inglesa é que ele revestiu a imagem, sob que a Era Moderna o adotou. Contudo, é contemporâneo o momento da sua culminação jurídica, o período da sua universalidade, a época da generalização dos seus benefícios a toda parte culta da espécie humana.”
Em seguida, passa a demonstrar como a instituição do Júri se espargiu das Ilhas Britânicas para as antigas colônias inglesas da América, até sua consagração posterior na Constituição dos Estados Unidos e nas de todas as unidades federadas daquela República, revelando extensa bibliografia anglo-americana.
Além disso, com apoio das mais célebres autoridades judiciárias do mundo, como Gneist, Stubs, Tocqueville, Mittermayer, Ruttiman, mostrou ser o Júri, também, uma criação política, e não apenas jurídica, sobremodo relevante nos governos constitucionais, onde sempre figura em lugar de honra “e a opinião geral o sustenta contra as veleidades das escolas radicais”, garantindo que “a área geográfica do júri é a da civilização moderna.”
Posteriormente, ingressa na análise das inconstitucionalidades da lei gaúcha de organização judiciária, na parte em que estatuía o voto a descoberto e eliminava as recusas dos jurados, procedendo a detida análise da locução - “é mantida a instituição do júri”- presente no art.72, § 31, da Constituição Republicana, chegando à mesma conclusão do Juiz recorrente, qual seja: a de que a carta republicana havia mantido o Júri existente ao tempo do seu advento, portanto, com todas as suas características tradicionais.
Na última e mais longa parte do belíssimo memorial, tratou Ruy do que denominara novum crimen: o crime de hermenêutica.
“A resistência do juiz da comarca do Rio Grande a essa transmutação do júri, numa degenerescência indigna de tal nome, surpreendeu a política daquele Estado com o imprevisto de uma força viva e independente, a consciência da magistratura, difícil de submeter-se à prepotência dos governos. Com a necessidade então de acudir a obstáculo tão inesperado, improvisou-se, por ato de interpretação, nos tribunais locais, contra a magistratura um princípio de morte, de eliminação moral, correspondente ao que, por ato legislativo, se forjara, contra o júri, no gabinete do governador. O júri perderá absolutamente a sua independência, com o escrutínio a descoberto e a abolição da recusa peremptória; o poder não abrira só um postigo sobre a consciência do jurado, aquartelara-se nela. Para fazer do magistrado uma prepotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos.
Esta hipérbole do absurdo não tem linguagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo.”
Prossegue Ruy veemente, combatendo a violência inusitada de, ao invés de se tentar a reforma da sentença, pela via normal do recurso, partir-se para se punir o juiz. Antes passa ao exame da nulidade das leis inconstitucionais, ampliando lições sobre controle de constitucionalidade.
“Consideremos por um instante a hipótese vertente. A lei rio-grandense alterara, em todos os caracteres de que a revestia a tradição universal e a tradição brasileira, a individualidade do júri. Aumentara em razão mais que dupla as facilidades das condenações, reduzindo a cinco os doze membros do Conselho. Enfraquecera o jurado, abolindo o secreto protetor da sua isenção. Proibindo, enfim, a recusação peremptória, matara a confiança das partes nos juízes de fato, e fraudara a defesa numa das suas garantias mais eficazes. (...)”
Ao juiz, pois, logo que se lhe ofereceu ensejo de lidar com essa inovação radical, necessariamente, se impunha o confronto com a cláusula da Constituição republicana, que declara mantida a instituição do júri.
Tinha-se instaurado o litígio, e, com ele, determinado o caso concreto, a espécie individual, que submete o ato legislativo à verificação judiciária da sua constitucionalidade. Não se havia mister de que a questão fosse levantada por uma das partes, como aereamente figura a sentença recorrida. O limite da função judiciária está em não considerar a inconstitucionalidade, senão no caso pendente. Mas no terreno estrito do caso pendente nada tolhe ao juiz a iniciativa no exercício de uma atribuição, que, além do interesse das partes, entende com as bases orgânicas de toda a justiça. A maior das nulidades é a nulidade da lei, a sua ilegitimidade constitucional.(...)” “As nulidades estabelecidas no interesse da lei, são de ordem pública, e, como tais, se pronunciam ex officio. O Direito Civil considerou sempre de interesse público as nulidades, que envolvem a ordem das jurisdições. No Direito Constitucional, portanto, não se poderiam deixar de haver como de ordem pública as nulidades concernentes à ordem dos poderes. Inconstitucionalidade, numa lei, quer dizer invasão da soberania constituinte pelo Poder Legislativo. Pouco importa, pois, que as partes a não articulem, se na contenda entre as partes o juiz não pode julgar, sem encontrá-la, e obedecer-lhe, violando o direito constitucional, ou desobedecer-lhe, para o manter.”
O Juiz Mendonça Lima, enfrentando a questão no caso concreto, houve por bem em declarar a nulidade da lei rio-grandense, atento a sua ofensa à Constituição republicana. Os desembargadores do Superior Tribunal gaúcho, porém, não consideraram manifesta essa nulidade - donde a condenação imposta ao recorrente. “A questão, em última análise, observa Ruy, “se reduz a isto: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas.”
“Poderia haver delito nalguma das duas? Caso afirmativo (segundo a instância recorrida) estaríamos diante de uma “inaudita entidade criminal”, assevera Ruy: “Admitindo, entre os abusos da autoridade judiciária, o delito de interpretação inexata dos textos, nestes se hão de compreender tanto as leis ordinárias, como as constitucionais. Se o juiz, que, ainda no uso de uma função legal, errar na inteligência da Constituição, incide em criminalidade, não incidirá menos o que atribuir a uma lei comum sentido incorreto. Note-se que em todo o curso desta demonstração, os adjetivos incorreto, inexato, errôneo, falso, pressupõem sempre infalivelmente definida a verdade pela opinião vencedora na instância superior.
“Ora, raro é o pleito, nos diferentes ramos da jurisprudência, em que se não controverte, e diverge sobre a hermenêutica de uma cláusula do direito escrito. Na aplicação da mesma lei, do mesmo texto, do juízo dos magistrados varia contínua e incalculavelmente, de um para outro litígio no mesmo tribunal; no mesmo feito, de um juiz para ele mesmo, de uma instância para a outra e, na mesma instância, no mesmo tribunal, da maioria para a minoria.
Não há, talvez, uma só, das muitas questões já sentenciadas no Supremo Tribunal acerca de leis inconstitucionais, em que a decisão fosse unânime.”(...)
“Pela jurisprudência do Tribunal rio-grandense, o juiz seccional devia ser responsabilizado. Ele excedera os limites das funções próprias do seu emprego, anulando um ato do governo manifestamente consoante, segundo o voto vencedor no Superior Tribunal Gaúcho, com o pensamento da Constituição.
“É absurda a conseqüência? Então absurda é a premissa, de onde ele fatalmente deriva. Não há delitos de interpretação. Por interpretação injurídica só é responsável o juiz, quando ela ferir disposição literal; e, ainda nesse caso, não é o erro, que se reprime; é o dolo, a saber: a sentença dada “por afeição, ódio, contemplação, ou para promover interesse pessoal seu”(Código Penal, art.207, § 1º).
“A literalidade da lei violada é requisito elementar da culpa no exercício da função judicial; porque só a literalidade estabelece com toda a nitidez as balizas entre a opinião e a intenção, a opinião, que nunca é crime, e a intenção que pode sê-lo.(...)”
“Mas os grandes debates da hermenêutica, em assuntos de lei ordinária e lei constitucional, se travam, por via de regra, no domínio de relações, onde o direito não pode cristalizar-se nessas fórmulas lineares e incisivas, onde a solução das dificuldades suscitadas impõe confrontos, analogias, inferências, deduções, onde o processo da interpretação é complexo, lida com elementos técnicos, e obriga a raciocínios delicados. Dessa complexidade resulta o dissídio entre os julgadores, já no mesmo tribunal, já de um para outro. A teoria do Superior Tribunal do Rio Grande converte esse dissídio em crime, para os membros da minoria vencida, ou para os magistrados inferiores, na escala da autoridade judicial. E o delito então, resulta simplesmente do estar em minoria a opinião estigmatizada, ou exercer o acusado a sua jurisdição numa instância menos alta.
Nunca se atribuiu, em parte nenhuma, à magistratura, esse gênero de responsabilidade.(...)”
Insiste Ruy, demonstrando à exaustão o absurdo de se condenar um juiz, sem antes, ao menos, estar assente a solução definitiva da questão.
“Enquanto a decisão judicial, sobre que pesa increpação de erro, ou dolo, não houver percorrido, até à derradeira, as instâncias, a que a ordem legal do processo a submete, não há, judicialmente, dolo, nem erro; porque o vício, de que a acusam, não tem existência verificada, enquanto a autoridade do último Tribunal, na série da jurisdição preventa pela pendência da causa, não pronunciar, acerca da opinião denunciada, a última palavra. Se esta lhe é favorável, liquidou-se que o suposto erro era a verdade, o pretenso dolo a justiça. Interceptar, pois, um pleito em andamento, tratá-lo como findo, quando os desvios do juiz ainda se acham de par em par franqueados os recursos normais, e chamá-lo a contas noutra ação, responsabilizando-o, civil, ou criminalmente, por atos que têm a seu favor a presunção de juridicidade, enquanto não reformados na instância superior, e que nessa poderiam receber a sanção de uma sentença confirmatória, é a mais violenta, a mais crassa, a mais tresvairada enormidade, a que no foro se poderia assistir.”
Adiante, adverte Ruy sobre os riscos da temerária tese do crime de hermenêutica.
“Enquanto se não atinar meio de fixar perpetuamente a maioria dos corpos coletivos, o dogma de hoje, nos Tribunais Superiores, estará exposto a ser a heresia de amanhã, e o erro da véspera a campear de verdade no outro dia. Então, sob a dialética da nova teoria, a sentença proferida pela maioria, de um momento, poderá converter-se, mais tarde, em caso penal contra os seus membros, chamados a contas pela maioria superveniente. Não há meio de fugir aos corolários de um princípio falso, desde que interesses poderosos se achem empenhados em distendê-los até as conclusões extremas. Se o erro judiciário pode averbar-se em delito, ao juízo da maioria na instância definitiva, os magistrados, que a compõem, quando ela se inverter, estarão sujeitos a ser colhidos nas malhas da responsabilidade penal, anteriormente imposta ao juiz singular. Toda vez que se maligna o direito, insinuando-lhe noções iníquas, ou insensatas, o dano não pára no serviço fruído pela combinação efêmera que o inspirou; cada conveniência ulterior, utilizando a semente germinada, extrair-lhe-á quantos atentados a sua fertilidade possa autorizar, embora, os autores da novidade queiram limitar-lhe os resultados, e protestem contra o imprevisto dos frutos, que agora combatem, por não lhes aproveitarem. Na crônica dos corpos coletivos, políticos, ou judiciais, não faltam exemplos de reações e depurações, exercidas, no seu próprio seio, por um de seus membros contra os outros, ao alternar das maiorias. E, quando se produziu na magistratura a obliteração do sentimento dos seus deveres, necessária para que ela desconheça no magistrado a liberdade ampla de aplicar a lei segundo a sua consciência, as minorias, nos Tribunais Superiores, não se poderão considerar a salvo da invenção perseguidora, forjada contra os juízes singulares. Se o magistrado, male judicando sola imperitia, se faz réu, no mesmo crime do juiz singular, pela sentença que pronuncia, incorre o membro do Tribunal Coletivo, pelo voto que dá. E, depois, logo que os Tribunais Superiores variarem de jurisprudência, onde vai parar a moralidade, quando a houverem de acarear com as sentenças, em que ela dantes fulminava penas contra os juízes, a cuja opinião acabou por se converter?”
Assim, encerrou seus argumentos:
“Abrigue o Supremo Tribunal Federal sob a sua toga o júri brasileiro mutilado, honrando o compromisso constitucional, que lho recomenda. Esta é a questão inevitável nesse pleito. Da outra dissemos, por acompanhar a sentença, e não deixar sem repulsa um erro perigoso. Mas para o recorrente não se há mister do refúgio, que aí se lhe oferece, porque o erro, o atentado, é dos que o perseguem. A sua defesa é a defesa do júri. É o júri que ficaria sacrificado, se a revisão não considerasse o processo sob esta face.”
O DESFECHO DO PROCESSO
Em 10 de fevereiro de 1897, o Supremo Tribunal Federal absolve o Juiz Alcides de Mendonça Lima, sem, entretanto, examinar a questão da inconstitucionalidade da lei gaúcha de organização judiciária, nem aludir ao fato de se estar processando um juiz, sem submeter a recurso sua decisão, argumento amplamente defendido por Ruy. Votou contrário à absolvição apenas o Min. H. do Espírito Santo.
Numa segunda revisão do processo, dois anos e oito meses depois, em 07 de outubro de 1899, o Supremo Tribunal confirmou a absolvição do Juiz Mendonça Lima, sendo que, desta vez, procedeu ao exame da constitucionalidade da lei gaúcha.
Quanto à esta parte, julgou constitucional a lei estadual (contra os votos dos Mins. Piza e Almeida, Pereira Franco e G. de Carvalho), não considerando essencial ao Tribunal do Júri as recusas peremptórias e o sigilo das votações. Na verdade, os Ministros revelaram-se, nos seus votos, adversários do Tribunal Popular, tecendo inúmeras críticas à instituição do Júri.