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Restos a pagar, novação e leilão reverso: os desafios do gestor público em início de mandato eletivo

ANO 2017 NUM 328
Alberto Higa (SP)
Doutorando em Direito do Estado - USP. Mestre em Direito do Estado e Especialista em Direito Tributário – PUC/SP. Especialista em Direito Empresarial e Bacharel em Direito – MACKENZIE/SP. Ex-Assessor de Subprocuradora-Geral da República (PGR/DF – MPF) Procurador do Município de Jundiaí/SP. Membro Fundador Associado do IBEDAFT. Membro do Conselho Editorial da Editora Thoth.


15/02/2017 | 4940 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Em 1º de janeiro do corrente ano iniciou-se um novo mandato eletivo de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores. Acredita-se que nesse começo de gestão municipal muitos Chefes do Poder Executivo dos Municípios brasileiros terão como desafio comum, considerando a grave crise econômica que ainda assola o País, a difícil tarefa de implementar medidas objetivando o saneamento e o reequilíbrio das contas públicas.

De fato, difícil tarefa, pois, embora o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal proíba o gestor público anterior de contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dos dois últimos quadrimestres do seu mandato, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito, inclusive, capitulando tal conduta como crime contra as finanças públicas, passível de sanção de 1 a 4 anos (art. 359-C do Código Penal), nada dispõe acerca das providências a serem adotadas pelo novo mandatário, na hipótese de constatação, por exemplo, de despesas inscritas em restos a pagar, sem suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.

A situação se torna ainda mais complexa na medida em que a Lei nº 8.666/93, no caput do art. 5º impõe ao novo gestor, via de regra, o dever de efetuar o pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, mediante obediência à estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, e cuja inobservância também é capitulada como crime no art. 92 do citado diploma legal, com pena de detenção, de 2 a 4 anos, e multa.

Há relevantes valores tutelados pelo mencionado comando legal, seja porque a obrigação foi contraída pelo ente político e não por este ou aquele governo, obstando, assim, a segregação das despesas por “mandatos”, para fins de quitação, seja porque tal medida evita o pagamento privilegiado deste ou daquele credor, em afronta ao princípio da impessoalidade.

Assim, a quebra da ordem cronológica de pagamento das obrigações pelo Poder Público, consoante se depreende do caput do art. 5º da Lei nº 8.666/93, consiste em medida excepcional, e apenas pode ser levada a efeito quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.

Pois bem. Diante desse quadro normativo, o novo gestor público deve ter cautela redobrada na adoção de medidas visando assegurar a efetiva responsabilidade na gestão fiscal e o equilíbrio das contas públicas, uma vez que a necessidade de eventual quebra da ordem cronológica de pagamentos, para tanto, deverá vir acompanhada de ampla e sólida justificativa, a fim de demonstrar as razões de interesse público que autorizam tal medida excepcional. É dizer, deverá atender a um só tempo os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

De toda sorte, à mingua, frise-se, de comando normativo a orientar a conduta do novo gestor público na situação ora examinada - despesas inscritas em restos a pagar, sem suficiente disponibilidade de caixa para este efeito – tem se verificado uma diversidade de providências por parte dos novos mandatários para o alcance dos referidos objetivos, a demonstrar a criatividade do gestor público pátrio, merecendo, no entanto, censura aquelas iniciativas que se limitam a suspender, por prazo indeterminado, os pagamentos de despesas inscritas em restos a pagar, sem a adoção de qualquer outra medida de planejamento para o saneamento das contas públicas, gerando enorme insegurança jurídica àqueles que travaram contratos com a Administração Pública.

Dentre as medidas que vem sendo adotadas pelos Chefes do Poder Executivo, merece destaque, por sua ousadia e inovação, a iniciativa do Estado do Mato Grosso, o qual, no exercício de sua competência concorrente para legislar sobre direito financeiro, fez aprovar a Lei nº 10.280, de 03/06/2015, conhecida como “Lei do Bom Pagador”, que autoriza o Poder Executivo a efetuar a quitação de despesas inscritas em restos a pagar processados dos exercícios de 2013 e 2014, sem lastro financeiro e sem disponibilidade de caixa suficiente, por meio de oferta pública de recursos (“leilão reverso”) ou por meio de compensação com créditos inscritos em dívida ativa, sem prejuízo de outras modalidades definidas em legislação específica.

De acordo com o referido diploma legal, o pagamento pela via da oferta pública de recursos se realizará a partir de proposta formulada voluntariamente pelo credor, a qual será irretratável após a sua apresentação, sendo acatada aquela que resultar no maior desconto pecuniário sobre o valor principal da obrigação que se pretende novar, por meio de procedimento de leilão reverso e eletrônico, em sessão pública, e normatizada por edital específico e por ato regulamentar de iniciativa da Secretaria de Estado de Fazenda. Estabelece ainda que a dívida novada, em qualquer das hipóteses previstas na referida lei, extingue a anterior e as garantias a ela referentes.

Consta da mensagem de veto parcial, que a iniciativa possui a finalidade de criar regras que garantam ambiente de segurança e de estabilidade financeira para o desenvolvimento da economia no Estado de Mato Grosso, especialmente diante do fato de não ser possível atender as despesas que tenham sido contraídas sem lastro e sem disponibilidade de caixa suficiente nos dois últimos exercícios do mandato do Chefe do Poder Executivo anterior com parcelas a serem quitadas no exercício subsequente, em obediência à Constituição, ao interesse público e a economicidade. Não há dúvidas de que a medida, vista sob a ótica do contratado, que forneceu ou prestou serviços regularmente ao Estado, pode suscitar questionamentos. Aliás, no ponto, cumpre registrar que a sistemática guarda semelhança, guardadas as devidas proporções, àquela adotada pela Emenda Constitucional nº 62/2009, no tocante ao pagamento dos precatórios, tendo o E. Supremo Tribunal Federal, nos autos das ADI 4357/DF e 4425/DF, julgado parcialmente procedentes as referidas ações para o fim de afastar o uso desse meio alternativo (declaração de nulidade com efeitos ex nunc), admitindo-se, a partir de 25/03/2015, tão somente o critério da ordem cronológica de apresentação, salvo as exceções constitucionais, para o pagamento dos precatórios. Sem adentrar no mérito da legitimidade ou não da referida Lei estadual em face da Constituição Federal, o fato é que se trata de iniciativa, como dito, ousada e inovadora, a fim de dar cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal e ao mesmo tempo respeitar os comandos da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

 



Por Alberto Higa (SP)

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