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Qual carne é fraca?

ANO 2017 NUM 339
Carlos Ari Sundfeld (SP)
Professor Titular de Direito Administrativo da Escola de Direito da FGV-SP. Doutor em Direito. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Advogado.


20/03/2017 | 11725 pessoas já leram esta coluna. | 21 usuário(s) ON-line nesta página

A polícia federal vinha investigando possível corrupção de fiscais do serviço de inspeção federal e possíveis irregularidades nos frigoríficos. Quando entendeu que a investigação estava amadurecendo, fez um extenso relatório e requereu mandados de prisão, de condução coercitiva e de busca e apreensão. O juiz deferiu. Uma grande equipe foi formada para sua execução (afinal, eram nada menos que 309 mandados). Aí veio esta questão: que estratégia de comunicação adotar?

Algumas decisões foram tomadas. A crucial foi escolher um nome para a operação. Divulgar investigações tem se mostrado útil para, em torno do assunto que esteja em pauta, obter prestígio institucional e também mobilizar outros órgãos de estado e a opinião pública. Para isso, um nome charmoso cai bem. Entre outras opções menos saborosas, alguém teve o estalo e sugeriu: Operação Carne Fraca. Parecia perfeito. Uma alusão quase religiosa à tentação do suborno misturada com uma pitada de ironia quanto à qualidade dos produtos do setor.  

Quando a notícia chegou à mídia, a escolha mostrou seu valor. Foi logo no início da manhã, junto com a notícia de que se tratava da maior operação da história da polícia federal, que nunca tinha mobilizado tantos agentes. Agora estava se tornando público: a carne no Brasil era fraca.

Ainda em meio ao ruído das sirenes, a polícia reuniu a imprensa para explicar a operação. Falou em suborno de fiscais e em envolvimento de partidos políticos, deu o nome de autoridades e de grupos empresariais investigados –  são muitos grupos, entre eles os maiores do país, grandes exportadores. E aí atendeu à expectativa de todos quanto aos ilícitos investigados, fornecendo exemplos. À primeira vista, a postura dos policiais parecia natural para a transparência das ações públicas.

Só que os repórteres saíram de lá contando ao país e ao mundo que o Brasil estava vendendo muita carne podre, misturando papelão com carne, e assim por diante. Em todas as telinhas, o nome e a mensagem piscavam: Carne Fraca. O ministério da agricultura tomou um enorme susto. Não só por saber que seu serviço de inspeções tinha problemas graves, o que já não é pouco. Mas, sobretudo, porque o noticiário estava sugerindo que todo o setor estava podre.

Exagero da imprensa e da opinião pública meio histérica? Com certeza. Erro da polícia federal? Os agentes dizem que não, que só estavam prestando contas, relatando fatos: a investigação, as suspeitas, os investigados, os mandados. Os ouvintes é que, com seus próprios estômagos, teriam feito ilações indevidas. A polícia nada teria a ver com isso. Será?

Estão outra uma vez em jogo temas decisivos dos processos punitivos: a qualidade do trabalho investigativo e o risco da comunicação. Não só dos processos da esfera penal, como agora. Também da esfera administrativa, com a fiscalização de autoridades regulatórias (do setor de combustíveis e da vigilância sanitária, p.ex.). E os processos dos órgãos de controle, como os do tribunal de contas da União e os do próprio ministério público.

O projeto de lei 349, de 2015, do Senador Anastasia, preocupou-se com o tema, ao sugerir a inclusão, na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, de um artigo 29 para prever que a decisão dos processos, na esfera administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação razoável por prejuízos anormais e injustos resultantes do comportamento dos envolvidos no processo. A regra está dizendo, em primeiro lugar, que importam muito, não só a forma como a entidade pública torna pública a existência do processo, mas também os riscos de comunicação assumidos. E, em segundo lugar, que os prejuízos, inclusive de imagem, têm de ser  compensados – e a proposta legislativa deixa claro que o modo de compensar variará segundo o caso.  

Quanto à qualidade da Operação Carne Fraca, é possível que a polícia federal tenha simplesmente errado quanto a algumas avaliações mais picantes (a do papelão na carne, p.ex., que teria vindo de palpite leigo sobre uma frase gravada em interceptação telefônica). Talvez, é cedo para saber.

Mas isso nos leva aos riscos de comunicação. Será que a ninguém dentro da polícia federal ocorreu que o nome da operação era arriscado demais e que, junto com o número de investigados, poderia sugerir um colapso sistêmico? Ninguém percebeu que certos indícios poderiam ser ainda frágeis, tudo a recomendar uma estratégia de comunicação bem menos espetaculosa? Com a polícia federal enfrentando situações sensíveis há tantos anos, não deixa de surpreender que tenha sido imprudente justamente neste caso, a maior operação de todas – e a polícia sabia bem dessa dimensão.  

Ou não foi apenas imprudência? Pode ser que o estrategista de comunicação da polícia federal tenha querido, com o nome Carne Fraca,  nos passar uma mensagem subliminar: a de que a carne dos órgãos punitivos brasileiros também é muito fraca e, entre a prudência na comunicação e o prestígio popular das manchetes bombásticas, esses órgãos estão frequentemente optando pelo caminho que mais convém a seus interesses institucionais específicos e, indiretamente, até aos interesses corporativos de seus membros. 

A proposta para a Lei de Introdução ajuda a equilibrar essa balança, impondo o dever de os envolvidos atentarem, durante os processos, para os riscos de seu comportamento, interno ou externo a eles. É uma proposta comedida, que prevê a reparação pela parte do processo, e não por seus agentes, bem diferente da ideia de punir agentes públicos por abuso de autoridade, também em curso no Congresso Nacional. 

São os órgãos punitivos, quem sabe pelo vício da profissão – um olhar que tende a desprezar a situação e as aflições do outro  – quem sabe pela fraqueza da própria carne, que estão sem estímulo bastante para, sozinhos, buscarem um equilíbrio. Não é um problema isolado, de abusos pontuais de autoridade. É uma questão institucional, e como tal tem de ser enfrentada. 



Por Carlos Ari Sundfeld (SP)

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