Adilson Abreu Dallari (SP)
O propósito específico deste breve estudo é evidenciar as diferenças entre ilicitudes que podem, eventualmente, ser cometidas pelo Presidente da República, os correspondentes processos de apuração e as decorrentes penalidades que podem ser aplicadas, respectivamente a cada uma dessa modalidades de ilícitos. O tema será desenvolvido a partir dos princípios constitucionais relevantes para cada uma dessas situações jurídicas.
Na conhecidíssima formulação do Ministro Eros Grau, qualquer norma jurídica, para que possa ser aplicada, exige uma tarefa de interpretação de seu enunciado, para que daí se extraia o seu significado. O problema é que toda norma comporta uma pluralidade de interpretações, cabendo ao intérprete buscar a melhor intepretação possível ou seja, aquela que tributar maior acatamento aos princípios jurídicos albergados no sistema normativo. Conforme a clássica lição do saudoso GERALDO ATALIBA (falecido há 20 anos, no dia da República, em 15 de novembro de 1995), em sua notável monografia sobre "República e Constituição" (RT, São Paulo, 1985), os princípios constitucionais, por sua importância, servem exatamente para orientar a interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma, pois eles expressam "a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados têm que ser prestigiados até as últimas consequências. "
Entre os princípios constitucionais mais relevantes, para os fins deste estudo, está o princípio republicano, que permite uma copiosa gama de implicações e decorrências, mas que, no tocante à responsabilidade por ilícitos, fica mais nítido quando comparado com a Constituição Imperial, de 1824, Art. 99, por força do qual, o soberano era inviolável e sagrado, não estando sujeito a responsabilidade alguma. Na Constituição republicana, o Presidente tem um mandato temporário e está necessariamente sujeito a responsabilidade por seus atos.
Na República, qualquer pessoa que exerça, de alguma forma, uma parcela de poder, estará sempre sujeita a ser responsabilizada: poder e responsabilidade são inseparáveis não existe imunidade. O Presidente da República é um cidadão, como qualquer outro, que recebeu, do povo, um mandato. Assim, como qualquer cidadão, pode ser responsabilizado pelos ilícitos que cometer, porém, por ser titular de mandato popular, desfruta de condições especiais no tocante à apuração e o julgamento do eventual ilícito, na forma da legislação que disciplina cada específica infração.
Possivelmente, a modalidade infracional de maior impacto político e social seja, exatamente, o crime de responsabilidade, que está previsto na própria Constituição Federal, em cujo Art. 85 está afirmada a regra geral no sentido de que "São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal". A tipificação das específicas modalidades de crime de responsabilidade está disciplinada pela Lei nº 1.079, de 10/04/50. O julgamento de tais crimes, por configurem infração político administrativa, cabe ao Senado Federal. Ou seja: a regra geral é a da possibilidade de cassação do mandato, em perfeita consonância com o sistema republicano. Aliás, seria absurda a impossibilidade de retirada do mandato, quando o outorgado se comportar como um mandatário infiel. Portanto, não há qualquer ofensa ao princípio republicano no fato representantes do povo cassarem o mandato de outro representante do povo, quando este houver praticado atos que a Constituição designa como crimes de responsabilidade. Qualquer interpretação desmedidamente restritiva ou impeditiva da responsabilização, não pode ser aceita, por agredir o princípio republicano.
Há, entretanto, uma forçada controvérsia em decorrência da redação do § 4º, do Art. 86, cujo teor é o seguinte:" O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções". Cabe insistir em que se trata de uma falsa controvérsia, facilmente eliminável desde que se tenha uma noção básica da diferença entre cargo, função e mandato. Cargo é um lugar permanente na estrutura administrativa. Função é o conjunto de tarefas que devem ser executadas por quem ocupa o cargo. Mandato é a titulação jurídica, outorgada pelo voto, para que alguém exerça as funções inerentes ao cargo.
É óbvio, que o Presidente não pode perder o mandato se não estiver no exercício dele. Também não pode responder por crime de responsabilidade por atos praticados na vida privada, na vida social, que nada tenham a ver com o exercício das funções inerentes ao cargo. A exigência constitucional é de que o ato sancionável tenha sido praticado (por ação ou omissão culposa) no exercício das funções de Presidente.
Atualmente, nos termos do § 5º, do Art. 14, da Constituição Federal, o mandato é de 4 anos, mas o Presidente pode ser reeleito por mais um período, subsequente. A decorrência clara e insofismável dessa alteração constitucional é a de que o Presidente da República estará no exercício de suas funções por oito anos, quando for reeleito. Portanto, no caso de reeleição, o Presidente pode ser responsabilizado por atos e omissões que configurem crime de responsabilidade, ocorridos durante todo esse período.
Um mau administrador, desprovido de talento para a gestão pública, deve ser punido pelo eleitorado não se pode cassar o mandato do Presidente da República apenas por ser incompetente, política e tecnicamente. Mas, ao contrário, a cassação do mandato do Presidente, que cometeu crime de responsabilidade (por ação ou omissão, dolosa ou culposa), não atenta contra a democracia, pois é um instrumento do governo republicano, expressamente previsto na Constituição.
O exato significado do supra transcrito § 4º, do Art. 86, é o de que o Presidente da República não pode ter seu mandato cassado (não está sujeito ao processo por crime de responsabilidade), "por atos estranhos ao exercício de suas funções", ou seja, atos praticados sem qualquer correlação com as funções de Presidente da República, como seriam, por exemplo, o caso de um homicídio, de uma receptação, de uma falsidade documental etc. crimes esses tipificados pelo Código Penal, que, conforme disposto no "caput" desse mesmo artigo, seriam julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
Especial destaque merecem os crimes praticados pelo Presidente da República contra as finanças públicas, nos termos da Lei nº 10.028, de 19/10/00 (Lei de Crimes contra as Finanças Públicas), que trouxe alterações significativas para o Código Penal, visando assegurar o fiel cumprimento da Lei Complementar nº 101, de 04/05/00, normalmente designada como Lei de Responsabilidade Fiscal. Neste ponto é preciso fazer uma distinção entre o julgamento das contas anuais do Presidente da República e o julgamento de crimes comuns contra as finanças públicas.
Nos artigos 70 e seguintes, da Constituição Federal, está disciplinado o exercício da fiscalização contábil, financeira e orçamentária, da Administração Pública. Quanto ao Presidente da República, essa fiscalização é feita pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União, que, apenas, emite um parecer técnico, pela aprovação ou rejeição das contas, considerando, conjuntamente, a legalidade, a economicidade, a eficiência da gestão e a observância de metas orçamentárias. Quem efetivamente julga as contas, aprovando ou não aprovando, é o Congresso Nacional, mas esse é um julgamento político, destinado a produzir efeitos políticos. Tal julgamento nada tem a ver com a licitude ou ilicitude de ações ou omissões ocorridas na execução do orçamento, durante o exercício financeiro. A aprovação política das contas não ilide a responsabilidade penal, por crimes contra as finanças públicas. Da mesma forma, a rejeição política das contas não implica, automaticamente, responsabilidade penal. Em síntese as manifestações do Tribunal de Contas e do Congresso Nacional não afetam e as competências (poderes deveres) do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Paralelamente ao que foi até agora examinado, existe, ainda a possibilidade de responsabilização por atos de improbidade administrativa, que, conforme o disposto no Art. 37, § 4º, da Constituição Federal, podem acarretar "a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens, e o ressarcimento do erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível". A tipificação das condutas sancionáveis e as especificidades do processo judicial, perante a Justiça comum, é o objeto da Lei nº 8.429, de 02/06/92. Trata-se, portanto, de uma ação civil, cujo propósito principal é a defesa do erário e a concretização do princípio da probidade na Administração Pública, direta e indireta, em todos os níveis de governo e em todos os ramos do Poder Público.
Por último, resta falar sobre a possibilidade da perda do mandato por ilícitos eleitorais. A legislação eleitoral tem suas raízes nos princípios constitucionais referentes à República e à soberania popular ("todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos"), cabendo à Justiça Eleitoral zelar pela regularidade dos pleitos, inclusive pela repressão a qualquer forma de atuação que possa afetar a livre manifestação de vontade dos eleitores e a legitimidade da representação. Uma das atividades da Justiça Eleitoral é fiscalizar o uso de recursos financeiros pelos candidatos, e para isso, os partidos políticos e os candidatos, no encerramento do pleito, devem apresentar suas contas para serem apreciadas. Não é incomum (já tem acontecido muitas vezes) a constatação de comportamentos irregulares por mandatários eleitos, acarretando, para estes, como resultado jurídico, a perda dos respectivos mandatos, sem que, entretanto, isso se confunda com a cassação do mandato, ato político, praticado pelo Poder Legislativo.
No caso específico do Presidente da República, uma vez constatada a prática de ilícitos eleitorais, cabe ao Tribunal Superior Eleitoral anular a diplomação do candidato eleito (ato jurídico), que traz como efeito jurídico a perda do mandato. Note-se que o TSE não anula a eleição (fato jurídico material), nem cassa o mandato do eleito, mas sim, tecnicamente, anula o ato jurídico da diplomação e, como é cediço em direito, de atos nulos não podem decorrer efeitos válidos. Daí porque a posse e investidura do candidato irregularmente eleito são necessariamente nulas, e o mandato (titulo jurídico) passa a ser inexistente.
O grande problema atual é que os candidatos a Presidente e Vice-Presidente prestam contas separadamente, mas a votação de ambos é conjunta é uma só. Daí decorre um sério problema jurídico: o candidato o Vice-Presidente teria, também, seu diploma anulado? Num primeiro momento, parece óbvio que o candidato a Vice não pode ser penalizado pela ilicitude cometida pelo candidato a Presidente. Realmente, não faz sentido que alguém seja punido sem, nem mesmo, ter sido acusado. Porém, por outro lado, não há dúvida de que, na eventual prática de crime eleitoral pelo candidato à presidência, o candidato a Vice (que não recebeu voto algum e cuja votação é mera decorrência daquela conferida ao candidato à presidência) vem a ser o beneficiário direto do crime cometido. Não há uma solução simples e inquestionável para esse problema. No mínimo, o candidato a Vice Presidente deveria figurar como litisconsorte necessário no processo de apuração das acusações feitas ao candidato a Presidente.
Este é um ponto essencial: seja qual for a acusação, a fundamentação legal, o foro competente e o processo de julgamento, em qualquer situação, sempre será necessária a fiel observância do devido processo legal, assegurada a ampla defesa, com os meios e instrumentos a ela inerentes. Desde que respeitada essa garantia constitucional, a perda do mandato não é uma violência contra a soberania popular muito ao contrário, é uma ocorrência perfeitamente compatível com o regime republicano democrático de direito.
Conforme já foi dito no início, qualquer norma jurídica comporta uma pluralidade de interpretações, cabendo ao intérprete, com a possível isenção, buscar a melhor intepretação entre aquelas que, diante das circunstâncias do caso concreto, forem possíveis. Isso não significa, absolutamente, que qualquer interpretação seja aceitável, ao inteiro arbítrio do intérprete, por mais respeitável que seja, pois o "magister dixit" já foi sepultado há muito tempo.
O acatamento conferido a um determinado entendimento vai depender, em parte, da confiabilidade do intérprete (que, obviamente, deverá ser fiel à sua linha de pensamento evitando contradizer entendimentos anteriormente esposados), mas, em parte mais relevante, da consistência e coerência dos argumentos que sustentam a conclusão. Daí a necessidade de extremado rigor no exame das normas que afetam a questão em estudo, cuja interpretação jamais poderá se lastrear na literalidade de fragmentos isolados, mas, ao contrário, deverá ser feita considerando o contexto em que quaisquer normas sempre estão necessariamente inseridas.
A experiência tem demonstrado que, lamentavelmente, na vida real, existem interpretações estapafúrdias, absolutamente inaceitáveis: ou por serem, marcadamente ideológicas ou político partidárias ou por violentarem a lógica do sistema jurídico. Um exemplo típico da primeira hipótese é a da qualificação do impeachment como golpe, vocábulo próprio ao jargão político, mas incompatível com a Constituição, onde a cassação de mandato ocupa lugar proeminente como instrumento jurídico de controle do poder. Outro claríssimo exemplo de interpretação forçada ou facciosa é, exatamente, aquela que sustenta serem suscetíveis de cassação de mandato do presidente, apenas os atos ilícitos perpetrados no exercício do mandato em curso mas não ilicitudes praticadas no mandato anterior, no caso de reeleição. Esta é uma interpretação jurídica (e juristas respeitáveis a sustentam), mas não pode ser aceita, conforme, agora, se demonstra.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/00 - que sempre deve ser respeitada em todos os anos do mandato) contém normas mais rigorosas, estabelecendo proibições especiais, com relação a admissão de pessoal, realização de operações de crédito e celebração de contratos no último ano do mandato (confira-se artigos 21, parágrafo único, 38, IV, b, e 42), dado que tais situações poderiam levar à obtenção de indevido proveito eleitoral, para o candidato à reeleição. O propósito, claramente evidente, de tais proibições é assegurar a legitimidade dos pleitos eleitorais, coibindo o uso de recursos públicos para a cooptação de eleitores.
Mas, pelo entendimento restritivo aos atos praticados apenas no mandato em curso, o candidato à reeleição poderia transgredir, à vontade, a lei de Responsabilidade Fiscal no último ano do mandato, durante a disputa eleitoral, pois as violações contra ela consumadas seriam insuscetíveis de punição no mandato subsequente. Seja permitido invocar aqui um ensinamento básico de Carlos Maximiliano, que continua sendo, ainda hoje, o Papa da hermenêutica: "Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". ("Hermenêutica e Aplicação do Direito", Forense, 9ª edição, 1984, pág. 166)
Enquanto sofismas continuarem sendo aceitos, com base numa exacerbada e completamente despropositada presunção de inocência, o pais continuará sendo o reino da corrupção e da impunidade. Lágrimas de crocodilo continuarão sendo vertidas em profusão, enquanto se tolera, hipocritamente, a vergonhosa injustiça social, até que o princípio constitucional da probidade administrativa seja levado a sério e que a ética no desempenho de qualquer função pública passe a ser um requisito indispensável, e a punição de comprovadas transgressões deixe de ser algo excepcional.
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