Rafael Arruda (GO)
Com a recente edição da Lei federal nº 13.874, fruto de conversão da Medida Provisória nº 881/19, a União institui a chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, verdadeira norma geral de direito econômico, conforme enuncia o § 4º de seu art. 1º.
Ora, faz sentido a edição de lei com tal conteúdo num sistema político e econômico, como o brasileiro, em que, fundante regime capitalista e de economia de mercado, é privada a propriedade dos principais meios de produção? A resposta é afirmativa. E por quê? Dada a existência, em Estado de economia capitalista, de um importante – e interventivo – setor público, responsável por uma ordem menos espontânea e mais regulada.
Daí, portanto, uma premissa fundamental: interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas (art. 1º, § 2º). Trocando em miúdos: se é para interferir, que seja de maneira respeitosa e não danosa.
Sob o ponto de vista da ciência econômica, o Estado, por diversas razões, intervém na economia. E assim o faz para, dentre outras coisas, a) promover a eficiência comprometida por falhas de mercado, como as referentes às imperfeições concorrenciais e aos abusos de poder econômico, ou às assimetrias ou insuficiências de informação; b) suprir a disparidade entre a eficiência e bem-estar social, causada por externalidades, sejam as negativas sejam as positivas, quando a existência de elevados custos de transação impede a solução privada; c) para afastar a injustiça das preferências dos consumidores ou das regras distributivas, que podem conduzir, por um lado, à subprodução de bens de mérito ou à sobreprodução de males de mérito (ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia, Vol. II, 2 ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 1019).
Ora, se parece indispensável a presença do Estado na Economia, sendo a regulação um dos mecanismos por meio dos quais nela ele atua, o grande desafio consiste exatamente em calibrar essa bem visível mão, dada a falácia de um propagado virtuosismo natural do mercado. É, portanto, nesse ambiente que a Lei federal nº 13.874/19 busca dar mais nítidas feições ao papel do Estado junto aos atores privados.
Para que o investimento privado tenha lugar, é fundamental que exista um quadro de previsibilidade das condições econômicas, bem como a garantia de que os investidores não serão expropriados dos rendimentos obtidos no decurso da respectiva atividade, sendo justificáveis outros elementos característicos desta abordagem: a definição clara dos direitos de propriedade e o seu respeito (por meio de um sistema de justiça eficaz), a redução das fontes de arbitrariedade associadas à existência de regulamentações complexas da atividade econômica e até mesmo a ênfase dada à sustentabilidade das contas públicas (para, no limite, prevenir o aumento da carga tributária no futuro, vez que isto implicaria eventual expropriação parcial dos retornos privados do investimento).
Além disso, importante é reconhecer que não existe verdadeira liberdade econômica, senão dentro de um determinado quadro normativo e organizativo, que, como mínimo, confira eficiência ao circuito econômico. É o Estado, portanto, contrabalanceando as forças causadoras das falhas de mercado, sem se afastar do princípio orientativo de que a liberdade constitui garantia para o exercício de atividades econômicas (art. 2º, I).
Assim, se a regulação é necessária, ela não pode ser abusiva, tampouco hostil ao mercado, do que decorre o dever de a Administração Pública evitar o excesso de poder regulatório, que, no geral, eleva indevidamente os custos de transação sem demonstração dos correspectivos benefícios (art. 4º, V). Essa é a tragédia mais comum na atuação dos Poderes Públicos: o advento de exigências, regulamentações, requisitos, barreiras e correlatos que, sem sérios e evidentes benefícios à coletividade, mais dificultam a atuação empresarial privada, num mal compreendido fetiche pela ampliação, sem-cerimônia, dos custos de transação, das dificuldades para empreender e da burocracia.
E aqui vai um exemplo emblemático: simuladores de auto-escola. Em 2015, por meio da Resolução nº 543, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) fixou a obrigatoriedade de os Centros de Formação de Condutores (CFCs) aplicarem aulas em candidatos à Carteira Nacional de Habilitação (CNH) na categoria “B” em simuladores de direção veicular, devendo ser de 5 horas o tempo de uso do equipamento. Coube aos DETRANs fiscalizar as atividades nos centros de formação de condutores, que deveriam comprovar o uso do simulador nas aulas, com fiscalização, ademais, acerca da regularidade no uso dos softwares específicos para a simulação de direção, cujo equipamento deveria ser homologado pelo DENATRAN, com laudo de técnico de avaliação e conformidade do INMETRO. É exasperante viver num país assim...
Quatro anos depois, e o uso de simuladores para a expedição da CNH deixou de ser obrigatório (Resolução CONTRAN nº 778, de 13 de junho de 2019). Sobre o assunto, o Sr. Ministro da Infraestrutura do atual governo afirmou: “(...) O simulador não tem eficácia comprovada, ninguém conseguiu demonstrar que isso tem importância para formação do condutor. Nos países ao redor do mundo, ele não é obrigatório, em países com excelentes níveis de segurança no trânsito também não há essa obrigatoriedade. Então, não há prejuízo para a formação do condutor” (disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-06/governo-acaba-com-obrigatoriedade-de-simulador-para-tirar-carteira).
A medida, além de reduzir a burocracia para a retirada da habilitação, representa, por evidente, menos custos para as auto-escolas e os alunos. Logo, os centros de formação não mais precisarão adquirir simuladores ou celebrar comodato para tanto. Não se trata de medida de pouco impacto. Uma rápida pesquisa na internet demonstra que tal apetrecho custa por volta de R$ 38.000,00. É o preço de um carro popular! Bem, e aqueles que adquiriram o equipamento? O burocrata da Administração dirá: é o risco do negócio. A confiança na estrutura regulatória, em contextos assim, só tende a cair...
Como se percebe, há regras que impõem custos altos a empresas e consumidores, com obstáculos desnecessários à maximização de ganhos e bem-estar em uma comunidade. Em tempos de simplificação, incremento da racionalidade nas despesas – tanto públicas, quanto privadas – e de prestígio ao que é socialmente relevante, as intervenções públicas devem ser sobremodo mais adequadas. Não mais são aceitáveis regulações ineficientes do ponto de vista dos objetivos pretendidos: é aqui que aspectos de mecânica regulatória passam a ganhar importância acrescida no terreno da ação pública, sobretudo depois da edição da Lei federal nº 13.874/19. A atividade regulatória é válida e legítima, desde que (i) não crie reserva de mercado ao favorecer grupo econômico ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; (ii) não impeça a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; (iii) não exija especificação técnica desnecessária para atingir o fim desejado; (iv) não retarde a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; (v) não aumente os custos de transação sem demonstração de benefícios; (vi) não crie demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; (vii) não introduza limites à livre formação de sociedades empresárias ou de atividades econômicas; (viii) não restrinja o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal (art. 4º, I a VIII).
Voltando à pergunta inicial: faz sentido a edição de uma lei de liberdade econômica num país democrático, de economia capitalista e em que é privada a propriedade dos meios de produção? Sim, faz sentido, por meio de normas procedimentais e substantivas, sobretudo quando este país, tradicional e comumente, a pretexto de regular, realiza intervenções que se mostram burocráticas, custosas e desnecessárias à atuação do setor privado econômico. Ora, se é para promover ingerência, que seja de maneira pertinente, prudente, efetiva, atual e consistente, sempre com prestígio às evidências, com atuações sempre precedidas de análise de impacto regulatório, para verificação da razoabilidade e dos reflexos econômicos da intervenção pública.De outra coisa, portanto, não se está a falar, senão de o que vem a ser governança regulatória.
Como verdadeira norma de direito administrativo econômico, a Lei nacional nº 13.874/19 estabelece, ao cabo e ao resto, uma série de garantias que devem servir para evitar os excessos da Administração, as suas intervenções desproporcionais (e injustificadas), as obstruções impertinentes e os desvios de poder e arbitrariedades, que, não raro, dão-se como resultado das conexões entre autoridades públicas e os interesses econômicos privados, sempre com grande risco de corrupção.
E por falar em corrupção, não deixa de ser significativo o fato de como o excesso de burocracia pode contribuir para a sua ocorrência. É que, num ambiente em que reinam soberanos a ineficiência na governança pública e as distorções causadas pelo mau funcionamento das instituições públicas, em que a burocracia dificulta o investimento privado, a corrupção pode, em tese, funcionar como solução second Best (embora não seja consensual se a corrupção favorece ou não o crescimento econômico, vale conferir as interessantes observações feitas por CASTRO, Conceição. Corrupção e crescimento econômico na União Europeia dos 15 – determinação do nível crítico de corrupção in. Fiscalidade – Revista de Direito e Gestão Fiscal, n° 33, janeiro-março 2008, Coimbra: Coimbra, 2008, p. 111 e seguintes).
Enfim, a regulação, como manifestação atual mais significativa do intervencionismo estatal sobre a economia, deve ter como preocupação não entorpecer a livre iniciativa privada, que é fundamento da República (art. 1º, IV, CF) e da ordem econômica nacional (art. 170, caput, CF), sem descuidar, por evidente, dos interesses públicos (os de caráter social, de proteção à saúde e ao meio ambiente, os direitos dos consumidores, dentre tantos outros).
Em jeito de conclusão, e nas palavras de Amartya Sen, agraciado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, em sua clássica obra “Desenvolvimento como Liberdade”, não se pode falar de crescimento econômico se não se produziu um incremento da liberdade das pessoas, o que só é possível com democracia e com adequado marco institucional. Logo, por que regular e como fazê-lo? A Lei nº 13.874/19 traz importante repertório de respostas. Um ato legal verdadeiramente fundamental!