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Parcerias sociais com organizações religiosas: limites e possibilidades

ANO 2016 NUM 308
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


06/12/2016 | 24007 pessoas já leram esta coluna. | 14 usuário(s) ON-line nesta página

Como fenômeno contemporâneo, as chamadas parcerias sociais celebradas pelo Poder Público com as entidades privadas sem fins econômicos têm ganhado remarcado destaque em matéria de execução de políticas públicas de caráter prestacional. A partir de vínculos de colaboração com a Administração, a sociedade civil organizada, por meio de fomento estatal, assume crescente papel de protagonista na oferta de bens e serviços de relevante interesse coletivo.

Com a edição da Lei federal nº 13.019/14, cognominada de “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC)”, sistematizados foram os mecanismos para que as relações de cooperação com as entidades privadas sem fins econômicos possam ter lugar. Como lei geral, de caráter nacional, o MROSC constitui, na atualidade, o principal arcabouço jurídico para a formação de genéricos vínculos de parceria das Administrações Públicas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no que se incluem as entidades da Administração Indireta [art. 2º, II, Lei federal nº 13.019/14]) com o Terceiro Setor.

No elenco das entidades que, caracterizadas como organizações da sociedade civil, encontram-se aptas a celebrar parcerias com o Poder Público, a Lei federal nº 13.019/14 faz expressa referência às organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos (art. 2º, I, “c”). Autonomizadas no art. 44, IV, do Código Civil, por força de acréscimo levado a efeito pela Lei federal nº 10.825/03, as organizações religiosas, como pessoas jurídicas de direito privado, não possuindo finalidade econômica, podem ser de base associativa ou patrimonial (fundacional). A propósito, ao enumerar as atividades finalísticas que podem ser assumidas por fundações, o Código Civil expressamente contemplou as “atividades religiosas” (art. 62, parágrafo único, IX), ao lado da assistência social, cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico, educação, saúde, promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, dentre outras.

A rigor, portanto, despicienda é a previsão contida no MROSC, quando reconhece as organizações religiosas como potenciais parceiras da Administração Pública. É que, como pessoa jurídica de direito privado que age sem ânimo de lucro, as entidades religiosas, sob a forma de associação ou fundação, sem a necessidade de qualquer título jurídico especial, já se encontrariam, à partida, aptas à formação de vínculos de colaboração com o Poder Público. Contudo, o reforço do legislador nacional, a fim de assegurar que entidades religiosas assumam o status de parceiras privadas da Administração, deve-se, talvez, ao fato de não ser tão uniforme o entendimento de que tais entidades possam ser destinatárias de fomento público. Aliás, corrobora tal assertiva o fato de a Lei federal nº 9.790/99 (a lei das OSCIPs), a partir de uma legítima escolha política, ter afastado da celebração de termos de parceria, porque impedidas de obter a qualificação jurídica de “organização da sociedade civil de interesse público” (OSCIP), as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais (art. 2º, III, Lei federal nº 9.790/99). Sendo, embora, lei federal apenas aplicável à União, o fato é que, a exemplo do que se passou em matéria de organizações sociais (OSs), os demais entes subnacionais, ao editarem as suas próprias legislações de regência, acabaram, relativamente àquele específico ajuste de parceria, por reproduzir aquela vedação contida na homóloga federal.

Seja como for, se entidades religiosas, ao menos no plano federal, não podem obter o título jurídico de OSCIP e, por conseguinte, interditadas se encontram à celebração de termos de parceria, impedidas não estão, porém, de firmar outros ajustes de cooperação com o Poder Público, desde que, na ressalva feita pelo MROSC, se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social (art. 2º, I, “c”, Lei federal nº 13.019/14). Contraditoriamente, vale anotar, a mesma Lei federal nº 13.019/14, no art. 33, § 2º, dispensa as organizações religiosas de, para a celebração das parcerias de que cuida, disporem de normas internas (v.g.: estatuto) acerca de objetivos voltados à promoção de atividades e finalidades de relevância pública e social.

Por outras palavras, se é certo que as entidades ou organizações de cunho religioso, por essência, devotam-se à disseminação de certos credos e cultos, e a não ser que o seu espectro de atuação restrinja-se a tais incumbências, impedidas não se encontram elas de celebrar parcerias sociais.

E aqui, portanto, reside, a mais importante nota distintiva: o fato de o Estado brasileiro ser laico, sendo-lhe proibido estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, na esteira do mandamento contido no art. 19, I, da Constituição Federal, não obsta, conforme parte final do mesmo preceptivo constitucional, a colaboração de interesse público junto a tais pessoas coletivas. Ou seja, as entidades do Terceiro Setor, nelas incluídas as organizações religiosas, consubstanciam a face mais impressiva da gestão associada para a prestação de serviços de relevância pública aos cidadãos, por meio da atuação sinergética do Poder Público e do setor privado filantrópico na execução de políticas públicas.

Assim, embora laico seja o Estado, ante o que deve assumir posição de neutralidade em relação às convicções religiosas e espirituais, é-lhe dado, porém, celebrar ajuste de natureza convenial com entidades de natureza religiosa, desde que – e isso é importante destacar – a pretensa parceria busque atingir finalidade de interesse público. Nesse sentido, parcerias com organizações religiosas para o atendimento de missões coletivas e proteção de valores supraindividuais, tal como a oferta de cuidados em saúde, a execução de atividades educacionais, assistência social, cultural, desportiva e por aí afora, podem ser validamente celebradas, porque, vale repetir, em causa projetos ou atividades de matriz social, relevância alguma ostentando, de per se, a natureza da pessoa jurídica que, nessa relação horizontal, em um dos polos se encontra.

Por esse modo, entidades religiosas, em sede de termo de fomento ou termo de colaboração, dois dos novos instrumentos previstos pelo MROSC e nos quais há transferência de recursos financeiros (art. 2º, VII e VIII, Lei federal nº 13.019/14), podem, validamente, receber recursos públicos para a execução de tarefas de relevância pública, vez que, como dito, o aspecto meramente subjetivo, relativamente à natureza do sujeito envolvido, não é apto para, isoladamente, interditar regimes de colaboração. Imprescindível, contudo, é que a atividade fomentada no bojo de um ajuste de parceria não ostente natureza confessional, eclesiástica ou devocional. Ou seja, se, por um lado, admitidas são as parcerias para que determinada entidade religiosa oferte bens e serviços de saúde, execute atividades culturais, de assistência social ou de caráter educacional, apenas para referir alguns exemplos, de outro, rechaçadas são, e devem ser mesmo, aquelas ditas “parcerias” cuja finalidade seja a de promover encontros religiosos de “louvor e adoração” ou que tenham por objeto a construção de salas de catequese, reformas de templos, a construção de torres de sinos e outras situações congêneres que a experiência profissional já permitiu identificar, já que, em casos tais, evidencia-se a prevalência de meros interesses relativos a uma determinada crença religiosa, pelo que o auxílio financeiro, descabida a ideia de religião de Estado, não pode, à evidência, ter lugar.

Assim, havendo em causa a execução de tarefas sociais de caráter prestacional, o fomento público, por meio de ajuste de parceria, pode ser validamente conferido a entidade religiosa, devendo o instrumento identificar o objeto pactuado, as obrigações das partes, as metas a serem atingidas, etapas ou fases de execução, com detalhamento acerca do trabalho a ser executado e público alvo, plano de aplicação dos recursos financeiros, cronograma de desembolso etc.

E, além disso, é condição inafastável que o desempenho de atividade de relevante interesse coletivo por parte da organização religiosa seja de acesso universal a qualquer cidadão-usuário que o pretender, não sendo toleradas quaisquer discriminações baseadas em raça, gênero, cor, idade, estado civil, credo, orientação religiosa ou quaisquer outras formas de discriminação, pela singela razão de, na base dessa relação jurídico-administrativa, encontrarem-se recursos financeiros de origem pública, a sublinhar que o mesmo regime de oferta de comodidades materiais fruíveis pelos cidadãos e aplicável ao Poder Público, que, na execução direta, não pode fazer qualquer distinção, deve ser seguido pela entidade privada – organização religiosa ou não – destinatária de fomento público.

Veja-se, a título de ilustração, o caso das escolas confessionais. Embora ligadas a determinada igreja ou organização religiosa, podem, na forma do art. 213, caput, da Constituição Federal, receber verbas públicas, de modo tal que o influxo de princípios reitores da educação pública ofertada em estabelecimentos oficiais de ensino deve também orientar a execução da atividade educacional por parte de organizações religiosas parceiras. É dizer, deve haver liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF), com preservação do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III), garantida a gratuidade do ensino (art. 206, IV) etc. E, mais que tudo: a atividade educacional, nesse exemplo ilustrativo, deve ser laica, secular, de tolerância, de pluralidade, de busca das mais amplas liberdades, de coesão social, de solidariedade.

Enfim, se, como anota o historiador pop do momento, Leandro Karnal (Pecar e Perdoar: Deus e o homem na sua história, 2 ed. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2015, p. 182-183), “(...) um católico está ajoelhado e reza, um judeu fica de pé e reza, um islâmico coloca-se no chão para rezar, um evangélico prefere o verbo orar, alguns judeus religiosos dançam quando entra a Torá na sinagoga, um grupo de fiéis bate as mãos na cabeça, outro no peito, havendo quem balance o corpo de forma ritmada e outros que, por sua vez, assumam total imobilidade (...)”, nada disso, em se tratando de parcerias sociais para a execução de tarefas de relevância pública e interesse social, deve ser levado em conta em ajustes de colaboração com organizações religiosas, uma vez que o princípio da laicidade do Estado impõe juízos de ordem objetiva, não transcendentais, no trato da coisa pública.

De parte a parte, seja sob a perspectiva do público ou do privado, se os partícipes – sujeitos que corporificam os parceiros público e privado – acreditam ou não em Deus (são ateus!), se eles não imaginam que se possa negar ou afirmar a existência de divindades (são agnósticos!) ou se ambos praticam o politeísmo, enfim, o caráter confessional, eclesiástico ou devocional dos agentes é algo que, em se tratando de parcerias público-privadas em sentido lato, não assume qualquer relevância, desde que em causa a execução de atividades de destacado interesse público e de cunho social, com a esperada suspensão de crenças, ao menos provisoriamente, para que a colaboração ostente apenas as cores e as virtudes do mais reverente interesse público e orientada pela mais legítima não confessionalidade do Estado.



Por Rafael Arruda (GO)

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