Ana Carolina Costa Leitão (Portugal)
Vivemos uma era de desigualdades sociais extremas no mundo ocidental. Um período sem precedentes na história das democracias contemporâneas e que se carateriza pela concentração de riqueza e de poder em certos grupos sociais, concretamente na “nova burguesia do século XXI”, as empresas financeiras e os detentores de tecnologia. Hodiernamente, as desigualdades sociais são múltiplas, assumindo diferentes formas, podendo ser de níveis de rendimento, classes de género, ligadas à raça ou à etnia.
O mundo da alta finança e o modelo económico foram significativamente redesenhados nas últimas décadas, ao ponto de assistirmos ao aumento do papel e da preponderância das instituições financeiras, das companhias de seguros, dos bancos, das empresas de investimento e, last but not the least, das agências de notação financeira. O Estado deixa de ser o único e o principal agente económico, retraindo-se na sua responsabilidade de Estado-Produtor e assumindo a veste de árbitro e de garante da realização de fins sociais (Estado Regulador e Garantia). Este novo mapa contrasta com a realidade vivida da década de 60 do século XX, em que o setor produtivo suplantava em muito o setor financeiro. Naturalmente, houve sempre desigualdades sociais durante as últimas décadas do século XX, mas elas não eram tão acentuadas como são atualmente. Ao entrarmos numa nova era de desigualdades extremas abre-se um período altamente perigoso sob ponto de vista político e social, já que as desigualdades sociais extremas têm um efeito corrosivo e nocivo sobre a democracia.
Para tal já chamara à atenção o economista Branco Milanovic, na obra Ter ou não ter: uma breve história da desigualdade, nos capítulos “Quanto do nosso rendimento é calculado à nascença?” e “Onde está você na distribuição global de rendimentos?”. Efetivamente, a família (situação patrimonial do agregado familiar) e, sobretudo, o lugar onde nascemos mostram-se passiveis de influenciar a mobilidade social.
Também o ilustre economista Thomas Piketty, na célebre obra O capital no século XXI, após o recolha e análise de dados de dois séculos de história, traça a panorâmica de mais de 20 países e oferece algumas propostas para alguns dos problemas mais graves do capitalismo. Ao contrário do que sugere o título do texto, o Autor não defende nenhuma teoria marxista ou neomarxista da economia. Para Thomas Piketty, a acumulação de capital não tem necessariamente um efeito nocivo, uma vez que, à medida que acumulamos capital também se gera o progresso técnico e, eventualmente, um aumento populacional, de tal forma que o rendimento do capital não tem razão para se reduzir a zero. Tudo depende da evolução da tecnologia e dos usos diferentes do capital empregue: por exemplo, o investimento em robôs, no mercado imobiliário, entre outros.
Importa realçar que tanto Branco Milanovic como Thomas Piketty, defendem a tese de que a situação patrimonial da família onde nascemos é um fator determinante na questão das desigualdades quanto à distribuição da riqueza, capacidade de aforro e investimento. Thomas Piketty aprofunda essa posição realçando que, no século XIX, a herança era um elemento central na sociedade e no século XXI a renda terá mais influência sobre a riqueza que outrora. Ainda a esse propósito, expõe que não há naturalidade ou espontaneidade na distribuição e na concentração de renda e que o sucesso obtido através do talento, do esforço é uma mera ilusão. Os mais ricos são os que receberam as maiores heranças. Sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, quando a herança passou a aumentar de importância e muitos desses herdeiros não trabalham e vivem dos rendimentos do seu patrimônio.
De acordo com o economista francês, a questão tributária explica em grande medida as mudanças ocorridas no século XX. Até a Primeira Guerra Mundial, praticamente não havia imposto sobre o capital e sobre a renda. Além disso, o imposto sobre a riqueza era baixo, tendo aumentado após a Primeira Guerra Mundial. Contudo, na década de 1980, com a liberalização financeira, os impostos sobre o capital caíram drasticamente, o que fez com que agravassem as desigualdades sociais e aumentassem os obstáculos à mobilidade social. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, foi aqui que se viu a reação neo-liberal contra as conquistas da esquerda da década de 60: a nova burguesia passou a concentrar não apenas a riqueza, como também a dominar o sistema eleitoral, capturando votos e financiando as campanhas eleitorais para influir sobre o conteúdo de uma legislação favorável aos seus empreendimentos económicos.
Do ponto de social, hoje assistimos a problemas endémicos no mercado laboral por força da adoção de um modelo deste tipo. Aos jovens independentes, utópicos e revolucionários da década de 60 sucederam-se os jovens dependentes, consumistas e dominados do nosso tempo. Uma boa parte da explicação passa pelo novo modelo económico do século XXI no domínio do mercado laboral: mantendo-se os trabalhadores inseguros e em clima de permanente instabilidade alcança-se o controlo e a dominação.
Ora, em face do exposto, que soluções pode o Direito oferecer para acautelar as desigualdades sociais e se alcançar uma redistribuição mais justa da riqueza. Na nossa opinião, a diminuição das desigualdades sociais passa por uma reestruturação da política fiscal no que concerne aos impostos sobre os imóveis e rendas.
Em Portugal, os impostos sobre o património podem ser de três tipos: o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) incidente sobre o património imobiliário detido e cuja matéria coletável é constituída pelo valor patrimonial detido e cuja matéria coletável é constituída pelo valor patrimonial tributário dos prédios rústicos ou urbanos (IMI rústico e IMI urbano), o IMT (Imposto Municipal sobre a Transmissão onerosa de imóveis) e o IS (Imposto de Selo) que incide sobre a transmissão gratuita de bens móveis ou imóveis por atos inter vivos ou mortis causa a favor de pessoas singulares.
No Brasil, os impostos sobre o património são designados impostos reais e são classificados em três tipos: o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), o IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e o ITR (Imposto sobre a propriedade Territorial Rural).
No que toca aos impostos sobre o rendimento, em Portugal existe o IRS (Imposto sobre das Pessoas Singulares) e o IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas). No Brasil, por sua vez, existe o IRFS (Imposto de Renda de Pessoa Física) e o IRPJ (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica).
Quanto à solução apresentada por Thomas Piketty, a propósito da carga tributária incidente sobre os imóveis e rendas que pouco influem na distribuição de riqueza, a Constituição Federal Brasileira parece ir de encontro com a ideia defendida pelo autor, pois, no art. 153, inciso VII, prevê a instituição de um Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF), que, em respeito ao princípio da legalidade fiscal, ainda não pode ser aplicado, por não estar regulamentado em lei complementar.
A ideia é que o referido tributo incida sobre o patrimônio, considerado como grande fortuna, devendo o sujeito passivo pagar sobre a totalidade de seus bens uma alíquota de imposto. Com efeito, por razões de equidade, prevê-se que seja um imposto, de caráter progressivo onde a alíquota irá variar consoante a capacidade contributiva do sujeito passivo, calculada em função do seu patrimônio.
Apesar do Imposto Sobre Grandes Fortunas estar previsto na Constituição Brasileira desde a sua criação em 1988 mas até hoje não encontrar previsão legal, cada vez mais vozes se levantam no sentido de ser aprovada a sua regulamentação. Isso porque aqueles que advogam a favor da sua implementação acreditam que será um importante meio de arrecadação de receitas destinadas a combater as desigualdades sociais no Brasil, estando também esse tributo previsto no art. 80.º, inciso III, das disposições constitucionais provisórias, que dispõe sobre a composição do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.
De acordo com as propostas de lei até hoje apresentadas, a sua incidência não afetará a classe média ou as famílias que podem ser consideradas ricas, mas não milionárias. Todavia, se por um lado, uma grande parcela da população pode “respirar aliviada” por não ser sujeito passivo do tributo, outra parcela, bastante menor mas com maior capacidade de influência política, não está minimamente interessada em que seja aprovado o Imposto Sobre Grandes Fortunas.
Em Portugal, à semelhança do Brasil, recentemente também se discutiu sobre a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas. Contudo, a proposta não mereceu acolhimento por parte do anterior Governo pois, apesar do anterior Primeiro- Ministro Passos Coelho admitir que a assimetria fiscal é uma realidade em toda a União Europeia, tal medida poderia levar à fuga de capitais do país e, com a crise económica sofrida por toda Europa, o que se pretende é atrair fortunas, investimento e capital externo.
Não há dúvidas que a implementação do imposto em causa arrecadaria receitas extraordinárias. No caso português, por exemplo, bastaria imaginar que Américo Amorim, o homem mais rico de Portugal, pagaria 25 milhões de euros de imposto. Contudo, por um lado, não estamos certos de que os valores arrecadados com o imposto seriam exclusivamente vocacionados para reduzir as desigualdades sociais. Por outro lado, haveria uma grande fuga de capitais do país, tendo em conta que os impostos progressivos já sacrificam o suficiente a população de um modo geral.
O Brasil, por sua vez, é classificado como um dos países com a maior carga fiscal do mundo e piores serviços públicos. Além disso, os meios de comunicação social têm noticiado autênticas enxurradas de escândalos de corrupção, desvio e “lavagem” de dinheiro, sendo o Brasil um dos maiores palcos desses crimes. Assim, não vislumbramos em que medida a arrecadação de um Imposto sobre Grandes Fortunas poderia beneficiar a população, diminuindo o fosso das desigualdades sociais, uma vez que não conseguimos precisar se a receita arrecadada realmente seria destinada a alguma política de caráter social ou se encontraria outro destino completamente diverso do seu fim.
Desta feita, tanto em Portugal como o Brasil, parece-nos que, se a solução para as desigualdades sociais for essencialmente tributária, conforme defende Thomas Piketty, antes de se criar um novo imposto, e, naturalmente, arcar com as consequências que daí adviriam, deveríamos operacionalizar um mecanismo mais eficiente de luta contra a fraude e a evasão fiscal. Aliás, é este o novo desafio para a Administração Fiscal do nosso tempo, a saber o combate à grande evasão fiscal e à fuga de capitais para contas bancárias offshore. Neste sentido, os Panama Papers (Papéis do Panamá) constituem uma peça essencial na compreensão dos novos desafios colocados ao sistema fiscal do nosso tempo e a prova inequívoca de que um pequeno grupo de indivíduos, além de concertar a riqueza e o poder político-social, continua a desenvolver ininterruptamente estratégias de evasão e sonegação fiscal.