Bernardo Strobel Guimarães (PR)
Juristas são criaturas do mundo dever ser. E isso tem lá suas consequências, em especial no que se refere à efetividade das soluções por eles propostas. Não raro, tomamos a sofisticação de preposições abstratas como garantia de que o mundo irá mudar. Resolvemos problemas no plano da norma e achamos que, num fiat lux, o mundo vai se alterar por conta disso. Quase nunca dá certo - como ensina uma classificação muito brasileira das leis: existem as que pegam e as que não pegam. E o Brasil é cheio de leis que – cheias de boas intenções – simplesmente carecem de qualquer efetividade, porque ninguém pensou em como elas serão, de fato, aplicadas. Aliás, devo confessar que tenho calafrios toda vez que vejo alguém defender a mudança da lei como solução para mais novo problema da moda. E é batata: surge um problema no horizonte e logo surge alguém reclamando mais leis, sem qualquer preocupação de como como as coisas serão em concreto.
Tudo isso me vem à mente por ensejo das discussões sobre o novo Código de Processo Civil, que tem num de seus objetivos resolver nossos problemas de morosidade da Justiça; afinal, megalomania pouca é bobagem!
Sem embargo das virtudes do novo diploma normativo, é bastante intuitivo que leis, por si sós, não serão capazes de alterar o status quo da questão. E isso por uma razão simples: os problemas que experimentamos dizem menos respeito às leis e mais à própria configuração do nosso sistema processual. Tanto é assim que as medidas virtuosas que foram tentadas para resolver os problemas não geraram os efeitos desejados, como demonstra a experiência dos juizados especiais.Enquanto não houver uma mudança estrutural, as alterações normativas serão apenas cosméticas. Encurta um prazinho ali, lima um recursinho acolá e é isso. Como um vício, a mudança nos satisfaz por um curto período. Logo, demandaremos mais e numa dose maior. É o conhecido problema da inflação normativa que lança por terra os pressupostos liberais em que nosso direito se funda.
Neste contexto, o presente texto tem uma proposta singela: a necessidade de se utilizar a tutela administrativa como elemento para evitar a utilização excessiva do Poder Judiciário, criando uma cultura de decisão extrajudicial de litígios que envolvam o Estado. Isso porque um dos problemas centrais a ser enfrentado é, precisamente, o excesso de litígios levados ao Poder Judiciário, excesso esse que obsta a jurisdição de qualidade. E tem-se aqui, em jogo, o próprio acesso à justiça que, bem lido, implica não só ter acesso formal à jurisdição, mas ter nela o mínimo de qualidade.
E não há racionalidade possível numa jurisdição eutrofizada por uma quantidade de processos invencível, em que se misturam causas das mais diversas naturezas, a serem avaliadas a toque de caixa por juízes que não têm a menor condição de tempo para apreciar as causas com o detimento necessário. Obter decisões corretas nesse contexto chega a ser quase um processo aleatório.
É necessário, portanto, repensar as condições que conduzem a um excesso de litígios, de modo a tornar racional o acesso à Justiça. Sem isso, o Judiciário será (corrijo; continuará sendo) alvo do que os economistas chamam de “a tragédia dos comuns”, associada ao uso irracional de bens coletivos. E pior, a atividade judicial é associada a um quê transcendental que, muitas vezes, impede que ela seja encarada de modo objetivo, gerando benefícios sociais. E assim vamos nos perdendo no cemitério das grandes utopias que nada resolvem; muito discurso, poucas respostas.
Voltemos aqui ao processo administrativo e ao nosso tema.
Como é sabido, grande parte dos litígios que hoje estão no Judiciário tem origem ou em relações em que a Administração Pública é parte ou em setores intensamente regulados (telefonia, serviços bancários, etc.). Pois bem, nada obstante em ambos os casos haja a possibilidade de se utilizar o processo administrativo como um elemento de solução de litígios, fato é que não raro, as discussões são postas diretamente à apreciação do Judiciário. Tirante alguns casos pontuais (notadamente no que se refere a tributos), temos uma cultura de desprezar a esfera administrativa e priorizar o Judiciário. Desconfia-se da Administração e de sua imparcialidade, às vezes de modo equivocado. E isso, sinceramente, precisa ser seriamente desestimulado. Algumas medidas simples, passíveis de serem adotadas em âmbito administrativo e judicial, poderiam contribuir nesse sentido. Evidente que não são as únicas e igualmente evidente que nem todas se aplicam a todos os casos, mas constituem um norte para mudarmos a cultura do litígio, estimulando soluções extra-judiciais para os problemas do dia a dia.
Primeiramente, deveria se investir seriamente em aumentar, de fato, a efetividade da participação da sociedade nos processos deliberativos públicos, conduzidos pela Administração. Com efeito, a representação dos interesses dos usuários no que tange aos processos decisórios carece de efetiva participação democrática, em especial quando estão associadas às discussões elementos técnicos. Seguramente, se o processo de rule making internalizar as discussões relativas às diversas visões possíveis sobre um tema, as normas produzidas gozarão de maior prestígio junto à sociedade e aos órgãos de controle, o que tende a desestimular litígios. Havendo clareza das diversas posições e transparência as normas tendem a ser mais prestigiadas.
O ponto a ser suprido aqui é, efetivamente, estimular a formação de associações de consumidores capazes de possuírem meios efetivos de interagir de modo adequado com o regulador e com as empresas, sem que a assimetria de informação se convole num obstáculo intransponível. Nada obstante haja diversas normas que tragam deveres de fomentar esses entes, fato é que não se tem visto isto acontecer na prática. Aqui uma boa medida a ser adotada é reservar valores a serem acessados por entidades efetivamente dedicadas a esses objetivos, pois seguramente um dos maiores obstáculos à formação desses entes é a ausência de recursos. Claro que se está a cogitar da formação de efetivos grupos da sociedade civil e não da criação de associações de fachada com vistas a objetivos oportunistas. De todo modo é fundamental que as decisões administrativas que impactam na vida das pessoas sejam objeto de amplo escrutínio e controle públicos.
Em segundo lugar, deveria ser um dos objetivos perenes dos reguladores entender a estrutura dos litígios que estão sendo deduzidos no setor em que atuam e têm como pano de fundo as normas por si expedidas.
Tal conhecimento visaria a orientar uma postura proativa dos responsáveis pela regulação no sentido de garantir a efetividade de suas normas e dos objetivos por si traçados. Isso com vistas a evitar o cenário já visto no Brasil da multiplicação de decisões que podem por em xeque a política pública para um determinado setor (como se deu v.g. com as ações que questionavam a cobrança de assinatura básica no setor de telefonia). Um regulador atento a isso evitaria a multiplicação de litígios que tem potencial para depor contra os pressupostos do próprio sistema, comprometendo metas de universalização, política tarifária, inovação, dentre outras. De modo algum o regulador pode ser indiferente à proliferação de litígios que ponham em causa sua autoridade institucional. E uma vez compreendido isso, é necessário que os reguladores atuem de modo ativo para prestigiar suas normas, fazendo ver à sociedade e ao Judiciário quais são os pressupostos das normas por si editadas. Isso é especialmente importante em lides em que se questiona abertamente as regras elaboradas pelos reguladores que visam a garantir os pressupostos elementares de uma atividade relevante do ponto de vista público.
O regulador deve ter uma postura intransigente no sentido de garantir que os usuários mais carentes e as necessidades de ampliação espacial e temporal dos serviços não sejam comprometidos por pretensões que só beneficiam os usuários atuais do sistema, em especial os que têm boas condições econômicas. No que se refere à proteção ora proposta, uma vez identificado um viés de questionamento, cumpre ao ente regulador efetivamente envidar os melhores esforços para fazer prevalecer as suas normas. Não se pode simplesmente largar o privado ao léu esperando que ele seja capaz de resolver questões que dizem respeito a soluções técnicas e políticas cuja formulação é de responsabilidade pública. Identificar, registrar, planejar e atuar: eis a receita.
Por outro lado, as ouvidorias e outros entes que visam apurar e dar resposta a questionamentos de usuários e clientes devem ser efetivamente capazes de dar soluções para os casos em que houver a infringência de regras por parte de quem quer que seja. Esse é um dos pontos centrais para desafogar o Judiciário, criando uma cultura de soluções consensuais. Contudo, sua efetividade depende de a Administração ser capaz de dar respostas que se legitimem perante a sociedade, concedendo o que tiver que ser concedido e explicando de modo claro as razões de indeferimento, quando for o caso. Mais do que isso, deve se investir em dar publicidade a essas estruturas de julgamento, para que as pessoas saibam que contam com esse sistema de comunicação de litígios. E esse sistema tem que ser reconhecido como virtuoso pela sociedade e pelos controladores da Administração, de modo a gerar decisões que mereçam prestígio. Isso passa por produzir decisões efetivamente independentes, capazes de ser prestigiadas pelo Judiciário.
Aliás, no limite, a existência de estruturas administrativas capazes de produzir decisões adequadas em tempo razoável impactaria até na percepção que se têm sobre o interesse de agir, pois onde há quem possa atribuir a cada um o que é seu de modo extrajudicial, não há porque se exercer jurisdição. A ideia de necessidade, bem medida e bem pesada, deve servir como caracterizadora de um dever de buscar a solução em ambiente extrajudicial, antes de requerer a tutela do Estado Juiz.
Enfim, as soluções alinhadas visam a chamar a atenção para uma necessidade de mudança de hábitos no modo como vemos os litígios em setores com alta presença do Estado. Todas elas não dependem de qualquer mudança de lei, mas sim de um certo idealismo em querer ver as coisas serem alteradas de fato. E mudar a cultura é que é difícil: fácil é mudar a lei para deixar tudo como está, confiando na força transformadora do dever ser.