Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)
Embora a Constituição Federal não preveja a tributação do ICMS sobre a extração de recursos naturais, e tampouco a LC nº 87/96 a estabeleça, o Estado do Rio de Janeiro, maior produtor nacional de petróleo, vem buscando exercer essa exigência em relação ao referido hidrocarboneto, com fundamento na ideia de que estaríamos diante de uma circulação de mercadoria ocorrida com a transferência de domínio desse bem da União, proprietária da jazida, e o concessionário que o extrai do solo ou leito marinho. A primeira tentativa de tributação da extração dos hidrocarbonetos se deu pela Lei Noel, Lei nº 4.117/03, que instituíra o ICMS sobre a extração de petróleo, em medida legislativa que gerou à época bastante crítica no mercado e na doutrina, o que desaguou na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.019, ainda pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em virtude de todas as controvérsias sobre a matéria, e da gravidade da lesão que a medida gerava ao setor de petróleo no Estado do Rio de Janeiro, a Lei Noel teve a sua regulamentação, que havia sido levada a efeito pelo Decreto nº 34.761/04, suspensa pelo Decreto nº 34.783/04, tornando a exigência, na prática, ineficaz.
Em meio à crise financeira que se abateu sobre o Estado do Rio de Janeiro, decorrente, dentre outros motivos, da queda do preço do petróleo no mercado internacional, nova tentativa dessa modalidade de tributação foi intentada pela Lei nº 7.183, de 29 de dezembro de 2015. Com a edição da nova norma, a Lei Noel é revogada e a exigência do ICMS sobre a extração de petróleo passa a se dar em relação a fatos geradores ocorrido a partir de 90 dias após a publicação da lei, em respeito à noventena constitucional prevista no artigo 150, III, c, CF.
Porém, a nova tentativa de tributar pelo ICMS na extração de petróleo, ou na “circulação” entre o ponto de medição e o estabelecimento da empresa exploradora, como denominou a nova lei fluminense, esbarra em velhos obstáculos há muito apontados pela doutrina e pela jurisprudência.
É que não havendo base autônoma, seja em sede constitucional ou em lei complementar, para fundamentar a tributação da extração de recursos naturais pelo ICMS, o Estado do Rio de Janeiro procura tributá-la como se fora circulação de mercadoria, com base na definição dada pela corrente doutrinária e jurisprudencial que exige a transmissão de domínio para a ocorrência do aludido fenômeno, considerando haver uma trasferência de propriedade entre a União, proprietária dos recursos naturais, inclusive os do subsolo, de acordo com o artigo 20, IX, da Constituição Federal, e a empresa produtora de petróleo, que passa a ser titular, no todo ou em parte, dos recursos extraídos do solo ou leito marinho, por meio de uma aquisição derivada.
A ementa da Lei nº 7.183/15, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu a incidência de ICMS na extração de petróleo, informa que o conteúdo da norma dispõe sobre as alíquotas do imposto aplicáveis às operações de circulação do aludido hidrocarboneto. Porém, na verdade, em relação aos aspectos quantitativos, o diploma não traz qualquer novidade, uma vez que o percentual de 18%, fixado no seu artigo 4º, é o padrão utilizado usualmente pelo Estado do Rio de Janeiro, a ser acrescido do adicional destinado ao Fundo de Combate à Pobreza. O que se tem, na verdade, é a volta da incidência do imposto sobre a extração de petróleo. Contudo, talvez para evitar as polêmicas que foram suscitadas por ocasião da edição da Lei Noel, o indigitado diploma legal não estabelece explicitamente a extração como fato gerador do imposto. Em seu lugar, o art. 1º da lei dispõe que o imposto incide sobre “a operação de circulação de petróleo desde os poços de sua extração para a empresa concessionária. ” Com isso, é reforçada a estratégia de utilização do permissivo constitucional da circulação de mercadorias para escapar da evidente ausência de previsão na Constituição e na LC nº 87/96 de autorização para a tributação da extração de recursos naturais.
Porém, tal desiderato é desmentido pelos próprios elementos da obrigação tributária veiculados pela indigitada norma, que, a despeito do artigo 1º associar a incidência à circulação do petróleo, revelam, a partir dos aspectos do fato gerador contidos nos demais dispositivos da lei, que não se está a tributar outra coisa que não a sua extração. É que a hipótese de incidência dos tributos não é composta apenas daquilo que vulgarmente se designa como fato gerador. Essa denominação quase coloquial, em geral, se refere ao aspecto objetivo ou material da obrigação tributária, que constitui o seu núcleo essencial. Embora seja este o seu aspecto mais importante, não há como se reconhecer o componente normativo da obrigação tributária sem a análise dos demais aspectos da hipótese de incidência. Afinal, são aspectos do fato gerador: o subjetivo, o objetivo, o espacial, o temporal e o quantitativo, como leciona Ruy Barbosa Nogueira.
Por isso, vale identificar os aspectos do fato gerador do tributo instituído pela Lei nº 7.183/15. Em seu artigo 2º, o aspecto objetivo se revela pela passagem do petróleo pelo ponto de medição da produção. De acordo com o parágrafo único do referido artigo, os pontos de medição de produção “são aqueles pontos definidos no plano de desenvolvimento de cada campo nos termos da legislação em vigor, onde se realiza a medição volumétrica do petróleo produzido nesse campo, expressa nas unidades métricas de volume adotadas pela ANP e referida à condição padrão de medição, e onde o concessionário, a cuja expensas ocorrer a extração, assume a propriedade do respectivo volume de produção fiscalizada, sujeitando-se ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais e contratuais correspondentes.” Ora, a medição nada mais é do que a exteriorização e a quantificação da extração de petróleo, já que a propriedade dos hidrocarbonetos já nasce para o concessionário ou contratado no momento desta. Logo, os aspectos objetivo e quantitativo do fato gerador unem umbilicalmente extração e medição como duas faces da mesma moeda. O mesmo fenômeno ocorre em relação aos demais aspectos da hipótese de incidência. Observa-se que em relação ao seu elemento espacial, o art. 6º da Lei elege como definidor do estabelecimento responsável pela incidência o do local em que ocorre a “medição após a extração”. Seu aspecto temporal também está associado à extração, na dicção do artigo 2º que estabelece a incidência “imediatamente após a extração do petróleo e quando a mercadoria passar pelos Pontos de Medição da Produção” conferindo identidade aos dois eventos praticamente contemporâneos no plano fenomênico. Em relação ao elemento subjetivo, a norma é ainda mais explícita em seu artigo 5º, identificando o extrator como contribuinte do imposto, seja ou não concessionário direto, juntamente com o comerciante, industrial e produtor. Aliás, essa identificação plurilateral da sujeição passiva, de certa forma, se explica pela reunião das atividades desempenhadas por esses atores, que, na verdade, se reúnem geralmente em única empresa ou consórcio, no âmbito de uma mesma unidade produtiva na cadeia multifásica do ICMS.
Sendo todos os aspectos do fato gerador diretamente relacionados com o fenômeno da extração do petróleo, outra coisa não se está a tributar. Inócua é a tentativa da Lei nº 7.183/15 de simular uma operação de circulação de modo a “camuflar” a ocorrência do fato gerador da extração como fora previsto na Lei Noel, sob a roupagem da passagem pelo ponto de medição, a fim de conferir ao intérprete a ilusão de estar diante da dinâmica circulatória. A inocuidade da estratégia decorre da identidade entre os dois eventos conferida pela ordem jurídica, sendo esta, como se viu, a exteriorização material e quantitativa da primeira. De qualquer modo, seja a incidência rotulada pelo legislador de extração ou de circulação, é sabido que, como estabelece o artigo 4º, I, do Código Tributário Nacional, a denominação é irrelevante para determinação da natureza jurídica do tributo. O que não se pode deixar de reconhecer, independente das palavras legalmente adotadas de forma sacerdotal, é a intenção legislativa de estabelecer artificialmente um elo da cadeia que antecede a circulação de mercadoria ao arrepio das normas constitucionais.
E essa contrariedade ao Texto Maior se revela por duas razões:a) as reservas naturais antes da extração não podem ser consideradas como mercadorias; b) não há operação de circulação tributariamente relevante seja na extração, seja na movimentação do petróleo da plataforma até o estabelecimento produtor.
Na verdade, os recursos naturais que serão produto da lavra, antes de ser efetivada a extração, por não guardarem autonomia em relação à jazida, não são comercializáveis, não podendo, em consequência, ser considerados como mercadorias a fim de justificar a existência de um primeiro elo na cadeia multifásica sobre a qual incide o ICMS. Logo, por ocasião da extração, ainda não há mercadoria cuja circulação se possa cogitar.
Ademais, a separação do hidrocarboneto das formações rochosas que compõem a jazida é etapa anterior ao início do ciclo de circulação econômica que é tributado pelo imposto estadual, até porque o petróleo, neste momento, sequer é comercializável, pois carece de uma série de tratamentos antes de ser alocado na cadeia mercantil. Antes do surgimento da mercadoria no mundo econômico e jurídico, não há que se falar em incidência do ICMS, visto que esta depende, precipuamente, de uma operação que impulsione o bem a outra unidade produtiva da cadeia econômica em direção ao consumo, ou diretamente ao consumidor final. Antes disso, é mero produto. A produção de bem é circunstância que antecede à sua inserção em circulação, sendo atividade que se destina ao próprio contribuinte e não a outro elo da cadeia plurifásica, sendo insuficiente para o nascimento da obrigação tributária, seja no ICMS, seja no IPI, pois em ambos, o núcleo do fato gerador está associado à circulação do produto de uma unidade da cadeia produtiva para outra.
Em outro giro, é importante considerar que as atividades de extração, movimentação do petróleo em direção ao estabelecimento produtor e a sua comercialização estão inseridas em uma mesma unidade produtiva, não havendo, para fins da incidência do ICMS, que se falar em operação de circulação que separe as três fases, uma vez que o produto só é posto na cadeia mercantil após o exaurimento da segunda atividade. Em relação à incidência do ICMS, só a terceira fase é relevante, sendo as duas primeiras meras condutas preparatórias, embora indispensáveis, ao desenvolvimento da última.
Diante desses argumentos, exsurge cristalina a conclusão de que a extração de petróleo e gás não constitui operação de circulação de mercadoria, sendo atividade que antecede o início da cadeia onerada pelo ICMS. Na verdade, a tentativa de o legislador estadual criar artificialmente uma etapa da cadeia que antecede a colocação do petróleo em circulação, tem como objetivo driblar a imunidade nas operações interestaduais sobre esses produtos, como será examinado no subtópico seguinte.
Por outro lado, mesmo adotando-se a tese de que a circulação de mercadorias se reduz à transmissão de domínio, independentemente de circulação econômica, o que só se admite para fins de argumentação, não há que se cogitar na incidência do ICMS nos casos em que a propriedade não é adquirida em razão de um negócio jurídico entre o adquirente e o alienante, mas de forma originária, como ocorre na extração de petróleo.
Em outro giro, vimos que o objetivo da legislação fluminense em criar artificialmente uma operação antes da alocação dos hidrocarbonetos no mercado é minorar as perdas que o Estado do Rio de Janeiro acumula em razão da imunidade das operações interestaduais com petróleo, estabelecida pelo artigo 155, §2º, X, b, da Constituição Federal, que atribuiu a cobrança do imposto ao Estado de destino, onde está localizado o consumidor.
A regra do artigo 155, § 2º, X, b, CF, que estabelece a não incidência do ICMS sobre “as operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica”, criou uma imunidade para as operações que destinem as mercadorias nele mencionadas para outro Estado da Federação.
A imunidade em questão, estabelecida pela primeira vez na Constituição Federal de 1988, é dispositivo muito polêmico que, longe de representar um direito fundamental destinado ao alívio ao consumidor de combustível e energia elétrica, tem como objetivo subverter a regra geral de que o ICMS é tributado no Estado de origem, beneficiando os Estados consumidores desses recursos estratégicos. Embora seja bastante questionado pelos Estados produtores, o dispositivo se insere na repartição constitucional de receitas tributárias entre os entes da Federação fixada pelo constituinte originário, não cabendo questionamentos quanto à sua constitucionalidade, uma vez que não existem normas constitucionais inconstitucionais no Brasil, como reconheceu o STF no RE nº 198.088/SP, em julgamento que afastou as alegações do Estado do Rio de Janeiro que arguiram a ilegitimidade do dispositivo em comento em razão da sua contrariedade com o pacto federativo.
Diante da confirmação da validade da imunidade das operações interestaduais de petróleo pelo STF, não é possível o seu afastamento pela vontade do legislador estadual, a partir da criação de uma etapa anterior à operação interestadual que destina o petróleo produzido no Rio de Janeiro para os outros Estados da Federação, sob pena de subverter por decisão do legislador ordinário uma opção adotada pelo constituinte originário.
Deste modo, por mais que possamos nos solidarizar com a indignação fluminense diante do casuísmo constitucional que subverteu a regra geral da cobrança do imposto na origem, é forçoso reconhecer que a Lei nº 7.183/15 não tem o poder de driblar uma decisão constitucional, ainda que não concordemos com o seu conteúdo. Por isso, só uma emenda constitucional teria o condão de promover a alteração da decisão de atribuir ao Estado de destino o ICMS incidente sobre o petróleo, sendo inócua a tentativa do legislador estadual de criar um elo artificial da cadeia produtiva antes da operação interestadual imune.
Por essa razão também é inconstitucional a incidência do ICMS na extração de petróleo.
Ademais, a tese que confere suporte à pretensão do Estado do Rio de Janeiro de tributar a extração do petróleo parte do pressuposto de que haveria uma transferência de domínio entre a União, proprietária das jazidas, e o concessionário que, por meio de uma aquisição derivada, adquiriria os hidrocarbonetos do ente federal, o que ensejaria a circulação de mercadorias, a partir da ideia de que esta se traduziria da transmissão da propriedade do bem. Porém, mesmo que esta tese estivesse correta, o que, como se viu, não procede, não haveria qualquer tributação na operação em função da imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, CF, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrarem tributos uns dos outros.
Não é demais lembrar que o fundamento da imunidade recíproca é o equilíbrio federativo, a partir da ideia de que, nas Federações, este é pressuposto da liberdade individual, como destaca Ricardo Lobo Torres. Há autores, como Dino Jarach, que também que a fundamentam na ausência de capacidade contributiva do Estado, uma vez que todas as riquezas deste são extraídas da sociedade para o atendimento das necessidades públicas.
Em seu aspecto subjetivo, a imunidade recíproca é aplicada em relação aos impostos cujas condutas legalmente escolhidas como núcleo dos fatos geradores sejam praticadas pelas pessoas jurídicas de direito público. Ou seja, atos realizados pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas (§ 2º do art. 150, CF). No plano objetivo, a imunidade recíproca impede a tributação sobre patrimônio, renda e serviços uns dos outros. A utilização da expressão patrimônio, renda e serviços não tem o condão de limitar a imunidade aos impostos que diretamente incidem sobre o patrimônio, como o IPTU e ITR, a renda, o IR, e os serviços, ISS, uma vez que todos os impostos direta ou indiretamente incidem sobre o patrimônio, a renda e os serviços do Estado. A enumeração das três manifestações de riqueza não é restritiva. Ao contrário. Procura demonstrar que, ao contrário da sua origem em 1819 na Suprema Corte dos Estados Unidos, não se limita ao patrimônio público, englobando também as rendas e serviços, o que acaba por abarcar toda a receita pública. Deste modo, conforme decidiu STF, em relação à incidência do IOF sobre as aplicações financeiras dos Municípios, a imunidade recíproca aplica-se a todos os impostos, e não só aos que, segundo a classificação sobre bases econômicas do CTN, incidem diretamente sobre patrimônio, renda e serviços. Deste modo, em tese, aplica-se em relação ao ICMS.
Porém, a imunidade se relaciona com as finalidades estatais essenciais ou dela decorrentes nos termos do art. 150, § 2º, CF. Se a entidade imune abandona os seus objetivos institucionais para desempenhar a atividade econômica em regime em concorrência com as entidades de direito privado, deve ser tributada como se particular fosse, de acordo com a regra do art. 173, § 1º, II, CF. Dentro desta mesma ideia, o §3º do artigo 150, CF afasta a imunidade recíproca quando o patrimônio, a renda e serviços estiverem relacionados a atividades econômicas regidas por normas aplicáveis a empreendimentos privados.
Deste modo, há que se fazer uma distinção entre a atuação do Estado no desempenho da atividade econômica, como se particular fosse e, de outro lado, da manifestação do seu poder de império.
Quando o Estado exerce a atividade econômica, o que se dá excepcionalmente nos casos previstos em lei, deverá ter o tratamento tributário dispensado às empresas privadas. Aliás, como se viu acima, os próprios contornos constitucionais da imunidade recíproca excluem do seu campo o exercício de atividades econômicas regidas por normas aplicáveis aos empreendimentos privados.
Assim, por exemplo, a venda pela União, representada pela PPSA, do excedente em óleo, definido no artigo 2º, III da Lei nº 12.351/10, bem como da parcela de participação em jazida compartilhada, não goza da imunidade do artigo 150, VI, a, CF, sofrendo, portanto, a incidência do ICMS quando posta em circulação na cadeia econômica, por intermédio do agente comercializador, que o fará em nome do referido ente federativo, com a representação da empresa pública.
Porém, não se pode confundir o exercício do monopólio estatal, como o estabelecido em relação ao petróleo, com atividades econômicas do Estado exercidas em regime de economia privada. De acordo com o ordenamento jurídico vigente, a atuação da União como proprietária das jazidas de petróleo, e detentora do monopólio constitucional para a sua exploração (art. 177, CF) é regida pelo regime de direito público.
Diante dessas lições, fica fácil perceber que quando a União concede o direito de explorar as suas jazidas para os particulares, não está atuando como se particular fosse, haja ou não a aquisição derivada do produto da lavra. Não está submetida ao regime do Direito Privado. Não está concorrendo com as empresas privadas. Logo, aqui a imunidade é aplicada em sua plenitude, com a Constituição protegendo o patrimônio estatal nos termos do art. 150, VI, a, CF. Ao contrário do que se dá, como vimos, quando a União vai ao mercado vender o petróleo a que tem direito de acordo com a partilha de produção.
Assim, ainda que, por amor ao debate, houvesse uma transferência de domínio entre União e a concessionária por ocasião da extração do petróleo, e esta atividade, em tese, se inserisse no campo da norma de incidência do ICMS, não ocorreria o fato gerador pelo bloqueio da sua eficácia em relação ao caso concreto por força da aplicação da regra imunizante do art. 150, VI, a, CF. É que, ainda que a Lei nº 7.183/15 tenha escolhido como sujeito passivo a empresa produtora, e não a União, é esta que, de acordo com a tese estatal, estaria transferindo a propriedade do hidrocarboneto para aquela, sendo, portanto, imune à operação, pois se o dispositivo imunizante afasta a ocorrência do fato gerador, é inócuo o deslocamento da sujeição passiva para terceiro por substituição tributária, como implicitamente foi efetivado pelo artigo 5º da norma em estudo.
Por esse motivo também, sendo imune a suposta “circulação de mercadoria” entre a União e a concessionária, é inconstitucional da exigência do ICMS na extração de petróleo.
Porém, ainda que fosse válida a tese de que há incidência de ICMS na operação de transmissão de domínio entre a União, proprietária da jazida, e a concessionária, que promove a extração, o que só se admite para fins de argumentação, a exigência do tributo nos termos da Lei nº 7.183/15 também seria inconstitucional por ter a referida norma escolhido uma base de cálculo que não reflete o valor da “operação” que se pretende tributar.
É que o indigitado diploma legal, em seu art. 3º, estabelece que a base de cálculo do imposto por ele instituído é o preço de referência, assim de entendido como a média ponderada dos seus preços de venda praticados pelo concessionário, em condições normais de mercado, ou o seu preço mínimo estabelecido pela ANP, o que for maior.
Observe-se que, em qualquer das duas opções adotadas pelo legislador, o preço médio de mercado ou o preço mínimo fixado pela ANP, o valor de referência não expressa o elemento quantitativo da hipótese de incidência da operação que se pretende tributar, mas da operação subsequente de transferência do petróleo pela concessionária a outro agente de mercado.
Ora, se a Lei nº 7.183/15 estabelece a tributação da operação anterior a da colocação do bem no mercado pela concessionária, não poderia utilizar a base de cálculo desta segunda operação.
Na verdade, a base de cálculo é, na definição Ruy Barbosa Nogueira, uma das dimensões do aspecto quantitativo, juntamente com a alíquota. Deriva daí a indiscutível a necessidade de compatibilidade entre o fato gerador e a base de cálculo como a sua expressão numérica, como define Aires Barreto.
Da necessária harmonização entre o fato gerador e a base de cálculo, nasce a impossibilidade de que essa segunda desnature o primeiro, o que comprometeria a legitimidade do tributo, como salientou Amílcar de Araújo Falcão. Como se vê, sendo a base de cálculo a expressão numérica do fato gerador, não pode discrepar do núcleo deste sob pena de restar violada a regra de competência definida constitucionalmente, uma vez que a Constituição Federal de 1988, a exemplo das anteriores, já se utiliza das materialidades econômicas que serão definidas pelas leis como fatos geradores e bases de cálculo dos impostos como moldura da regra de competência atribuída aos entes legiferantes.
No caso do ICMS, a Constituição Federal admite, como vimos, que os Estados tributem as operações de circulação de mercadorias praticadas por cada um dos estabelecimentos que realizem tais condutas. E esse critério foi reconhecido expressamente pela Lei Complementar nº 87/96, que é a norma nacional reguladora do tributo. Não há dúvida de que a definição de base de cálculo do ICMS pela referida norma não poderia seguir outra trilha. Deste modo, o art. 13, I, da LC nº 87/96 estabelece que a base de cálculo na circulação de mercadoria é o valor da operação. E não da operação subsequente, como adotado pela Lei nº 7.183/15.
Deste modo, por adotar base de cálculo fictícia, que não se relaciona em qualquer medida com a operação de circulação de mercadoria que teria sido praticada pelo estabelecimento produtor, a regra do art. 3º da Lei nº 7.183/15 acaba por discrepar do fato gerador do imposto, desatendendo ao princípio da capacidade contributiva e à regra constitucional de competência do imposto, além de violar a reserva de lei complementar para definir a base de cálculo do ICMS (art. 146, III, a, e art. 155, §2º, XII, i, CF).
Viola a capacidade contributiva, consagrada pelo art. 145, §1º, CF, por tributar algo pelo valor maior do que ele possui, onerando o contribuinte em patamar acima da manifestação de riqueza revelada pelo fato gerador. A regra constitucional de competência tributária do art. 155, II, também é confrontada, uma vez que exigir tributo calculado sobre um valor superior ao da mercadoria, enseja a tributação de algo que não se traduz na sua circulação, signo revelado pela materialidade econômica escolhida pelo constituinte para limitar a referida regra constitucional atribuidora de competência. A reserva de lei complementar também é desrespeitada pelo art. 3º da Lei nº 1.783/15, por ter adotado uma base de cálculo distinta da prevista no art. 13, I, da LC nº 87/96.
Nem se alegue que não seria possível quantificar economicamente a operação de extração para fins de definição da base de cálculo do tributo sobre ela incidente, pois são de todos conhecidos os valores que a concessionária deve pagar à União, de acordo com os percentuais definidos nos leilões de blocos, que, em tese, poderiam servir de elemento quantitativo da exação. Mas preferiu o legislador estadual utilizar a base de cálculo da operação subsequente. Vale destacar que entre os dois momentos, extração e venda do petróleo pela concessionária, uma série de insumos e cuidados são agregados do produto, o que altera sobremaneira o aspecto quantitativo das duas operações.
Diante de todo o exposto, exsurge uma clara divergência entre a base de cálculo definida em lei complementar na operação que supostamente seria qualificada como sendo de circulação de mercadoria, prevista no art. 13, I, da LC nº 87/96, e aquela eleita pelo legislador estadual no art. 3º da Lei nº 7.183/15. Além disso, esta última norma prevista na lei ordinária, ao adotar base de cálculo que não mensura a conduta descrita no fato gerador, mas aquela verificada em outra operação, promove um divórcio entre os dois elementos mais essenciais da obrigação tributária, levando à inconstitucionalidade da exigência.
Deste modo, ainda que, por absurdo, se considerasse legítima a incidência do ICMS na extração de petróleo, a utilização de base de cálculo que não espelha quantitativamente essa conduta, mas aquela descrita em etapa subsequente da cadeia, torna a exigência da Lei nº 7.183/15 inconstitucional.