Rafael Véras (RJ)
A regulação tem por objetivo último o equilíbrio de subsistemas jurídicos. A justificativa dessa função estatal está no fato de que, atualmente, um sistema jurídico unitário seria incapaz de lidar com a complexidade e a velocidade com que a sociedade e a economia se desenvolvem. Diante disso, exige-se o advento de uma Administração Pública Pluricêntrica, que estabeleça esse equilíbrio, por meio de entidades especializadas, as quais, cada vez mais, devem levar aos subsistemas jurídicos soluções concretas, que considerem as suas particularidades.
Daí porque o manejo da função regulatória predica da existência de entidades especializadas, infensas às influências do mercado e do governo, que possam mediar os diversos interesses envolvidos, de forma que a sejam construídas soluções aderentes aos interesses em disputa, por meio de concessões recíprocas. Nessa perspectiva, a regulação produz decisões: (i) mais precisas, sob um viés de tecnicidade; (ii) menos contestáveis, já que o setor privado deve participar da sua formação; e (iii) prospectivas, na medida em que devem projetar suas consequências sistêmicas.
O bom regulador é o que pensa no futuro, e não no passado. Não é aquele que se subordina aos interesses do Governo, nem o regulador “amado”, ou “populista”, isto é, aquele que, por exemplo, faz a vontade dos usuários, independentemente das consequências de suas medidas. É, pois, o que media, por meio de um devido procedimento regulatório, todos os interesses envolvidos.
Diante dessas premissas, é possível indagar-se: Como vem sendo exercida a função reguladora no Brasil? E a resposta não poderia ser outra: de forma totalmente destorcida. Explico. É evidente que a intervenção regulatória do Estado – como, de resto, todas as intervenções estatais na economia – não é neutra. Ela favorece alguns, enquanto prejudica outros. Mas isso não significa dizer que ela não possa produzir efeitos colaterais e indesejados, ou, mais tecnicamente, externalidades negativas. Nessas hipóteses, estaremos diante efeitos que, por certo, não são ínsitos à regulação. Pelo contrário, subvertem uma das suas principais funções, que é a de equilibrar interesses sistêmicos. A regulação que tem essas consequências é a antítese da regulação, porque é despida de qualquer legitimidade – seja econômica, social, procedimental, ou comportamental. É que, se a regulação produz consequências sistêmicas indesejadas, ela não atua na correção de falhas de mercado, na redistribuição de benefícios sociais, nem para a alteração de comportamentos heuristicamente indesejados. Na verdade, ela cria uma nova distorção, que se configura como uma “falha regulatória”.
De acordo com Cass Sustein, em sua obra “after the rights revolution”, as “falhas da regulação” se configuram como desvios que comprometem a racionalidade do regulador, seja pela configuração de vícios na elaboração da norma, seja na sua implementação, seja, ainda, na estrutura institucional do regulador.
A regulação brasileira é prenhe desses vícios.
Para demostrar tal assertiva, me valerei de algumas das “falhas da regulação” apontadas pelo referido autor estadunidense e das suas respectivas incidências no Brasil.
No que tange aos vícios na elaboração de normativos, destaco, incialmente, a falha da regulação causada pela transferência da regulação para grupos de interesse, mais conhecida, entre nós, pela denominação de “Teoria da Captura”. Essa teoria, que teve em George Stigler um de seus principais expoentes, em poucas palavras, corresponde à edição de atos normativos em benefícios de interesses públicos ou privados autointeressados.
No Brasil, me arrisco a dizer que a falha mais grave de sua regulação está relecionado à captura do regulador pelo governo, e não pelo setor privado. Trata-se de falha de governo que, cunhada pela Teoria da Public Choice, aponta a necessidade de a escolha pública ser analisa por uma ótica econômica. Em outras palavras, deve-se equiparar o comportamento dos indivíduos na arena política com o adotado na seara econômica, de modo a que se possa perceber que o burocrata toma decisões em seu próprio interesse.
Essa realidade (de captura política) pode ser vislumbrada, por exemplo, pelos resultados alcançados na Tomada de Contas nº 012.693/2009-9, realizada pelo TCU, em 2009, a pedido do Congresso Nacional, sobre a “governança regulatória das agências de infraestrutura do Brasil”. Neste documento, ficou assentado que: (i) há uma sobreposição de competências entre agências reguladoras e órgãos políticos; (ii) tais entidades perderam a sua autonomia financeira, tendo em vista o contigenciamento de seus recursos pelo executivo central, o qual vem ocorrendo porque, embora as leis de criação dessas entidades prevejam a sua autonomia financeira, não existem mecanismos especiais que as diferenciem de outras unidades orçamentárias; (iii) tais entidades perderam a sua autonomia decisória, em razão da ausência de critérios objetivos para a substituição de seus dirigentes nos casos de vacâncias e de afastamentos, o que deveria ter sido disciplinado pelo regulamento de cada entidade.
A outra vicissitude da regulação que vem prejudicando o desempenho nas agências reguladoras brasileiras é a provocada por erros de diagnóstico e análises superficiais, que se materializa pela perda de sua capacidade institucional. Essa falha regulatória se relaciona com a denominada “Teoria das Capacidades Institucionais”, que tem lugar no texto Interpretation and Institutions, de Cass R. Sunstein e Adrian Vermeule. Em palavras diretas, essa teoria propõem que a verificação do local adequado para a tomada decisões predica de uma análise das situações estruturais internas de cada um dos agentes envolvidos, de modo a que se possa determinar as suas distintas limitações para interpretar o direito.
Sob esse viés, a situação das entidades reguladoras brasileiras é alarmante. Segundo levantamento realizado pelo Jornal Folha de São Paulo, em 23 de fevereiro de 2014, as agências reguladoras federais apresentam hoje um déficit de pessoal que chega a 44%, sendo que a pior situação é a da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).
Mas não é só. Essa mesma falha da regulação provocada por erros de diagnóstico e análises superficiais resulta na expedição da chamada “regulação de emergência”. São os casos em que regulador, instado a se manifestar por conta de eventos singulares – que dificilmente se repetirão – ou por fortes anseios populares momentâneos, edita normativos sem submetê-los a exames consequencialistas, que indiquem os seus possíveis efeitos negativos. O incêndio na Boate Kiss, no Rio Grande do Sul, no início de 2013, foi emblemático neste sentido, como muito bem observado por José Vicente Santos de Mendonça. Por força deste evento, foram apresentados ao menos 3 Projetos de Lei da Câmara dos Deputados, prevendo normas de segurança e de funcionamento para as casas noturnas de todo o país, responsabilidades de seus proprietários, dentre outras obrigações, sem qualquer comprovação de que tais medidas seriam eficazes para evitar a ocorrência de tristes eventos como o ocorrido no sul do país. Não se questiona se normativos como estes são bons ou ruins. Mas fato é que são motivados por comoções populares e por eventos que tinham ocorrido recentemente, e não por juízos técnicos e motivados do regulador.
Por fim, destaco a falha da regulação provocada pela ausência de aferição dos efeitos sistêmicos e pela falta de antecipação das suas consequências. Esse vício tem lugar, porque o regulador, em diversas oportunidades, não avalia as consequências dos modelos regulatórios por ele instituídos, de modo que suas normas produzem efeitos sistêmicos, imprevistos e indesejados. Trata-se falha da regulação provocada pela ausência de um adequado procedimento de Análise de Impacto Regulatório – AIR, no qual sejam aferidos, ex ante, os custos e os benefícios de determinada proposta regulatória.
O advento da regulação do setor de E&P para a exploração do Pré-sal foi um exemplo emblemático disso. No Leilão de Libra, os privilégios regulatórios instituídos em favor das estatais Petrobrás e PPSA, nos consórcios formados no âmbito dos contratos de partilha de produção, resultou num certame que contou com, apenas, um interessado, o qual apresentou a proposta de repassar à União 41,65% do excedente em óleo extraído do campo, percentual mínimo fixado pelo governo no edital. Ou seja, não houve concorrência e o governo, certamente, não obteve a melhor proposta.
Todos os exemplos citados neste artigo militam em favor da conclusão de que o modelo regulatório brasileiro faliu. As premissas de estabilidade, equidistância, processualidade, participação do setor regulado, análises consequencialistas, que nortearam a sua construção, nos idos da década de noventa, não foram mantidas. A insegurança jurídica tomou conta dos setores regulados, o que afasta investimentos, em prejuízo do crescimento econômico do país. O chamado “compromisso regulatório” foi quebrado. E não tenho medo de dizer, que se ele não concertado, teremos de dar razão à Escola de Chicago: melhor não regular.