André Luis Vieira (DF)
Trata-se de lugar comum que a regra geral insculpida no art. 37, inc. XXI, da Carta Magna de 1988, estabelece a obrigatoriedade de licitar, para assegurar o princípio constitucional do tratamento isonômico dispensado a todos quantos aceitem se sujeitar à legislação, para contratar com o Poder Público.
Imperioso, pois, é reconhecer que a intenção do constituinte originário foi estabelecer, de forma cogente, que a regra geral repousa na obrigatoriedade de licitar. Em regra exige-se a licitação, com vistas a obter a proposta mais vantajosa dentro de um universo de fornecedores aptos a contratação. Tal regra é, portanto, o delineamento basilar do sistema contratual a ser seguido pela Administração Pública brasileira, quer direta, quer indireta, seja de quaisquer Poderes ou esferas de governo, não havendo nesse contexto outra dicção a ser feita.
Sob este argumento, deflui-se facilmente que na mesma observância ao preceito constitucional em comento, infere-se que a obrigatoriedade em realizar a seleção de fornecedores e propostas, por via de licitação, comporta exceções, as quais igualmente previstas em sua norma de regência traduzem-se em hipóteses onde a licitação poderá ser dispensada, dispensável ou inexigível.
Quando considerado o regime de exceção, o legislador ordinário previu que a fuga do regime geral de licitação deveria trazer, aos agentes públicos que assim procedessem, responsabilidades ínsitas à excepcionalidade do processo. Independentemente dos aspectos que diferenciam a inexigibilidade da dispensabilidade, onde naquela espécie ocorre a inviabilidade fática de competição ou concorrência e nesta há viabilidade, só não se realizando por conveniência administrativa; tais critérios não se tratam, assim, de uma mera faculdade outorgada ao ente público obrigado, em tese, a licitar, mas do reconhecimento legal de que esta, em certos casos, pode celebrar o negócio de seu interesse sem o prévio procedimento licitatório, haja vista a inviabilidade de se instaurar uma competição para escolha da melhor proposta.
Assim, diante das particularidades legais exigíveis na exceção ao regime geral de licitação, este breve ensaio tem por finalidade apresentar e esclarecer as nuances da aplicação dos princípios e institutos jurídicos que, mediante entendimentos jurisprudenciais, dizem respeito à responsabilização de agentes públicos, aqueles denominados autoridade superior, para efeito de ratificação dos processos de dispensa e inexigibilidade de licitação, conforme dicção do art. 26, caput, da Lei nº 8.666/93.
A par disso, o ato administrativo, como qualquer ato jurídico, na sua formação, legitimidade e produção de efeitos, segundo a doutrina, deve se submeter a três diferentes planos, quais sejam: existência; validade e eficácia.
Na órbita do plano da existência, o elenco dos elementos essenciais para constituição do ato que conferem suporte existencial é formado por: agente emissor de vontade; objeto; e forma. Na falta de um dos elementos, o ato é considerado inexistente no mundo jurídico.
Já no plano da validade, os elementos essenciais de existência são qualificados como: agente administrativo capaz e legitimado; objeto lícito, possível e determinado; e forma prescrita em lei. Tem como pressuposto a existência do ato. Os eventuais defeitos que invalidam e tornam ilícito o ato administrativo se encontram neste plano.
A licitude e a moralidade do ato se encontram no plano da validade. A duplicidade de pagamento por um único objeto licitado, o superfaturamento e o fracionamento de licitações, por exemplo, são defeitos que invalidam o ato administrativo existente.
Quanto ao plano da eficácia, em regra, o ato administrativo já percorreu todo seu ciclo de formação, ou seja, existe e preenche os requisitos, ou seja, é válido, mas não produz efeitos por estar pendente de alguma condição. No entanto, há situações em que o ato existente é inválido, como no caso de uma dispensa de licitação que não observou os requisitos legais, que até sua declaração de invalidade, produz efeitos jurídicos com a ratificação e publicação.
De acordo com o procedimento administrativo de licitação, especificamente quando da prática da dispensa ou inexigibilidade, o art. 26 da Lei nº 8.666, de 1993 prevê, expressamente, que os agentes envolvidos devem praticar as seguintes condutas: (a) caracterizar a dispensa de licitação ou sua inexigibilidade; (b) justificar o preço; (c) motivar a escolha do fornecedor ou executante; (d) comunicar a autoridade superior em três dias; (e) ratificação e publicação pela autoridade superior da dispensa ou inexigibilidade de licitação, em cinco dias.
Segundo a lógica estruturante dos três planos dos atos jurídicos relatados, a caracterização da contratação direta, a justificativa do preço, motivação do ato e sua comunicação à autoridade superior são inerentes à condição de existência e validade. Enquanto isso, as condutas de ratificação e publicação pela autoridade superior compõem o plano da eficácia, vez que somente por meio delas o ato existente e válido passará a produzir os efeitos jurídicos desejados. (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 10ª ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 292.)
Distinga-se bem: eficácia é a aptidão para produzir efeitos, não induzindo a invalidade. Esta decorre da presença de vício comprometedor da integridade do ato porque contamina a higidez de sua estrutura morfológica – ato praticado por autoridade incompetente, ou sob forma não prevista ou vedada, ou cujo objeto não seja de interesse público, ou enunciando motivos falsos ou ineptos para produzir os resultados pretendidos, ou alheios às finalidades de interesse público que se extraem direta ou reflexamente da norma regente do ato.
Com efeito, pode-se afirmar, segundo a classificação das condutas pelos planos dos atos jurídicos, que a ratificação realizada pela autoridade superior não é essencial para constituição válida do ato, já que os elementos essenciais para sua configuração foram praticados pelos seus subordinados, ou seja, as possíveis irregularidades, vícios ou conluios são iniciados e formalizados nas fases anteriores à ratificação e publicação, que apenas conferem efeitos jurídicos.
No âmbito contratual, a conseqüência para a falta de publicação é a ineficácia do contrato, isto é, o pacto existe, nada se lhe aponta de inválido, porém não estará apto a produzir efeitos. A norma considera tal contrato de eficácia contida porque impede que os direitos e obrigações nele previstos sejam exigíveis reciprocamente enquanto não ocorrer a publicação do respectivo extrato. (PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 685-686)
Com isso, a atribuição de estruturar os procedimentos que dispensarão ou inexigirá a licitação cabe aos agentes ordinários da administração para esta finalidade (comissão de licitação, pregoeiro, Ordenador de Despesas, etc), ao analisar o caso concreto e elaborar a fundamentação jurídica, bem como a justificativa do preço e as razões da escolha do fornecedor ou executante. A autoridade superior, a quem tais agentes são subordinados, apenas tem a atribuição momentânea e estática de verificar a existência dos documentos que caracterizam a exceção, cujos conteúdos muitas vezes complexos e volumosos, não permitem uma análise detida.
Portanto, a revisão ampla e detalhada de todo o conteúdo de um procedimento administrativo pela autoridade superior poderá causar o entrave da máquina administrativa e afetar a eficiência da administração pública, razão pela qual os princípios da confiança, da boa fé objetiva e da presunção de legitimidade são utilizados na aprovação dos atos dos agentes administrativos subordinados.
Corroborando com esse entendimento, a doutrina afirma que a ratificação, enquanto espécie do gênero autorização, compõe um ato administrativo complexo, no qual há conjugação de vontades para integrar um ato. (SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Ed. Forence, 1979, p. 39)
Existem, desta forma, situações em que a ratificação é dispensada ou que tem sua importância diminuída, neste caso, será caracterizada como último ato procedimental emitido em função de manifestações técnicas anteriores favoráveis, a exemplo do que ocorre com a competência para autorizar a contratação direta pela autoridade de mais alta hierarquia no órgão ou entidade contratante. (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 296)
Ademais, por ser classificado como um ato complexo e, portanto, autônomo da dispensa ou inexigibilidade de licitação propriamente dita, a ratificação é ato unilateral e tem conteúdo de aprovação a posteriori, cuja finalidade é tornar eficaz o ato praticado.
Neste contexto, o nexo de causalidade é o liame jurídico que vincula a conduta do agente ao prejuízo causado. Das teorias existentes, que tentam explicar o nexo causal, as principais são: (a) teoria da equivalência das condições (condicio sine qua non), segundo a qual não há diferença entre os antecedentes fáticos do dano e tudo aquilo que concorre para o prejuízo é considerado causa e, conseqüentemente, seu autor será responsabilizado, permitindo uma infinita cadeia causal, o que torna inviável a responsabilização; (b) teoria da causalidade adequada, sustenta que nem todo antecedente é causa e esta seria apenas o antecedente abstratamente idôneo ou adequado a produzir o resultado danoso, pelo qual responderia pelo dano apenas aquele agente que teve a melhor oportunidade para evitá-lo, cuja ação ou omissão, por si só, era capaz e idôneo de causar o prejuízo, e; (c) teoria da causalidade direta e imediata, da interrupção do nexo causal e da necessidade do dano, na qual a causa é apenas o antecedente que determina um resultado como conseqüência sua direta e imediata, e que, segundo avalizada doutrina, foi adotada pelo Novo Código Civil no art. 403, sendo amplamente aplicada pela jurisprudência. (STJ. REsp 858511/DF, Relator Min. LUIZ FUX, DJe 15/09/2008)
Assim, causa para essa última teoria é somente o fator que está direta e imediatamente ligado ao dano, perfazendo relação de necessariedade. Dentre os vários agentes que tenham condutas relacionadas ao resultado danoso, será responsável aquele cuja conduta seja imprescindível para realização do resultado e sua falta implique necessariamente na inexistência de prejuízo, razão pela qual a teoria é também chamada de interrupção do nexo causal. Neste sentido, as teorias da causalidade adequada e da causalidade direta e imediata parecem complementares e harmônicas.
Por via deste entendimento, é possível afirmar que a ratificação de uma dispensa de licitação, ato administrativo autônomo, unilateral e complexo, que apenas confere eficácia a um ato anterior perfeito e acabado, evidentemente, não pode, por si só, direta e imediatamente causar dano ao erário ou criar uma situação de ilicitude.
Daí exsurge a possibilidade de se aplicar a premissa de que seria inexigível outra conduta a ser tomada pela autoridade superior, salvo houvesse flagrante ilicitude, que não a de ratificar o processo de dispensa ou inexigibilidade. Dessa forma, apesar de ser instituto com larga utilização no âmbito criminal, a inexigibilidade de conduta diversa, bem como suas premissas são plenamente aplicáveis aos outros ramos do direito. Trata-se, pois, de sua incidência no âmbito do direito administrativo contratual.
Seria exigível da autoridade superior, ao ratificar uma dispensa de licitação ou inexigibilidade, bem como ao supervisionar a execução das atividades desenvolvidas, verificar todos os aspectos de natureza técnica e fática apresentados por seus assessores, face à grande quantidade de processos e documentos a serem aprovados, sob o prisma dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade?
É preciso compreender que a autoridade superior ratifica a dispensa de licitação com subsídios técnicos elaborados por suas assessorias. Essa mesma autoridade supervisiona as atividades do órgão como um todo, valendo-se da estrutura administrativa existente. Tal estrutura compreende assessorias técnicas especializadas e comissões de acompanhamento e fiscalização, previstas nos respectivos contratos, por sua vez compostas por técnicos que emitem os Termos de Recebimento Definitivo/Atesto. É com o Atesto que nasce a obrigação de pagar os serviços executados, ato esse de competência do Ordenador de Despesas.
Dessa forma, é inevitável concluir que uma vez que todos os órgãos de assessoramento apontam para a viabilidade técnica, operacional e jurídica, não resta à autoridade superior outra conduta senão ratificar os atos até então exarados. (TCU. Acórdão 1275/2011 – Plenário, Rel. Min. Raimundo Carreiro; Acórdão 1852/2008 – Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar; Acórdão 653/2009 – 2ª Câmara, Rel. Min. André Luiz Carvalho; Acórdão 2346/2009 – Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues)
No âmbito doutrinário, há entendimento esclarecedor quando se afirma que “irregularidade decorre das condições estruturais do órgão, comprovadamente invencível pela boa intenção do agente – e inexigibilidade de conduta diversa – quando pelas condições da ocorrência do ato não se poderia exigir que o agente tivesse outro comportamento”. (JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. In: O ordenador de despesas e a Lei de Responsabilidade Fiscal, Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 38 n. 151 jul./set. 2001, p. 153-170)
Em que pese o posicionamento doutrinário mirar a função do Ordenador de Despesas, agente formalmente encarregado que atua direta e efetivamente em todos os estágios da despesa (empenho, liquidação e pagamento), passando pela designação dos agentes responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização das execuções contratuais, com muito mais razão assiste trazer essas mesmas conclusões para a autoridade superior, aquela que ratifica os atos até então desenvolvidos. (TCU. Acórdão 2173/2010 – Plenário, Rel. Min. André Luís de Carvalho; Acórdão 276/2010 – Plenário, Rel. Min. André Luís de Carvalho; Acórdão 2849/2010 – Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler; Acórdão 5851/2010 – Primeira Câmara, Rel. Min Augusto Nardes)
É relevante, por fim, escudar-se na boa-fé objetiva, enquanto princípio orientador e conformador do ordenamento jurídico, para suscitar a conduta ética pela qual o sujeito, na relação contratual, deve pautar o seu comportamento nos valores morais pertencentes ao homem médio como honestidade, integridade e retidão de caráter, tendo em vista, sempre, preservar a outra parte envolvida no negócio jurídico contratual.
Agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade é revelar regra de conduta geral, a ser seguida pelo agente público contratante, pautada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses públicos legítimos e expectativas razoáveis do contratado, visto como um membro do conjunto social e sujeito aos mesmos deveres probidade.
Portanto, ao se refugar tal comportamento geral e esperado, legal ou moralmente, uma vez comprovado o desvio de conduta ética eivada de vícios ensejadores de dano ao erário ou distorção da finalidade pública tutelada, deve a autoridade superior ser responsabilizada no estrito limite de sua ação. Nos casos em que a fraude ou desvio se der na execução do contrato, ou seja, após a regular escolha do fornecedor, mediante dispensa ou inexigibilidade, não será minimamente razoável se imputar qualquer grau de responsabilização à autoridade incumbida de ratificar o procedimento, em conformidade formal com a lei. (Parecer nº GQ – 191/AGU - Conceito de AUTORIDADE SUPERIOR)