André Luis Vieira (DF)
“Burocracia atrapalha. Onde se cria muita dificuldade, há sempre alguém vendendo facilidades”. Esta frase tão representativa, atribuída a Lori Tansey, traz luz sobre a necessidade de se ampliar o debate a respeito da racionalidade econômica e procedimental que deve acompanhar o recrudescimento do combate à corrupção nas contratações públicas por intermédio dos programas de compliance.
Mas, o que é compliance? Resumidamente, são programas voltados ao robustecimento de uma cultura organizacional de conformidade com parâmetros normativos ético-jurídicos. Trata-se da implantação e da manutenção de mecanismos de integridade, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 12.843/13 e pela Lei 13.303/16.
É certo que a sociedade brasileira encontra-se em profunda crise ética. Contudo, não podemos compreender que a tão necessária mudança cultural, inerente a tal cenário, venha acompanhada de abordagem meramente burocrática e formal. Afinal, não basta criar novas estruturas que resultem em sobrecarga de complexidade decorrente de procedimentos já desempenhados pelo controle interno e externo, incrementando os custos administrativos na estruturação desses mesmos programas e mecanismos.
Veja-se que não se está, evidentemente, a defender o afrouxamento dos critérios técnicos e jurídicos a que se devem submeter os atos contratuais. Também não se está a afirmar que os programas de compliance não devem ser implantados. O alerta tem a intenção de não permitir que fiquemos apenas no modismo, no estrangeirismo, sem que isso traga benefícios efetivos às atividades já exercidas pelos mecanismos de combate à corrupção sistêmica que nos assola.
Lembremos que o Estado exerce sobre o particular o monopólio coercitivo. No entanto, muitas vezes, a burocracia estatal se apresenta como um dos maiores obstáculos à livre iniciativa, na medida em que várias das regulações impostas pelo Estado são irracionais, sendo ineficazes para ajustar o comportamento regulado e, em determinados casos, impondo ônus inadequados aos particulares. Tal irracionalidade deriva do fato de o administrador público, não compreender a racionalidade econômica de modo a regulá-la adequadamente. Resta claro que muitas leis, ainda que regularmente instituídas, por serem socialmente injustas e ineficientes também geram o mesmo estímulo à corrupção. Ora, esse fenômeno igualmente se repete com o excesso de regulação, que acaba por se tornar, por vias transversas, um obstáculo à satisfação das necessidades públicas.
Tal tirania burocrática, imposta ao cidadão, parece ser uma
“visão maniqueísta, onde o excesso de burocracia se torna uma espécie de agente legitimador da atuação do estado. Como se tudo que viesse do estado for fosse positivo, benigno, e tudo aquilo que vier do privado, do particular, é interesse egoístico, perverso e alheio ao interesse da sociedade. Trata-se, portanto, de uma moralidade ingênua, onde o que advém do estado representa o interesse no bem comum, na justiça e no desenvolvimento, guardando em si uma reserva moral e uma lógica superior.” (LUDWIG VON MISES. Burocracia. Campinas: Vide Editorial, 2018. p. 95).
Também o saudoso administrativista Diogo de Figueiredo Moreira Neto já alertava para a necessidade de se combater o formalismo exacerbado no direito administrativo contemporâneo. Porém, muito da falta de racionalidade na concepção e na aplicação da lei encontra-se na insuficiência de percepção dos reflexos econômicos impostos pelo legislador sobre a sociedade.
A filosofia do burocratismo, em seu senso decisório, só leva em consideração sua própria vontade regulatória, muitas vezes intuitiva, e desconsidera certos reflexos antieconômicos da mesma lei sobre a própria máquina estatal que, nesse sentido, não se enxerga também como destinatária da norma.
Em verdade, o interesse secundário da máquina estatal não mais se confunde com os interesses primários da sociedade, para se referir à clássica distinção na teoria administrativista. Por intermédio do burocratismo, o Estado visa primeiramente ao seu próprio interesse e, por via difusa ou subsidiária, é que se busca atingir o interesse social primário. Trata-se, portanto, da falta de percepção finalística que a lei deve ser aplicada pelo agente público com vistas a servir adequadamente ao interesse público, garantindo melhorias constantes na qualidade de vida dos cidadãos, destinatários últimos da norma.
Toda essa ilação sobre o burocratismo estatal brasileiro pode e deve nortear a forma como a supracitada legislação merece ser implementada. De nada ou muito pouco adiantará a implementação de dispendiosos e complexos programas de compliance pelas empresas que pretendem contratar com o poder público, se a Administração não verificar os impactos de tais custos de transação sobre os futuros contratos. E mais, não é legítimo impor às empresas programas de conformidade se os órgãos contratantes também não atuarem conforme a mesma lógica, em estrita consonância com os fundamentos da ética e da moralidade pública.
Importa afirmar que o autêntico desafio está na concepção de um novo modelo de Administração Pública e, mais particularmente, de contratação pública. A criação do novo paradigma deve proporcionar procedimentos mais flexíveis, mais transparentes e menos formalistas e, consequentemente, capazes de ser mais efetivos na mitigação dos efeitos da corrupção. É preciso aprender com a experiência da Lei 8666/93 que, apesar de extremamente rígida no formalismo procedimental, não impediu que a corrupção sistematizada se alastrasse pelas contratações das empresas estatais.
É certo que essa corrupção sistêmica gera muito mais prejuízos sociais que a mera quantificação dos valores públicos desviados. O que se observa é o efeito em cascata que corrompe os fundamentos da moralidade pública, retroalimentando comportamentos da mesma natureza, o que já se encontra enraizado na cultura nacional.
Para mitigarmos esse verdadeiro “câncer social”, o que se propõe é uma desejada mudança de cultura social e não só organizacional, com a difusão de uma mentalidade calcada na transparência e na efetividade dos mecanismos de integridade. Para tanto, a construção do novo modelo deve considerar as racionalidades econômica e procedimental, objetivando estimular a cooperação entre os setores público e privado, afastando-se do equívoco corrente de que mais normas e procedimentos tornarão, por si sós, a licitação e a contratação pública instrumentos dotados de mais segurança jurídica e capacidade de mitigar os efeitos nefastos da corrupção.
Porém, para se evitar demasiada simplificação teórica sobre a questão da cultura social que envolve o tema da corrupção no Brasil, invoca-se a abordagem institucionalista para anotar que, embora o sistema normativo influencie diretamente tal aspecto cultural, entende-se que este mesmo aspecto serve de parâmetro axiológico norteador da interpretação da lei. Em outras palavras, assim como a nossa normatividade é essencialmente formalista e procedimental e, por conta disso gera a cultura do “jeitinho brasileiro” para desbordar os inúmeros obstáculos burocráticos; nossa cultura perdulária gera normas simbólicas, pouco efetivas, desprovidas de senso de inovação e que impactam no incremento da burocracia. Trata-se, portanto, de duplo influxo, um sistema vicioso retroalimentado.
É fato, portanto, que o excesso de formalismo e sua ineficiência provocaram a desmoralização da legislação em vigor, justamente o contrário do efeito pretendido. É na “venda das facilidades”, almejando contornar esses excessos, que repousa o germe da corrupção. A criação de mais procedimentos públicos formais leva a duas consequências. Em primeiro lugar, acarreta a concentração de mercado nas empresas mais fortes economicamente, que são as únicas aptas a manter um corpo técnico jurídico, administrativo e contábil capaz de ajustar as rotinas e procedimentos empresariais às normas jurídico-administrativas. A segunda consequência é justamente a corrupção, já que o custo de manutenção de uma estrutura complexa voltada apenas à observância de exigências jurídicas, muitas vezes irrelevantes ao negócio, cria um incentivo de ordem econômica para que a administração empresarial busque alternativas menos onerosas - entre elas, a tentativa de burlar os procedimentos mediante a corrupção de agentes públicos. Assim, ampliar os requisitos formais e habilitatórios para a participação em certames públicos faz do ofertante um mero cumpridor de exigências formais ou, na pior das hipóteses, termina por incentivar a corrupção. É mais do mesmo!!!! Mais engessamento para o agente público, mais paralisia da máquina estatal, mais ineficiência administrativa, mais burocracia para as empresas...
Sobre este último ponto, relativamente à exigência de que empresas somente possam contratar com a Administração se possuírem um programa de compliance e mecanismos de integridade, surge uma questão que merece redobrada atenção. Como salientado, os custos de implantação e manutenção de programas dessa natureza não são baixos. Particularmente se considerarmos o tamanho da operação empresarial e a sofisticação dos mecanismos implantados,
“sob o ponto de vista da teoria dos incentivos econômicos, a contratação pública destaca-se como procedimento que ‘cria estímulos ou facilidades à corrupção’, vez que alia a escassez de oportunidades negociais, advinda do atual momento de crise econômica, com o poder de compra do estado que detém a prerrogativa de estabelecer critérios excludente de habilitação e, principalmente, qualificação para as empresas participantes dos certames.” (VICTOR AGUIAR DE CARVALHO. Cartéis em licitações: concorrência, incentivos e prevenção aos conluios nas contratações públicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2018. p. 14 )
Portanto, a atenção que o ponto anterior merece reside na imperiosa necessidade de expansão do mercado de produtos e serviços ofertados à Administração Pública que, mediante a eliminação de requisitos habilitação desarrazoados e excessivos, verdadeira barreira de entrada à participação em certames públicos, visa à diluição dos custos transacionais suportados pelos ofertantes e repassados aos contratos. Além disso, tal medida reduz a possibilidade de abuso da posição adjudicante, realidade fática onde “os agentes públicos, por excesso de burocracia ou zelo, ou até mesmo por má fé, exercem ilegitimamente o poder monopsônico, causando prejuízos à livre concorrência.” (PEDRO COSTA GONÇALVES. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 413).
Por essa ótica, se a corrupção é sempre mensurada sob o viés econômico, porque não analisar a implantação de programas de integridade e de normas de caráter moral e ético sob o mesmo viés? Por que a racionalidade apresentada, via de regra, é de acréscimo de procedimentalidade e desprovida de profunda análise dos impactos econômicos e custos transacionais, ao já moroso e ineficiente processo de contratação pública? Nesse aspecto da morosidade, em particular, o custo da falta exsurge como obstáculo a fluidez da atividade administrativa e do caráter prestacional dos serviços públicos, observando-se intempestividade ou mesmo negação no atendimento às necessidades sociais.
Do ponto de vista meramente econômico, a corrupção é identificada como um fator de desestímulo ao investimento produtivo. Do ponto de vista empresarial, os custos da corrupção são compreendidos como mais um imposto, taxa ou pedágio a ser pago. Neste sentido, é o mesmo efeito que o ambiente regulatório, quando excessivo e disfuncional, exerce sobre os investimentos em projetos de infraestrutura e setores da economia em geral. Na prática, a única situação pior do que o excesso de regulação é a total ausência de fiscalização estatal. Mas esta deve ser exercida com prudência, levando em conta os incentivos econômicos a que se sujeitam os agentes privados.
Em verdade, há que se buscar outra escolha pública mais racional e eficiente, pois a que se apresenta produziu um ambiente excessivamente regulado e com sistemas rígidos de integridade e cujos efeitos geraram sintomas de morosidade administrativa (custo da falta do serviço público indisponível ou não prestado tempestivamente), de diminuta economicidade (elevados custos transacionais do processo que, no mais das vezes, não são levados em consideração), de baixa qualidade decisória (decisão administrativa norteada pelo medo de banalização da responsabilidade) e de formalismo exacerbado.
Por mais antipático que possa parecer, há um nível ótimo de corrupção. Essa tese de Robert Klitgaard (Controlling Corruption. University of California Press, 1988), com a qual concordamos, demonstra que estancar a corrupção de maneira absoluta geraria um dispêndio de recursos públicos tão elevados que tornaria a equação completamente antieconômica. Isso, sem contar no comprometimento da eficiência gerencial, visto que tais medidas gerariam a quase total paralisia da máquina administrativa.
Ainda nesse sentido, afirma-se que quem apresenta o animus dolanti, o apresenta por desvio de caráter e por comprometimento da conduta moral e estará sempre à estreita por uma oportunidade para se locupletar dolosamente do erário, o que ocorrerá independentemente da legislação em vigor. Por isso, afirmamos que uma das principais medidas de combate à corrupção está na efetividade da apuração e consequente punição daqueles que a praticam.
Não há dúvida de que o combate à corrupção está nas prioridades sociais mais urgentes. Uma vez mais cabe ressaltar que os mecanismos de integridade e programas de compliance são muito bem vindos, somando esforços para rechaçar o intento de práticas fraudulentas e lesivas ao erário e ao interesse público. Contudo, tais práticas somente serão efetivamente combatidas quanto melhor for a qualidade e racionalidade dos mecanismos de controle, observados seus aspectos finalísticos. O excesso de regulação gera uma espiral viciosa, onde quanto mais irracionais forem as exigências burocráticas, maior será o incentivo às práticas de ilegalidade, desvios, fraudes, superfaturamento, suborno, lavagem de dinheiro e condutas afins.
Dessa forma, a nosso sentir, os principais óbices ao combate à corrupção são: a inefetividade e intempestividade dos processos apuratórios na punição de condutas típicas praticadas; o excesso de regulação amplamente explanado; e a falta de racionalidade econômica e procedimental nos mecanismos normativos. Apenas mediante a elaboração de procedimentos claros, com custos econômicos adequados e instituídos com base na racionalidade econômica dos agentes privados, será possível promover o combate ágil e eficaz à corrupção.