Rafael Véras (RJ)
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De uns dez anos para cá, virou rotina a utilização do procedimento licitatório para tutelar outros fins para além da seleção da melhor proposta para a Administração Pública. Quando uma novidade pega, não tem jeito. Ela se prolifera, rapidamente, ainda que as suas bases ainda não estejam tão sedimentadas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, tem-se notícia de que a licitação se prestou a fomentar a realização de diversas ações afirmativas, bem como a dar conta de necessidades emergenciais (como se deu na realização de contratações públicas decorrentes do Furacão Katrina). Assim também se passa no âmbito da União Europeia, que, por intermédio das Diretivas 2014/24/EU e 2014/25/UE, alçou o poder de compra estatal à condição de um importante indutor da economia, notadamente no que respeita às práticas ambientalmente sustentáveis. No Brasil, vários são os exemplos de políticas setoriais que vêm se utilizando da licitação (mais especificamente do poder de compra do Estado) para valores secundários às contratações, dentre os quais se destacam a proteção do meio ambiente, o tratamento diferenciado conferido às microempresas e às empresas de pequeno porte e o fomento ao desenvolvimento tecnológico no país.
Reconheço que qualificar o poder de compra estatal como uma forma de intervenção do Estado no Domínio Econômico é enxergar longe, ainda mais considerando que 15 a 20% do Produto Interno Bruto dos países é movimentado pelas compras públicas, como dá conta estudo elaborado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE. E, no Brasil, quem enxergou longe, pela primeira vez, foi o meu querido e saudoso mestre, Marcos Juruena Villela Souto. Outros estudos seminais desenvolveram ainda mais essa ideia, como os elaborados por autores da envergadura de Flavio Amaral Garcia, de Luciano Ferraz, dentre tantos outros administrativistas.
Neste momento, uma observação já se mostra necessária: não, eu não discordo que as licitações possam ter uma função regulatória. Muito ao contrário, tenho para mim que tanto a licitação, quanto os contratos administrativos são poderosos instrumentos, por intermédio dos quais o Estado pode corrigir falhas de mercado (notadamente as materializadas por ambientes não competitivos e as provocadas pela assimetria de informações entre as partes). Mais que isso, tais instrumentos, para além de se prestarem a corrigir tais vicissitudes, são vocacionados à implementação de políticas públicas. Isto por que, por intermédio de contratos de longo prazo (de que são exemplos as concessões e as parcerias público-privadas), é possível, por exemplo, veicular políticas públicas que ultrapassem mandatos políticos, como tão, brilhantemente, defendido por Egon Bockmann Moreira.
Nada obstante, após a sua utilização indiscriminada pela Administração Pública, tenho para mim que o tema é merecedor de uma segunda ordem de reflexões, especialmente quando a função regulatória da licitação passou a ser objeto de delações premiadas, no âmbito da Operação Lava Jato. Neste momento, alguns questionamentos a propósito deste tema se põem: a atribuição de uma função regulatória à licitação produz eficiência? Considerando que a sua utilização foi desvirtuada, nos últimos anos, para acobertar negociatas espúrias, a sua utilização vem sendo devidamente controlada?
Nas licitações para a concessão dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília, por exemplo, previu-se uma restrição horizontal, por intermédio da qual era interditada a contratação de um mesmo agente para operação de mais de um aeroporto. O fundamento foi o de que, no âmbito da concorrência pelo mercado, seria possível a instauração de uma concorrência no mercado de aeroportos. Tal restrição vingou, porém a deficiência de fundamentação levou o tema à apreciação do Tribunal de Contas da União. Assim também se passou no Setor Portuário, no qual se previu que o mesmo licitante não poderia arrendar dois terminais nas licitações realizadas para a exploração do Porto de Santos. Restrição que também gerou controvérsias até a sua disciplina pela ANTAQ. Do mesmo modo, no Setor de Telecomunicações, por ocasião da Licitação para outorga de uso de radiofrequência 3,5 GHz e 10, 5 GHz, vedou-se a apresentação de propostas de concessionárias de STFC para radiofrequências no âmbito de sua atuação, previsão que foi questionada perante o Poder Judiciário. Não vou entrar no mérito de cada qual, mas fato é que tais previsões careceram de uma adequada fundamentação, trazendo insegurança jurídica para aqueles projetos.
Mais que isso, tais previsões editalícias aumentaram os custos de transação, ex ante, desses contratos, já que os agentes econômicos que participaram desses certames tiveram de “precificar” os custos jurídicos para dar conta das controvérsias que envolveram tais restrições. Afinal, como é de trivial sabença, riscos são monetizáveis e provisionados. Há um custo para a insegurança jurídica. De fato, a função regulatória da licitação traz um custo adicional para os projetos de infraestrutura, que não vem sendo considerado. Primeiro, por que tais previsões podem, ao reduzir o número de participantes de leilões, ter um viés de redução do value for Money, que exsurgiria da livre interação concorrencial entre os agentes de mercado. Segundo, por que os custos dos procedimentos para a adoção desses objetivos secundários pode repercutir nos preços praticados pelos licitantes e, na ponta, na tarifa paga pelos usuários dos serviços que serão concedidos. E, terceiro porque, na execução desses ajustes, os custos do monitoramento de tais objetivos secundários podem aumentar, significativamente, os custos para o Poder Concedente.
Como diriam os economistas, “não existe almoço grátis”. Alguém paga pela utilização da função regulatória das licitações. E esse preço pode ser bem alto. Para além de tais restrições terem o potencial de gerar questionamentos internos, não se pode desconsiderar os seus impactos externos, sobretudo as de cunho nacionalista. É que a fixação de margens de preferência, por parte de Estados, pode fomentar o surgimento de políticas beggar-thy-neighbour, por meio das quais o Brasil pode sofrer retaliações de outros países, com base em previsões supranacionais, consagradas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e no Acordo sobre Mercados Públicos (AMP). E a consequência é inevitável: as retaliações de outros países afastam investidores. Sem investimentos, não há infraestrutura.
Daí a razão pela qual tais restrições, embora possam servir a tutelar valores relevantes, alheios às contratações públicas, não prescindem da devida motivação e de uma análise dos seus impactos, seja ao interno da contratação pública, seja para além das nossas fronteiras. Do contrário, essa regulação, ao invés de corrigir uma falha de mercado, criará uma falha de governo (ou Falha Regulatória). Valendo-me de uma expressão de Cass Sustein, um badalado autor de regulação da atualidade, um “paradoxo da função regulatória das licitações”.
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