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Contratações Públicas Sustentáveis: panorama da gestão na realidade brasileira

ANO 2016 NUM 167
André Luis Vieira (DF)
Advogado e doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra.


10/05/2016 | 4186 pessoas já leram esta coluna. | 7 usuário(s) ON-line nesta página

Quando se adentra aos meandros da política de contratações públicas sustentáveis, o panorama e as múltiplas possibilidades apresentadas em todos os níveis da estatalidade brasileira fazem com que a implantação de um modelo efetivo leve em consideração, em outros temas, a segurança jurídica da atuação do gestor público, enquanto agente encarregado de efetivar tal política.

Em amplo espectro, tal temática já se apresenta traduzida em medidas legislativas bem sucedidas em inúmeros países, a exemplo do Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Coréia do Sul, Japão, Holanda, Bélgica, Reino Unido, Noruega, Suécia, França, Alemanha, Áustria e Suíça, para citar os mais representativos no avanço deste modelo, que faz da União Europeia a entidade supranacional em que os critérios socioambientais, sugeridos como mecanismos de suporte às aquisições públicas, apresentam maior grau de regulamentação e efetividade (COMISSÃO EUROPEIA, Environment Action Plan).

No caso do Brasil, a relevância e a atualidade desta questão esbarram na urgência de um debate mais amplo e que envolve o papel do Estado, enquanto prestador de serviço público, discutindo-se, sobretudo, sua eficiência prestacional. E, justamente sobre este viés prestacional, a discussão avulta de importância, na medida em que o Estado, personificado na figura de seus gestores, tem papel fundamental como elemento indutor de comportamentos socioeconômicos desejáveis na promoção de uma metodologia de consumo de produtos (bens e serviços) que seja reconhecido como ético e sustentável.

Esta necessidade de reflexão sobre o atual modelo de desenvolvimento se apresenta extremamente densa, dado o teor de complexidade e multidisciplinaridade envolvido, além dos evidentes conflitos de interesses que a temática, de per se, suscita. Trata-se da transversalidade ínsita à temática ambiental na moderna sociedade de risco (Ulrich BECK. A Europa alemã: de Maquiavel a “Merkiavel”: estratégias de poder na crise do euro. Lisboa: Almedina (Edições 70), 2014. p. 22-23).

Nesta perspectiva, é lugar comum questionar-se sobre o papel do Estado na sustentabilidade dos padrões de desenvolvimento socialmente desejados. Neste ponto, a particularidade do uso do poder de compra estatal serve de medida indutora de comportamentos socioambientalmente sustentáveis, afirmando-se a necessidade de superação da visão meramente instrumental das licitações para assunção do papel de mecanismo indutor de políticas públicas (Viviane Vieira da SILVA. A utilização das licitações e contratações públicas como instrumentos jurídicos de proteção ambiental. In: Fernanda MARINELA; Fabrício BOLZAN. Leituras complementares de Direito administrativo: licitações e contratos. Salvador: Editora JusPODIVUM, 2012. p. 465-490).

É relevante anotar que o conceito de desenvolvimento sustentável, determinante para a valoração principiológica e para o consequente estabelecimento dos critérios mínimos de sustentabilidade, foi erigido sobre as dimensões teóricas e premissas conceituais do termo meio ambiente, a privilegiar as diretrizes de prudência ecológica, de viabilidade econômica e de relevância social. Na lição de Ignacy Sachs, trata-se de ponderação necessária e esperada, de conceito central e equidistante, entre o economicismo arrogante e o fundamentalismo ecológico (Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 54).

Não resta dúvida, portanto, de que a proteção do meio ambiente e a preservação dos recursos naturais, ponderada com a atividade econômica em prol da sociedade, figuram entre os mais legítimos aspectos do interesse público primário (BRASIL. STF. ADI 3.540-MC. Rel: Min. Celso de Mello. DJ, 03 fev 2006). Tal legitimidade está calcada na lógica de que o meio ambiente equilibrado constitui-se fator indispensável à manutenção, em bases dignas, de uma sadia qualidade de vida para toda a população. E é nesta senda que as contratações públicas sustentáveis tendem a ser o resultado do equilíbrio lógico e, consequentemente, prático entre os benefícios de um mercado competitivo e amplo em ofertas com efetiva proteção ambiental, oportunizando a promoção de uma economia ambiental inclusiva, que lastreadas em efetivas mudanças de paradigmas, resultará em grandes transformações de atitudes.

O Estado brasileiro tem, nos ditames do art. 37, caput e inc. XXI, da Constituição Federal de 1988, sua diretriz legitimadora para o modelo de aquisições e contratações públicas, que a seu turno, está normatizado pelo teor da Lei nº 8.666/93 e suas posteriores alterações, bem como da Lei nº 10.520/02. Dentro desse circuito, a Emenda Constitucional nº 19 (EC nº 19/98), modificou o regime e as disposições sobre princípios e normas atinentes à Administração Pública ao eleger, dentre outras providências, o princípio da eficiência como um dos elementos norteadores da atuação do Estado, enquanto instituição vocacionada à satisfação das necessidades sociais e ao zelo pelo interesse público.

Nesta condição, a Administração Pública, sob a égide da norma constitucional e do ordenamento jurídico infraconstitucional regulador da matéria, encontra terreno fértil para impor, melhor dizendo, para prover as contratações públicas de caráter regulatório apto a induzir o comportamento médio dos fornecedores, no sentido de ver-se disponibilizado no mercado, amplo portfólio de produtos e serviços dotados de critérios socioambientais. Em outras palavras, o consumo sustentável se estabelece quando a cadeia produtiva é estimulada a produzir seus produtos de forma sustentável.

Trata-se do alinhamento do papel do Estado, enquanto ente consumidor, agente econômico, ente regulador e, em última instância, agente garantidor do bem-estar coletivo e do desenvolvimento social.

Como visto, é manifesta a legitimação de um modelo sustentável de compras governamentais em todas as esferas de estatalidade, buscando-se mais elementos estruturantes para sua consecução. Trata-se, mais uma vez, da ponderação entre valores e princípios constitucionais a expressar a melhor relação benefício-custo apresentada por um bem, obra ou serviço.

Em outro dizer: discute-se a materialização da premissa em que a proposta mais vantajosa, ou o princípio da maior vantajosidade da proposta ofertada, apresenta-se como aquela que privilegia a mensuração do custo total da contratação em função do preço de face - escolha do melhor preço - dentro de critérios objetivos e preestabelecidos no instrumento convocatório. Para tanto, a cultura clássica das licitações baseada no menor preço deve ser transformada naquela fundamentada no melhor preço, onde o menor preço só voltará a preponderar quando a competitividade for levada em estreita consideração a inserção de critérios socioambientais (eficiência energética, durabilidade, descartabilidade, design, nível de poluição gerada, etc.) no julgamento objetivo das propostas.

Afirma-se, sob este argumento, ser a premissa do melhor preço, e não meramente a do menor preço, aquela que mais satisfatoriamente representa a lógica legal esposada, ao evidenciar em melhores condições a relação custo-benefício ao longo do ciclo de vida útil do produto contratado pela Administração Pública. Em suma, trata-se de análise sistêmica e contextualizada do disposto do art. 3º, caput, da Lei nº 8.666/93, que alterado pela Lei nº 12.349/10, qualifica as finalidades públicas das licitações em promover, concomitantemente, o desenvolvimento nacional sustentável, o princípio da isonomia (ampla competitividade), bem como a seleção da proposta mais vantajosa.

A consequência a ser extraída deste raciocínio reside no balizamento do poder normativo do Estado, para parametrizar a atuação dos gestores públicos na defesa de tais valores constitucionais e legais. Quer dizer, esta plêiade de normas e valores, miscigenados e interdependentes, constrói um modelo sobre a égide de três conceitos jurídicos estruturados, quais sejam: a opção pela proposta mais vantajosa, materializada pelo melhor preço; a opção pela incolumidade do princípio da isonomia e da ampla competitividade; e, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável em todas as suas acepções. Exige-se, para tanto, o implemento de dois outros primados transversais e inter-relacionados entre si. Grosso modo, são as questões acerca do custo total da contratação, bem como da inserção objetiva de critérios socioambientais nos editais e minutas de contratos.

É certo que, na busca por efetividade neste modelo de contratação, de nada vale toda a construção retórica e hermenêutica sobre o alcance e o sentido de normas, princípios e valores que compõem a temática das contratações públicas sustentáveis, se o objetivo final não fosse o de traçar um caminho seguro para a sua efetividade.

De fato, a falta de efetividade pode ser traduzida por alguns indicadores, particularmente aquele que aponta para o baixíssimo percentual de recursos públicos gastos em tais contratações, além do ainda incipiente conjunto de produtos consagrados por critérios sustentáveis. Os produtos e serviços mais contratados são: papel A4, aparelhos de ar condicionado, copos descartáveis, serviços de limpeza, conservação e higienização; materiais de consumo hospitalar e diversos; mobiliário; papel reciclado e cartuchos de impressoras; microcomputadores e monitores. Apenas esses dois indicadores conjugados demonstram, de per se, que ainda há um longo caminho a ser percorrido (MPOG. Relatório sobre Informações Gerenciais de Contratações Públicas Sustentáveis - Jan à Dez de 2013. Disponível: http://goo.gl/QmYQt5 , p. 5-6).

A seu turno, a especificação dos objetos descritos nos respectivos termos de referência, projetos básicos e projetos executivos, devem respeitar a premissa de que a elaboração de edital dotado de critérios de sustentabilidade não poderá obstaculizar ou restringir a competitividade. O mandatório é, portanto, a especificação de objetos que privilegiem o emprego: de tecnologias limpas; de processos produtivos social (respeito aos direitos trabalhistas e previdenciários) e ambientalmente responsáveis (eficiência energética quanto ao rendimento e desperdício; e uso racional dos recursos ambientais: água, eletricidade, combustíveis, energias alternativas); de material reciclável ou reutilizável; de metodologia de aferição da relação custo durabilidade, como aspecto de manutenção das condições de funcionalidade do objeto contratado; de metodologia de avaliação da disposição final dos resíduos (descartabilidade); da difusão de boas práticas no modelo de gestão contratual (aquisições inteligentes, fiscalização contratual, economicidade); dentre múltiplas outras possibilidades.

Quer dizer, o primeiro passo consistente reside: na correta descrição técnica do objeto a ser licitado; na essencialidade da demonstração da necessidade pública a ser atendida (motivação administrativa); na inclusão, nos termos da norma, de padrões ambientais e sociais em critérios objetivos, para não se macular o exame das propostas em face de argumentos subjetivos de escolha do bem ou serviço a ser contratado.

No entanto, volta-se à figura do gestor público para caracterizar que a etapa fundamental, acima descrita, depende quase que integralmente da assertividade com que tais agentes envolvidos atuarão nesse processo. Será, assim, resultado do grau de sensibilização a que esses servidores estarão submetidos. Contudo, a efetividade do processo de contratação repousará na transposição da fase de sensibilização para conscientização da transversalidade que a temática ambiental exige, sobretudo quando em estreita conjugação com a capacitação técnica permanente e com o compromisso ético-profissional. Estas ações implicam a elaboração e inclusão, no planejamento institucional, de uma profunda mudança na cultura organizacional da Administração Pública, voltada às ações permanentes de sustentabilidade socioambiental e qualidade de vida no ambiente de trabalho.

Além disso, as boas práticas (AGU. Guia Prático de Licitações Sustentáveis. Disponível em: http://agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/138067. Outros exemplos de boas práticas: Sustainable Procurement Resource Center – http://www.sustainable-procurement.org/resources e Procurement of Inovation Platform – http://www.innovation-procurement.org/resources) indicam que a execução de determinada contratação sustentável pressupõe alinhamento entre os critérios socioambientais para definição do objeto e das condicionantes habilitatórias dos fornecedores com as diretrizes do plano de gestão de logística sustentável da instituição, notadamente considerada e devidamente escoradas nas diretrizes gerais da Agenda Ambiental da Administração Pública (A3P). Ainda neste ponto, contudo, discorda-se do raciocínio que um órgão que por ventura ainda não detenha tal plano de ação veja-se deslegitimado a contratar com critérios sustentáveis. Não obstante, é desejável e todo sentido se faz em ver os órgãos da Administração Pública compromissados pelo estabelecimento de diretivas de sustentabilidade adequadas à especificidade de suas atribuições e finalidades públicas. Melhor ainda, será a sociedade poder observar tais compromissos instrumentalizados pela via dos procedimentos de contratação. Essa mudança de paradigma, por si só, tende a influenciar o comportamento dos próprios servidores, o que realça o papel da cultural organizacional como valor determinante para a efetividade das licitações sustentáveis.

A rigor, no âmbito público, a seara contratual se mostra terreno pantanoso, tendo em vista a crescente dificuldade com que o gestor se depara, fruto do emaranhado de leis e normas infralegais; além do que, no caso específico das licitações sustentáveis, a condução da atividade depende de uma infinidade de normas infralegais de natureza eminentemente técnica (não-jurídicas), exigíveis para a correta elaboração dos termos de referencia e projetos básicos e executivos. Sendo assim, o gestor deve ter sempre em mente que tais contratações são atos administrativos por excelência e, por isso mesmo, deve ser motivados com base na fundamentação legal e na justificativa da escolha. Isso ocorre, particularmente, em virtude das distorções causadas aos preços pelo anacrônico e escorchante sistema tributário brasileiro. A realidade absurda e ilógica é que produtos reciclados e, portanto, com menor impacto ambiental, tem preços superiores àqueles praticados no fornecimento de produtos de maior impacto.

O desafio em adquirir bens e serviços e contratar obras classificados como “verdes”, com preços mais baixos que os convencionais, apesar da geração de menor impacto socioambiental, não pode recair apenas sobre os ombros dos gestores públicos responsáveis pela atividade contratual, sob pena de desestimular a mudança de paradigmas ou de se sacrificar aqueles que se propuserem a proceder a contratações dessa natureza. Por outro lado, é reconhecidamente o gestor público o principal ator na efetiva pretensão de operar a mudança de paradigma necessária e quanto a isso há pouca margem de dúvida.

O que se questiona, então, é se o gestor tem a completa condição de executar uma política pública com a escassez de atos normativos de cunho técnico que esclareçam ou definam suficientemente os bens, obras e serviços que possam ser contratados acima dos preços médios de mercado, algo como uma margem de preferência inclusiva de critérios socioambientais objetivos. Outra questão: como este gestor fará a correta aferição dos critérios de sustentabilidade? Não é difícil intuir que o gestor público não terá capacidade técnica de realizar tal tarefa, por não dispor das ferramentas econométricas ajustadas a essas especificidades.

O aspecto que se sobressai é o fato do gestor, na ótica da atividade de controle, ser quem irá suportar todo o ônus gerado pela falta de clareza das escolhas públicas, trazidas por conceitos jurídicos indeterminados, por ocasião do planejamento e execução dessas contratações (Jessé Torres PEREIRA JUNIOR; Marinês Restelatto DOTTI. Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação. São Paulo: Ed. NDJ, 2012, p. 268). Oportuno seria exigir-se uma normatividade - lei e normas infralegais - mais assertiva, tal como na regulamentação da margem de preferência (TCU. Acórdão nº 2.241/2011, Plenário, Rel. Min. André Luís de Carvalho, DOU de 02.09.2011).

Por isso mesmo, os órgãos de controle devem exercer um controle preventivo, de cunho orientador e pedagógico, haja vista que as licitações devem ser alvo de políticas públicas de Estado, como a racionalidade ajustada para médio e longo prazo, e não meramente objeto de política interna de determinados órgãos públicos. Ao menos no âmbito da Administração Pública federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) apresenta precedentes favoráveis à figuração de exigências de natureza ambiental nos instrumentos convocatórios, desde que atendidos os critérios normativos e de razoabilidade, bem como devidamente precedidos de motivação administrativa para tal (TCU. Acórdão 122/2012, TCU – Plenário, Relator: Weder de Oliveira, DOU nº 24, de 02.02.2012).

De mais a mais, o que se deve procurar é, num esforço conjunto e coordenado na difusão de boas práticas entre os órgãos responsáveis pela concepção, viabilização e fiscalização de políticas públicas, dentre estes considerados também os órgãos de controle, cujo escopo seja caracterizador por uma abordagem interdisciplinar e sistêmica, com foco na mudança de paradigmas. O primeiro reflexo desta iniciativa a ser colhido será a maior segurança jurídica para a atuação dos gestores, cuja tendência é amplificadora de casos bem sucedidos, consolidando definitivamente o modelo de contratação pública sustentável na realidade brasileira.

Sendo assim, no plano da validade, só haverá legitimidade para a prática de contratações públicas sustentáveis se houver estrita observância do alinhamento dos critérios socioambientais com os preceitos estatuídos na norma constitucional e na legislação infraconstitucional. Portanto, não se constituiria nenhum absurdo jurídico aduzir que licitações que não levam em consideração critérios socioambientais, não estão alinhadas com o interesse público, devendo ser tratadas por ilegítimas. Na mesma direção, não é legítimo discutir a ação administrativa dos gestores nesse processo, quando estes ainda não dispõem de toda a segurança jurídica, de todas as ferramentas orientadoras e normativas, suficiente para o seu melhor exercício funcional.

Isto posto, acrescentam-se à argumentação os desafios institucionais da Administração Pública relacionados ao cumprimento de sua função constitucional, no tocante à implantação do modelo de gestão sustentável das aquisições públicas, a saber: condicionar, sempre que possível, as atividades operacionais e administrativas a critérios socioambientais; capacitar os recursos humanos da Administração Pública para identificar quais são os critérios e regras de sustentabilidade aplicáveis a cada produto adquirido, bem como para inseri-los nos respectivos termos de referência, projeto básico ou projeto executivo; promover atividades de educação ambiental, conscientizando os servidores quanto às boas práticas administrativas e ambientais; e servir de exemplo de eficiência em gestão ambiental, particularmente no que tange à observância das boas práticas eleitas pela A3P.

Para tanto, exige-se, pois, dos órgãos responsáveis pela concepção, viabilização e fiscalização de políticas públicas, dentre estes considerados também os órgãos de controle, uma abordagem pedagógica, interdisciplinar e sistêmica, com foco na mudança de paradigmas administrativos em médio e longo prazo.



Por André Luis Vieira (DF)

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