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Da Administração da escassez às necessárias reformas: algumas notas

ANO 2016 NUM 93
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


29/02/2016 | 7124 pessoas já leram esta coluna. | 11 usuário(s) ON-line nesta página

É consensual reconhecer que o panorama econômico e financeiro de Estados e Municípios brasileiros não vai, na atualidade, muito bem. Isso, aliás, não decorre de agora, assim como não datam de ontem as dificuldades – não apenas financeira e orçamentária – por que também passa a União. Aliás, as crises no recôncavo da Administração, e presentes um pouco por todos os lados, são de variadas ordens: econômica, financeira, orçamentária, política, de gestão, ética, crise de valores e, mais recentemente, de saúde pública, agravada agora pela tragédia que provoca o vírus zica na vida de milhares de brasileiros. Um cenário, portanto, nada admirável.

Dirão alguns que muitos dos problemas administrativos enfrentados por Estados e Municípios poderiam ser resolvidos a partir de uma reforma do federalismo fiscal, com a finalidade de corrigir a forte centralização arrecadatória hoje presente em mãos da União, na contraface da descentralização de encargos administrativos. De fato, o federalismo de cooperação traçado pela Constituição de 1988 merece mesmo ser revisto em alguma medida, a fim de proporcionar uma adequada cooperação em matéria fiscal e financeira entre os entes da Federação, na tentativa, assim, de promover a redução dos desequilíbrios entre a capacidade de ofertar serviços públicos e o tamanho das demandas que se manifestam no interior dos mais diversos entes federativos. Um só maior federalismo de cooperação financeira, porém, não é a panaceia.

Seja como for, granjeiam no terreno a contenção do investimento público, o aumento dos juros e da inflação e as dificuldades cada vez mais crescentes em atender demandas sociais. A economia brasileira sofre com a retração, o PIB cai, investimentos privados são paralisados, cresce o desemprego e reduz-se consideravelmente o poder de compra da classe média. E, claro, decresce, em termos reais, a arrecadação tributária. O cenário tendencial, parece claro, é o de uma recessão profunda, anunciando com isso uma crise social sem precedentes, num quadro de restrição orçamentária (budget constraint) em que os recursos disponíveis são insuficientes para atender a tudo. Há para os gestores públicos, portanto, um grande e importante desafio de peso a dever ser enfrentado.

Assim que, em período de tormentosa crise, quando se exige um novo olhar para avaliar a realidade e uma nova compreensão para se adaptar a ela, a Administração Pública, precipuamente, tem de se mobilizar para que mudanças de paradigmas possam vir a ter lugar. De uma Administração da escassez, necessária se faz uma conversão para o atingimento de uma Administração de bem-estar, que logre, verdadeiramente, satisfazer os interesses públicos mais legítimos, concretizando, tanto quanto possível, as promessas constitucionais ditadas pelo constituinte de 88, conquanto seja de vacas magras o atual período.

O fato é que, ao longo das décadas, apesar de ter sido alvo de inúmeras reformas, a Administração Pública brasileira só muito parcialmente adaptou-se às mudanças de enquadramento que foram ocorrendo. Em particular, a ausência de uma visão abrangente e de gestão eficiente de recursos acabaria por torná-la, em várias latitudes, financeira e operacionalmente pesada. O descontrole das contas públicas, provocado pelo elevado peso da Administração e de uma recorrente indisciplina financeira, é, com efeito, um dado que não pode ser desprezado.

A despeito de uma pretensa reforma poder contar com várias frentes, porque, de fato, inúmeras podem ser as perspectivas e alternativas, alguns aspectos, porém, parecem essenciais neste momento. O que aqui se vai apresentar não são mais que singelos pontos de vista a partir da observação de uma realidade que se apresenta marcada pela transversalidade.

E o primeiro passo para o alcance de uma Administração de bem-estar, é dizer, vocacionada a proporcionar aos cidadãos uma vida boa, com serviços públicos de qualidade e dotados de eficiência administrativa e econômica, passa, necessariamente, por uma republicana gestão de pessoal a serviço do Poder Público. Profissionalizar os corpos administrativos é coisa primeira, indispensável, para a tão almejada melhoria das prestações ofertadas pela Administração à coletividade. O ingresso no serviço público não pode ser algo marcado pelas relações de compadrio e de cunhadismo. Tanto quanto generalizar a prática do concurso público, é preciso, mais que nunca, superar o ranço fisiológico e patrimonialista que predomina nas nomeações para cargos de provimento em comissão. Não se pode ter como séria uma estrutura administrativa que é recheada de agentes sem o menor preparo técnico e profissional para, em supostos cargos de direção, chefia ou assessoramento, numa tentativa muitas das vezes falseada de dar cumprimento ao disposto no inciso V do art. 37 da Constituição Federal, exercer ali um determinado mister de interesse público.  

A propósito, o alto grau de politização na ocupação de cargos de provimento em comissão contribui indelevelmente para que, em uma cultura pública e administrativa, como dito, historicamente remarcada por relações de cunhadismo e de troca de favores, a reverência do nomeado seja maior em relação ao nomeante, permanecendo o interesse público, ao menor sinal de conflito, quase sempre, como coadjuvante nessa escandalosa teia de valores e prioridades. Não pode ser tolerável, assim, que um sem-fim de servidores ocupantes de cargos de provimento em comissão dedique-se, num vínculo desvirtuado, ao mero exercício de atividades subalternas – observação extraível da realidade e com base no que ordinariamente acontece –, sem mínimo profissionalismo, guiados fortemente por práticas clientelistas da mais miúda política de balcão e de empreguismo. No geral, é isso o que ocorre. No particular, sobretudo para os casos de legítima ocupação de cargos de provimento em comissão, quando atraídas e escolhidas as pessoas certas, podem sim ser verificados bons exemplos de produtividade e probidade.

Assim, é sobremodo relevante reforçar de forma estável os quadros da Administração Pública com técnicos de elevada qualidade, capazes de preparar com rigor e segurança as políticas públicas dos mais variados matizes, lançando processos que, bem elaborados, possam também ter uma execução bem sucedida. Para tanto, a criação de corpos de servidores do Estado independentes, altamente qualificados, motivados e respeitados pela sociedade, apresenta-se como indeclinável condição. Servidores públicos, como típicos agentes do Estado, por evidente, não podem constituir um fim em si mesmo, pelo que se torna igualmente importante garantir que as despesas com pessoal sejam também compatíveis com a capacidade produtiva do Estado, tendo um custo, enfim, suportável pela sociedade.

Umbilicalmente relacionada à questão atinente ao corpo de pessoal da Administração, liga-se outra de igual envergadura: a desprofissionalização da função pública em sentido geral, traduzida por atuações amadoras e de improviso do Poder Público e de seus agentes. Aliás, tais caracteres, quando em causa a elaboração de políticas públicas e tomada de decisões políticas, têm em comum o fato de raramente serem subsidiadas por evidências científicas acerca da eficiência de uma determinada medida governamental. Ou seja, dificilmente algumas das vontades administrativas são amparadas por produções científicas, a revelar que as convicções pessoais de agentes públicos, só por si, acabam tendo um papel desproporcional na tomada de decisões do mais relevante timbre e que, como não poderia ser diferente, a todos afeta.

Ora, qualquer política pública, desde a mais singela às dotadas de alto grau de sofisticação, deve ser cuidadosamente preparada e executada. Deve basear-se em diagnósticos sólidos e em informações confiáveis. A propósito, tem a Administração Pública de saber lidar melhor com o tratamento da informação, sob pena de, na relação com privados, a assimetria informativa constituir uma incontornável externalidade negativa, vicissitude esta que não passou despercebida por Joseph Stiglitz, Nobel de Economia em 2001, em sua obra Teoria dos mercados com informações assimétricas.

É preciso, ademais, aperfeiçoar os mecanismos de transparência pública, pela razão, bastante evidente, de que práticas claras quanto ao que se faz, por que se faz e por quanto se faz tendem a contribuir para a descida da corrupção, gerando mais elevado nível de confiança nas instituições. É que num país com forte tradição de jeitinho, em que o Estado é espoliado sem muito pudor, amplificar os mecanismos de transparência pública pode contribuir decisivamente para a contenção de desvios, falcatruas e traficâncias nos negócios públicos.

Enfim, não se tem no terreno tarefa fácil. É que a reforma da organização e gestão do Poder Público constitui uma das mais importantes e difíceis reformas estruturais que as Administrações Públicas brasileiras têm de fazer para enfrentar com algum sucesso a profunda crise de múltiplas etiologias por que atravessa.

Qualquer reforma séria que se pretenda tem de ser executada por fases, na medida em que procurar corrigir num curto espaço de tempo fragilidades acumuladas ao longo de muitos anos é simplesmente irrealista, beirando ao populismo mais desconcertante. Simplesmente, não goza de seriedade! Qualquer reforma de gestão do setor público deve ter solidez e produzir resultados de longo prazo, não pode ser uma peça de marketing político, de faz de conta, uma reforma de Estado não pode se resumir a uma publicação de legislação na imprensa oficial, no melhor estilo da boa e velha política do Marquês de Pombal do “para inglês ver”.

Num ambiente em que as certezas são sempre condenáveis, uma coisa parece certa: é indispensável rever o desenho e a aplicação de mecanismos de gestão que aumentem a eficácia e a eficiência do setor público. Para tanto, deve o Estado ser pensado a longo prazo, não no horizonte dos ciclos eleitorais, na estreita e reduzida visão de agentes políticos pouco empenhados na coisa pública. O alcance de graus de eficiência, eficácia, qualidade e transparência da ação pública não se compagina com tomadas de decisões influenciadas pela cega busca de um retorno presente, no qual motivações voluntaristas e de pedestres interesses político-partidários não prestam servil reverência ao interesse público.

Enfim, num cenário de crises e constrangimentos, em que a contenção da despesa macroeconômica não dispensa políticas ativas no combate às ineficiências no plano da micro gestão, serão exigidos do Poder Público maior qualidade do gasto público, maior esforço de financiamento e, claro, a produção de serviços públicos dotados de mais eficiência sob as perspectivas administrativa e econômica. Por outras palavras, trata-se de desafio diretamente ligado a uma nova governance administrativa e financeira pública, traduzível pela ideia de administração inteligente e espartana de recursos escassos, em que tomar as decisões certas nunca foi tão difícil.

Parece adequado reconhecer, portanto, que a ideia de sustentabilidade da Administração, da governabilidade e das finanças, em tempos nebulosos e de restrições, deverá passar pelo tripé profissionalização da função pública, transparência pública e qualidade do gasto público. À ideia de sustentabilidade, que não é apenas uma palavra da “moda”, mas um conceito interdisciplinar que hoje serve de esteio à realização de qualquer política pública, ligam-se os conceitos de moderna Administração Pública, capacidade de gestão das forças sociais e, claro, bom senso dos decisores políticos. Tal como disse o tcheco Milan Kundera, em sua obra A insustentável leveza do ser, “o que não é consequência de uma escolha não pode ser considerado nem mérito nem fracasso”.



Por Rafael Arruda (GO)

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