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As novas tecnologias e o Direito Administrativo Global

ANO 2016 NUM 129
Rafael Véras (RJ)
Professor da FGV Direito Rio. Coordenador dos Módulos de Concessões e de Infraestrutura da Pós-Graduação da FGV Direito Rio. Mestre em Direito da Regulação pela FGV. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-RJ.


02/04/2016 | 7187 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

O Direito Administrativo vem sofrendo mais um abalo nas suas estruturas dogmáticas tradicionais. Depois de ter sido objeto de diversas releituras a propósito dos seus tradicionais postulados balizadores (v.g. os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público), notadamente pelos influxos da chamada “Virada Constitucional” trazida pelas Constituições Democráticas – editadas, sobretudo, nos pós-guerras – dois fenômenos vêm causando rupturas, ou, no mínimo, a necessidade da revisitação dos ensinamentos doutrinários que nortearam a sua construção epistemológica: a globalização e as novas tecnologias. Mas, frise-se: não se está, aqui, apregoando “desconstruções”, “evoluções”, ou o surgimento de “novas teorias” revolucionárias, nem, tampouco, tem-se a pretensão de, por meio de um artigo de opinião, questionar o importante papel da doutrina para o Direito Administrativo. O objetivo deste breve ensaio é o de apontar alguns efeitos desses fenômenos sobre as suas principais características.

Pois bem. É possível apontar-se como principal característica do Direito Administrativo a detença de prerrogativas pelo Poder Público, seja em razão do exercício do poder extroverso para disciplinar condutas (polícia), seja por ele se valer de um regime jurídico de Direito Público (relacionado à noção de serviço público), cada qual sendo predominante, a depender de se tratar de sistemas jurídicos de origem Anglo-saxã ou Romanística. Já na Idade Média, por exemplo, a atuação de polícia se justificava para a manutenção da ordem e da tranquilidade das comunas civilizatórias, tendo origem nos regulamentos do Código Geral Prussiano, de 1794, sendo, até os dias atuais, o mote da regulação das atividades privadas de interesse público estadunidenses (public utilities). Na França Revolucionária, a Escola do Serviço Público de Bordeaux, em uma de suas vertentes, Gastón Jèze (Princípios generales del derecho administrativo. T. II. 6 v. Trad. Julio N. San Millan Almargo. Buenos Aires: Depalma, 1948) à frente, defendia o entendimento segundo o qual o dever do Estado de prestar serviços públicos seria levado a efeito por meio de um regime administrativo (publicatio), o qual predicaria: (i) a existência de prerrogativas especiais em favor do Estado; (ii) a titularidade estatal; e (iii) a sua prestação em regime de exclusividade.

Como se pode perceber, seja no âmbito do Direito Administrativo decorrente da regulação exógena (normativa), seja no construído a partir da regulação endógena (contratual), as seguintes características sempre lhe foram mais salientes: (i) a titularidade estatal das atividades que veiculassem interesses públicos; (ii) o uso da coerção; e (iii) a existência de um regime jurídico único. Essas três características vêm sofrendo consideráveis influxos pelos fenômenos da globalização e do advento de novas tecnologias.

O fenômeno da globalização econômica – decorrente, em certa medida, das inovações tecnológicas dos meios de comunicação – resultou numa integração politico-estatal que passou a desconsiderar paradigmas decorrentes da unicidade normativa, pautada pela soberania (v.g. a constituição da União Europeia). Nesse quadrante, passa a ter lugar um Direito Administrativo que ultrapassa a base territorial dos Estados, aplicado não só por entidades que personificam Estados Soberanos, mas por organizações não estatais – como, por exemplo, pela International Standard Association (ISO) e pela Agência Mundial Anti-Doping (WADA).

Trata-se do que autores brasileiros mais descortinados, como Floriano de Azevedo Marques Neto (O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law, Brazilian administrative law: under the influence of common law and civil law. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 268, 2015), Diogo de Figueiredo Moreira Neto (O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law, Brazilian administrative law: under the influence of common law and civil law. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 268, 2015), Carlos Ari Sundfeld (SUNDFELD. Caros Ari. A Administração Púbica na Era do Direito Global. Disponível em;http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31987-37499-1-PB.pdf ), Patrícia Baptista e Leonardo Coelho (Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos. In: RIBEIRO, Marilda Rosado Sá. Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.), denominam de “Direito Administrativo Global”.  Sabino Cassese (Global administrative law: an introduction disponível em: http://www.iilj.org/oldbak/global_adlaw/documents/Cassesepaper.pdf), um dos precursores do tema, traz como exemplo desta nova faceta do Direito Administrativo a atividade exercida pela Commission for the Conservation of Southern Bluefin Tuna, entidade integrada pela Austrália, União Europeia, Entidade de pesca de Taiwan, Indonésia, Japão, República da Coreia, Nova Zelândia e África do Sul, que, com base na Convention for the Conservation of Southern Bluefin Tuna, edita regulações a propósito da pesca do Atum, utilizando-se, inclusive, do poder coercitivo, típico da Administração Pública. Outro exemplo emblemático deste Direito Administrativo Global é a regulação exercida pela Associação da Federação Internacional de Futebol – FIFA, entidade privada responsável pela disciplina do futebol, que submete 209 países às suas diretrizes normativas – elaboradas pela International Football Association Board (IFAB).

Desses exemplos, é possível extrair o surgimento de uma relação de poder que não decorre do Estado, que transcendente os seus limites territoriais, que pressupõe uma adesão dos particulares e uma normatização menos impositiva – pois que formada pela confluência da desígnios dentre antes públicos e privados –, características que vão de encontro ao tradicional regime de prerrogativas estatais consagrados pelo exercício da função de polícia e na prestação de serviços públicos.

O advento de novas tecnologias me parece seguir nesta mesma direção. Como já se teve a oportunidade de asseverar (Uber, Whatsapp, Netflix – Quando o mercado e a tecnologia desafiam a doutrina.  Disponível em: http://jota.uol.com.br/uber-whatsapp-netflix-quando-o-mercado-e-a-tecnologia-desafiam-a-doutrina), o surgimento de novos serviços decorrentes do advento de inovações tecnológicas, por meio, por exemplo, de plataformas como o Uber, o Netflix e o Whatsapp, desafiam as concepções de “titularidade estatal” e de “prestação de serviços públicos em regime de exclusividade”, arraigados à noção de publicatio, tão cara ao conceito de serviços público francês. Isto porque passam a forcejar o estabelecimento de um regime concorrencial assimétrico entre as atividades exploradas por esses agentes econômicos e prestadores de atividades reguladas como serviços públicos (v.g. Serviço de Telefonia Fixo Comutado – STFC e de Radiodifusão).  Nessa perspectiva, o advento de novas tecnologias – que traz, em si, um caráter anárquico, em razão da sua imprevisibilidade – fez como que o Federal Communications Comission  (o FCC) (https://transition.fcc.gov/Bureaus/OPP/working_papers/oppwp29.pdf), entidade reguladora das telecomunicações norte americana, ao apreciar a validade da prestação de serviços de comunicação via IP (VOIP), se manifestasse no sentido de que “porque não está vinculada aos ambientes regulatórios tradicionais, a Internet tem o potencial de modificar dramaticamente o cenário das telecomunicações. A Internet cria novas formas de competição, valiosos serviços para os usuários finais e benefícios para a economia. A abordagem governamental quanto à Internet deveria, portanto, partir de duas premissas: evitar regulação desnecessária e questionar a aplicabilidade das regras tradicionais” (tradução livre).

Malgrado os referidos exemplos sejam mais recentes, a própria regulação da internet, não tão novidadeira, já dava sinais de que as características tradicionais do Direito Administrativo não dariam conta de todas as suas especificidades. Primeiro, por se tratar de uma tecnologia que já fora concebida para ser transnacional, isto é, para interligar pessoas ao redor do mundo, em razão, dentre outros fatores, do fenômeno da globalização. Segundo, porque, embora se trate de um serviço que enreda uma inegável utilidade pública, a sua regulação nunca ficou presa à unicidade de um regime jurídico administrativo (publicatio); ao contrário, a partir da década de noventa, a sua regulação passou a ser exercida pela Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), entidade não estatal, de direito privado, sem fins lucrativos, que passou a disciplinar os aspectos técnicos desse serviço, por meio da autorregulação. No Brasil, não é diferente. Os serviços de internet, aqui qualificados como um serviço de valor adicionado (artigo 61 da Lei nº 9.472/1997), são regulados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGIbr, uma entidade despersonificada, integrada por entidades governamentais, por representantes do empresariado, da comunidade científica e do Terceiro Setor, que, voluntariamente, se submetem a uma normatização técnica e negociada.

Como se pode perceber, os fenômenos citados neste ensaio (a globalização e as inovações tecnológicas) obrigaram o Direito Administrativo a reinventar-se, aprendendo a lidar com novas relações de poder vindas de fora do Estado e transnacionais, mais técnicas e procedimentalizadas. Por consequência, essas relações passaram a relativizar dogmas doutrinários, como os de que “o exercício poder extroverso é privativo do Poder Público” e o de que “a prestação de serviços de utilidade predica a observância de um regime jurídico administrativo único e dotado de prerrogativas”. É que as normas coercitivas passaram a ser emanadas por entidades privadas, ou público-privadas, que disciplinam condutas para além dos limites territoriais impostos pela soberania estatal, sob uma dinâmica de adesão dos particulares (e não de imposição), consubstanciadas em regimes jurídicos mais variados possíveis (simétricos, assimétricos, cooperativos, integrativos). Eis os fatos e as suas repercussões jurídicas. Caberá à Doutrina jusadministrativista ser “disruptiva” em face desses novos desafios.    



Por Rafael Véras (RJ)

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