Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)
A partir da convocação de centrais sindicais e sindicatos a elas filiados, no dia 28 de abril, foi realizada a maior greve geral da história recente do país em protesto dos trabalhadores contra a aprovação das Reformas Previdenciária e Trabalhista propostas pelo Governo Michel Temer. Enquanto algumas vozes acusavam os grevistas de vagabundos, e propunham bizarramente a realização da greve no feriado para não atrapalhar o deslocamento das pessoas, a polícia militar de muitos Estados, especialmente do Rio de Janeiro, reprimia violentamente as manifestações pacíficas, e a grande mídia procurava criminalizar o movimento. Para quem vê o mundo a partir do olhar dos grandes jornais e canais de televisão, parece que a mobilização é fruto do inconformismo de alguns setores radicais contrários aos anseios da maioria da população, e não o exercício do direito de resistência a soluções impostas por um governo não eleito, cuja baixa popularidade vai rapidamente evaporando, chanceladas por um Congresso que se afunda cada vez mais com a revelação de espúrias relações com o lado podre do mercado, contrariando diametralmente as propostas que foram chancelas nas urnas. Mas têm os trabalhadores razão para protestar, incomodando o direito das pessoas de desfrutarem calmamente do seu cotidiano, ao verem os seus direitos suprimidos a toque de caixa sem maior discussão com os segmentos sociais envolvidos? Penso que poucas vezes tiveram tanta.
Na verdade, a Reforma da Previdência não é uma proposta que visa ao equilíbrio financeiro do regime previdenciário atual, cuja necessidade não se pode negar, mas à sua implosão, sem que se ofereça outro que venha a substituí-lo. Explicando melhor: as regras propostas pelo Governo são tão draconianas para os trabalhadores que qualquer outro destino que esses possam dar ao seu dinheiro é mais vantajoso do que o regime previdenciário proposto. Afinal, ter que contribuir 49 anos, com base nas alíquotas atuais, para obter o benefício integral não tem nada de atuarial, máxime quando consideramos a obrigatoriedade de o empregador contribuir, pelo menos, na mesma proporção, para o regime. Naturalmente, o caráter mais gravoso do que o mercado oferece não deixa de se traduzir em um grande estímulo ao fortalecimento do regime de previdência complementar com o esvaziamento do sistema público. Com isso, a privatização da Previdência acaba sendo obtida por vias transversas, e com a adesão de todos os que encontrarão nos planos oferecidos pelas instituições financeiras mais vantagens do que a previdência pública. Assim, o mercado financeiro ganha uma fatia que até então ficava a cargo do Governo: a previdência dos trabalhadores de baixa renda. Sem falar que a maior parte do povo pobre do Brasil, que começa a trabalhar bem cedo, ou morre antes de completar o longo período, ou perde o grau de empregabilidade. Deste modo, sem emprego e sem aposentadoria, para a maior parte da população só restará a comiseração pública, como no século XIX.
Não se pode querer entender o contexto de aprovação da Reforma da Previdência proposta pelo Governo Michel Temer de forma dissociada da aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 (a antiga PEC 241 ou 55), que congela por vinte anos os gastos primários, incluindo os de educação, saúde e previdência social, revelando as intenções claras de limitar os gastos com benefícios previdenciários. Afinal, sem a aprovação de uma Reforma da Previdência redutora dos benefícios sociais, o congelamento dos gastos primários determinados pela EC nº 95/16 tornar-se-ia absolutamente inexequível. As duas medidas, aliadas à proposta de Reforma Trabalhista apresentada também pelo Governo Temer, que prevê a prevalência do combinado sobre o legislador, pondo fim a um dos maiores paradigmas do Direito do Trabalho, que é a tutela dos trabalhadores, compõem o tripé normativo da política de austeridade seletiva e de esfacelamento do Estado Social concebido pela Constituição de 1988.
A justificativa apresentada pelos Governo erigido pelo Congresso Nacional para tais medidas de austeridade é a salvação das finanças públicas no Brasil, proporcionando um ambiente de maior confiabilidade para os investidores, a fim de promover o crescimento econômico e o emprego. Segundo o lema governamental, é preciso sair do vermelho!
Porém, não há uma crise fiscal estrutural que autorize medidas que comprometem as opções do Estado brasileiro por tanto tempo, suprimindo direitos dos mais pobres conquistados após décadas de lutas. Afinal, tais propostas, longe de procurarem sanar as dificuldades conjunturais sempre a cargo do legislador orçamentário e tributário, amarram as decisões de legisladores e governantes futuros. O que tais iniciativas fazem é, a partir do pretexto da austeridade oferecido pela crise fiscal, promover uma aceleração do processo de transferência de renda do conjunto da sociedade brasileira para o setor financeiro, que passaria a ser o destinatário quase que exclusivo de todas as receitas decorrentes do aumento de arrecadação, seja ele advindo da elevação da carga tributária ou da melhoria das condições macroeconômicas nacionais, e o principal administrador da Previdência Social no Brasil. Além disso, a Reforma Trabalhista não garante propriamente a criação de emprego, mas a redução do custo de mão de obra, em detrimento dos empregados.
Nesse contexto, a austeridade que fundamenta as medidas é seletiva, uma vez que, além de não oferecer qualquer revisão para os maiores ralos do dinheiro público no Brasil, ainda reserva todos os excepcionais benefícios do crescimento econômico ao setor financeiro, já que, todo ele terá como destinatário esse segmento, o que, historicamente, já se comprovou ser fenômeno que não só promove grave elevação da desigualdade social, como compromete o desempenho da atividade industrial a partir do processo de financeirização da economia.
Não é difícil perceber que a austeridade seletiva da EC 95/16, e das Reformas da Previdência e Trabalhista não tem como objetivo o combate à crise fiscal conjuntural, mas a consagração de um projeto de transferência de renda para o topo, retirando riqueza das camadas mais desfavorecidas da nossa população, destroçando a educação, a saúde, a previdência social e os direitos dos trabalhadores.
Com efeito, para além do natural processo de concentração de renda com a diminuição dos direitos trabalhistas, o absenteísmo estatal dessas medidas levará a uma rápida reversão do quadro de redução da desigualdade dos últimos anos, agravando o triste cenário de miséria que sempre assolou o nosso país. Como se vê, a austeridade, tal como é preconizada aqui e alhures, ainda que sob a roupagem inodora da responsabilidade fiscal, tem ideologia e compromisso com a transferência de renda da base para o topo da pirâmide social. Deste modo, o Governo Temer estimula a desigualdade pelas duas pontas: aumenta a transferência de renda de empregados para empregadores e restringe a atuação estatal destinada a minorar a curva da divergência social.
Porém, é preciso reconhecer que este fenômeno não é apenas brasileiro. Com o desenvolvimento do comércio internacional, o avanço tecnológico nas áreas do transporte e da comunicação, e a universalização da circulação de ideias e pessoas dá-se a ruptura de uma das principais premissas da Era Moderna, a de que vivemos em espaços delimitados pelos Estados nacionais. Neste contexto, aprofunda-se o processo de Globalização econômica, social, política e cultural, gerando, de um lado, o crescimento do poder das empresas multinacionais e a fragilização dos Estados nacionais e dos trabalhadores, e de outro a revolução e pulverização nos meios de informação e comunicação que contribuíram para a universalização dos direitos humanos e da democracia representativa, despertando a atenção global sobre as questões ambientais, os direitos das minorias e a pobreza mundial.
Nesse cenário, as políticas de globalização e de livre mercado têm causado crescentes fragmentação, diferenciação e polarização na estrutura de classes da sociedade. A classe média tradicional tem se segmentado em uma classe média alta de gestores, advogados, especialistas em finanças, profissionais que são bem-sucedidos nesta nova forma de capitalismo, e o segmento de classe média baixa, composto por professores, trabalhadores de escritório e empregados de serviços, que, por outro lado, têm visto os rendimentos estagnarem e seus membros contraírem dívidas para manter seus padrões de vida atuais, bem como custear os gastos com a educação mais cara, os custos de saúde mais altos, e outros serviços sociais, agora privatizados. Além disso, em países como os Estados Unidos e Espanha, muitas famílias de classe média perderam suas casas na crise econômica, incapazes de pagar suas hipotecas porque se viram sem os seus postos de trabalho e/ou por terem tido redução de renda em razão da crise financeira de 2008 e suas consequências.
Por outro lado, os efeitos da globalização sobre a classe trabalhadora tradicional nos países capitalistas avançados foram bastantes adversos. O deslocamento de empresas para com as nações de baixos salários, o efeito de alterações técnicas de economia de trabalho, a dessindicalização dos trabalhadores, a concorrência de trabalho a partir de importações realizadas em país de baixos salários, e o crescimento da imigração dos países do Terceiro Mundo e países que eram socialistas, limitaram a demanda para o trabalho, inviabilizaram quaisquer aumentos de salários, e reduziram a participação do trabalho na renda nacional.
Os mercados de trabalho nos países industrializados têm se polarizado: observa-se uma coexistência de demanda relativamente forte e altos salários para executivos, profissionais altamente especializados e empregados no setor de serviços. Um grande número de empregos de classe média e de trabalhadores manuais foi deslocado por mudanças técnicas baseadas em competências que a troca de tarefas administrativas e de escritório de rotina para o trabalho baseado em computador. Além disso, cadeias de produção globais centradas em baixos salários se afastaram das economias capitalistas avançadas.
No mundo em desenvolvimento, as elites econômicas financeiras têm crescido mais fortemente com a distribuição de renda se concentrando no topo. Em países de rápido crescimento, como a China, a Índia, e alguns latino-americanos como o Brasil, como destaca Andrés Solimano, muitas pessoas deixaram a pobreza, considerando apenas a renda, juntando-se às fileiras da chamada nova classe média, ainda muito vulneráveis a choques financeiros, no mercado de trabalho e na saúde. Tendem a ela voltar com a reversão das medidas distributivas, já que a desigualdade não foi fruto senão da atuação estatal a partir de prestações positivas, como destacou Anthony Atkinson.
Sob esse prisma internacional, a globalização assimétrica afeta o poder de negociação dos trabalhadores, quase sempre presos às fronteiras dos Estados nacionais. Como sugere Joseph Stiglitz, caso houvesse livre mobilidade laboral, mas nenhuma mobilidade de capital, os países competiriam para atrair trabalhadores, prometendo boas escola e um bom ambiente, assim como impostos baixos sobre os trabalhadores, como hoje se faz em relação aos capitais, que não estão embaraçados por tais fronteiras, podendo escolher o melhor ambiente tributário e regulatório.
O dado mais trágico desse novo arranjo institucional é que em decorrência dos efeitos nocivos da globalização sobre os trabalhadores gerados pela flexibilização no mercado de trabalho, a seguridade social acaba por ser onerada ainda mais. É que os trabalhadores não qualificados dos países industrializados têm que competir com os aqueles residentes nos países em desenvolvimento que, quase sempre, aceitam receber uma fração dos salários percebidos pelos primeiros. Nesse cenário, é natural que os empregadores desejem que os seus trabalhadores aceitem cortes mais significativos nos seus salários, o que quase sempre está por trás dos reclames pela maior flexibilização do mercado de trabalho. Diante dessa realidade, a prevalência do negociado sobre o legislador é a forma mais eficaz para a aniquilação de direitos.
Enquanto isso, as empresas multinacionais batem recordes de lucratividade e de corte expressivo de postos de trabalho. Como destacou Ulrich Beck, “em seus balanços anuais os conselhos das empresas apresentam uma sucessão de lucros astronômicos enquanto os políticos, que devem justificar o escândalo do desemprego, voltam à carga com novos aumentos de impostos na esperança quase sempre vã de que, da riqueza dos mais ricos, caiam dos céus alguns postos de trabalho. ”
Paradoxalmente, a resposta dos Estados nacionais ao fenômeno está relacionada a sua débil capacidade e vontade de prestar tais proteções sociais. É voz comum no debate público que o aumento de concorrência associado à globalização requer que se restrinjam as proteções sociais a fim de tornar a economia mais ágil e adaptada às circunstâncias da nova ordem internacional. Deste modo, a globalização assimétrica leva os Estados a reduzir a tributação e as proteções ambientais e trabalhistas em relação ao trabalho não qualificado, cortando impostos sem conseguir compensar por outros meios as receitas fiscais. Com a redução dessas, a globalização pressiona o Estado para reduzir déficits e redirecionar os gastos no sentido de atrair mais investimento privado à custa da redução inevitável das despesas do Estado Social. A estratégia argumentativa para legitimar tal conduta consiste em convencer que todos nos beneficiaremos do crescimento, em uma versão atualizada da economia trickle-down. Porém, como adverte Stigliz, tal ideia não se mostrou correta pelo aumento das desigualdades ter sido tão significativo e o benefício para o crescimento ter sido tão tímido, que os efeitos negativos daquele anularam os efeitos positivos deste.
Para Paul Krugman contribuíram para o crescimento da desigualdade decorrente da ascensão dos neoliberais ao poder, o incentivo dado ao meio empresarial para empreender um ataque encarniçado contra o movimento sindical, com a redução drástica do poder de barganha dos trabalhadores, bem como o livramento aos executivos das empresas dos constrangimentos políticos e sociais que, anteriormente, impunham limites ao aumento desbragado dos próprios salários.
A terceirização de mão-de-obra, por sua vez, está associada à perda de poder pelos sindicatos nos anos Thatcher e Reagan. A primeira ministra britânica nutria, desde muito, uma profunda desconfiança em relação aos sindicatos. Para ela, a indústria privada não podia florescer sob a mão pesada do Estado e de um movimento operário excessivamente poderoso, já que enquanto o mercado de trabalho da Grã-Bretanha era excessivamente regulado, os trabalhadores foram muito protegidos e muito bem pagos. Nessa cruzada antissindical, Ronald Reagan foi um importante companheiro de viagem. No fim dos anos 1950, ele trabalhou para a gigante americana, General Electric, excursionando para dar palestras para os trabalhadores e para uma série dramática de televisão da empresa. À época, ele chegou a temer que empresas como a GE enfrentassem sérias ameaças em face do poder dos sindicatos.
A partir de meados dos anos 1970, os empregadores norte-americanos lançaram uma campanha de virulento antissindicalismo, mais tarde descrita pela Business Week como "uma das guerras antissindicais de maior sucesso de todos os tempos”. O resultado da guerra aos sindicatos nos Estados Unidos foi exitoso, com a proporção de empregados do setor privado sindicalizados tendo caiu de 25% em 1979 para apenas 7% nos dias atuais. É claro que o impacto dessa fragilização dos sindicatos sobre a força de trabalho é muito expressivo. O salário mínimo federal, que ficava em pé de igualdade com a linha oficial de pobreza, em 1980, havia caído para 30% abaixo dela uma década depois. Os direitos dos trabalhadores norte-americanos iniciaram um longo período de declínio. De acordo com Stewart Lansley, baseados em estudos realizados nos EUA, o enfraquecimento do trabalho organizado e o declínio na filiação sindical representam entre um quinto e um terço do aumento da desigualdade americana nos últimos trinta anos. No Reino Unido, o resultado não foi diferente, já que em 1979, a filiação sindical atingiu um pico do pós-guerra de 13,5 milhões, mais da metade da força de trabalho. Até 2009, havia caído para 6,7 milhões, um quarto do seu potencial. Hoje, apenas um em cada sete trabalhadores do setor privado é um membro de um sindicato.
É nesse panorama internacional de flexibilização das regras trabalhistas e fragilização dos sindicatos que o Governo de Michel Temer, advindo do Golpe Parlamentar de 2016, apresenta a sua Reforma Trabalhista, a partir da ideia central de substituição do legislado pelo negociado. Assim, em um ambiente de fragilização dos trabalhadores, as convenções coletivas serão utilizadas para afastar direitos há muito consagrados pela Constituição Federal e pela CLT. Longe de criar mais empregos, a precarização do trabalho leva à transferência de parcela significativa da renda nacional da base para o topo da pirâmide social.
Vimos que a experiência internacional mostra que todas as vezes em que há retrocesso nos direitos dos trabalhadores e fragilização dos sindicatos, há um crescente aumento da desigualdade social, com os mais ricos amealhando maiores fatias do bolo social em detrimento de toda a sociedade, notadamente dos trabalhadores.
É claro que tudo isso não seria possível fora do atual ambiente político em que se utilizada a doutrina do choque, a que alude Naomi Klein, para quem, a adoção das ideias de livre-mercado, na radicalidade defendida por Milton Friedman, ao contrário do que se propaga, não foi fruto do consenso, construído em um ambiente de liberdade democrática, mas aplicação da referida doutrina que se segue aos grandes desastres naturais ou humanos, capazes de ensejar um ambiente político em que um trauma coletivo maior é utilizado para suspender as práticas democráticas temporariamente ou suprimi-las em caráter definitivo. Se o ideário neoliberal pode ser aplicado em parte pela via democrática, como se deu com Reagan, nos EUA, Thatcher, no Reino Unido, e Sarkozy, na França, essas propostas precisaram ser atenuadas em razão das pressões públicas. Porém, para a sua implementação genuína são necessárias certas condições autoritárias, obtidas a partir do tratamento de choque, como no Chile, de Pinochet, na China, após o massacre da Praça Celestial, na Rússia com o desmantelamento rápido do estatismo comunista controlado pelos oligarcas, e nos EUA, com George W. Bush a partir de 11 de setembro de 2001.
Como se vê, a atuação dos grupos econômicos, a implementar a hiperglobalização e o neoliberalismo radical, com a entronização dos interesses do mercado financeiro, é viabilizada pela introdução da doutrina do choque, que artificialmente identifica um grande perigo a ser combatido. Em nosso país a estratégia é introduzida com base na retórica da falência do Estado em decorrência do suposto descontrole fiscal advindo do abuso dos gastos sociais após o impeachment de Dilma Rousseff. Tais ideias são capazes de amortecer consciências, desarmar resistências e aprovar medidas draconianas em relação aos interesses da sociedade, que não seriam palatáveis em outros momentos de normalidade democrática, a partir das políticas de austeridade seletiva que, ao contrário do discurso oficial, não apertam todos os cintos, mas apenas transferem renda da base para o topo da pirâmide. É nesse contexto, que os discursos da crise da previdência, da imperiosidade dos cortes nos gastos sociais e da imprescindibilidade da reforma trabalhista, se inserem, por meio de uma mitologia que se procura, em caráter sintético exigido por este espaço, descontruir.
Porém, como a experiência internacional demonstra, o custo social e político dessas medidas não pode ser desprezado pelos setores empresariais nacionais, pois não será mais possível às classes dominantes brasileiras continuar vivendo em guetos, sem serem incomodadas pelos rolezinhos, pelos arrastões e pela desagregação do tecido social. A lógica de proteção das elites por meio do direito penal do inimigo, a que alude Günther Jakobs, que após a ditadura a classe média volta a conhecer pela atuação seletiva dos órgãos de segurança e pela violenta repressão policial às manifestações sociais, já começa a dar sinais de cansaço, uma vez que não mais haverá polícia, ministério público ou magistratura que sejam suficientes para coibir os efeitos danosos de tamanha desagregação social, uma vez que no Brasil, há uma parcela significativa da população para quem a democracia, que a Constituição de 1988 trouxe aos setores médios, ainda não chegou.
São segmentos populacionais numericamente relevantes que ocupam as periferias das grandes cidades e que só conhecem o Estado pelas balas e cassetetes da polícia. Contudo, se não levarmos os direitos fundamentais a todos os cantos, não existirão recursos para financiar o aparato policial necessário para conter as hordas urbanas desorganizadas cuja ponta do iceberg já começou a aparecer nas manifestações de junho de 2013 contra o aumento das passagens de ônibus, nos protestos com o fechamento de ruas e rodovias pelo assassinato da população negra e pobre pelo Estado, e pelas chacinas decorrentes de rebeliões em presídios cuja habitabilidade são igualáveis às masmorras medievais, reproduzindo fenômenos que, com as peculiaridades de cada lugar, ocorrem por todo o mundo. Tal descontrole institucional, decorrente das políticas de austeridade seletiva e da inadimplência das prestações públicas, que teriam como função impedir o aumento da desigualdade, não deixará qualquer oásis imune à violência que acompanha a agitação desorganizada dos excluídos da globalização.
Em nosso país, vivemos um ambiente em que as políticas distributivas são traumaticamente substituídas pela austeridade seletiva em meio a uma crise econômica e política decorrente de um processo de impeachment de discutível legitimidade, tudo em nome da doutrina do choque, que aqui ganha vida com a alegoria da falência do Estado, a viabilizar a implementação de políticas de rent seeking em que setores financeiros alargam suas fatias do orçamento, em detrimento da maioria da população cujo presente e futuro dependem de prestações sociais do Estado.
Com isso, o Brasil vai na contramão dos ventos de mudança advindos dos efeitos da crise econômica mundial de 2008, que questionam o domínio do mercado financeiro sobre os interesses de toda sociedade. Nesses incipientes movimentos de resistência à austeridade seletiva a serviço da financialização da economia, é alvissareira a vitória eleitoral, na Grécia, do Syriza e da sua política antiausteridade e pelo enfrentamento da lógica de mercado imposta pela Europa alemã, já denunciada em 2012 por Ulrich Beck, capaz de destroçar todos os governos nacionais diante a impopularidade das suas medidas contra a crise europeia. Aliado a isso, e em consequência do efeito dominó antiausteridade, o crescimento do Podemos na Espanha já ameaça promover uma verdadeira primavera europeia contra o domínio da lógica dos rentistas sobre a política, colocando na ordem do dia, em alguma medida, propostas de maior igualdade no sistema tributário.
Portanto, em nosso país, é preciso ousar para fazer com que a Constituição Cidadã chegue à vida e à mesa de todos os brasileiros, o que não só é o desafio dessas primeiras décadas do século XXI, mas pressuposto para o próprio desenvolvimento econômico e social do Brasil, pois não há investimentos sem paz social e não há paz social sem o atendimento das necessidades básicas da população mais pobre, que, por sua vez, não se viabiliza sem um sistema tributário mais justo.
Diante de todo o exposto, é preciso que as pessoas cuja vida não depende de prestações positivas do Estado tenham mais empatia e compreendam o momento histórico pelo qual estamos passando para entender o quanto é fundamental para toda a sociedade as lutas que os movimentos sociais travam para a preservação do Estado Social no Brasil. É como diz um cartaz segurado por uma moça em algum país de língua espanhola, cuja foto viralizou recentemente nas mídias sociais: “Lamento que mi protesta colapse tu tránsito, pero tu indiferencia colapsa mi país.”