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Vinculação e Discricionariedade no Acordo de Leniência

ANO 2016 NUM 142
Maurício Zockun (SP)
Mestre em Direito Tributário, Doutor e Livre-docente em Direito Administrativo pela PUC/SP. Professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da PUC/SP.


14/04/2016 | 32497 pessoas já leram esta coluna. | 9 usuário(s) ON-line nesta página

A natureza jurídica do acordo de leniência

Previu-se na Lei Anticorrupção (ou Lei de improbidade administrativa empresarial) a figura jurídica do acordo de leniência, espécie do gênero ato jurídico convencional.

Trata-se de ato convencional pois, por meio dele e preenchidos certos pressupostos, Administração e administrado estipulam a mitigação ou a supressão de um plexo de penalidades passíveis de imposição à pessoa jurídica pelo cometimento doloso de atos ilícitos que proporcionem à entidade privada o desfrute de ilegítimo benefício patrimonial ou extrapatrimonial.

É certo que são inúmeras as hipóteses de ato convencional formado sob o regime jurídico de direito administrativo, como se dá, por exemplo, na transação em matéria tributária. Nestes casos, a obrigação tributária e o litígio que lhe tem por objeto podem ser extintos em razão de mútuas concessões, nos termos da lei (arts. 156, III e 171 do Código Tributário Nacional). Reconheça-se, todavia, que o ato negocial mais conhecido no campo do direito administrativo é, sem sombra de dúvida, o Termo de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, §6º, da Lei de Ação Civil Pública.

Neste contexto, preocupa-nos saber se o acordo de leniência, previsto na Lei federal 12.846, de 2013, é produzido no exercício de competência discricionária ou deve ser entabulado de modo vinculado, inclusive pelo Ministério Público e pela Advocacia Pública; e mais: se os efeitos decorrentes da sua celebração têm seus confins fixados ao motivado arbítrio da autoridade administrativa ou se, pelo contrário, existe mitigada discricionariedade neste campo.

O dispositivo em debate

A discussão em pauta tem sua gênese na redação do art. 16, caput, dessa lei, segundo o qual as pessoas jurídicas de direito público, conjuntamente ou não com a Advocacia Pública e o Ministério Público, “poderão” celebrar acordos de leniência.

A discussão neste particular é batida: saber se a expressão “poder” acima referida encerra uma faculdade ou um dever-poder (ou seja: sempre que possível, este ato convencional deve ser entabulado entre a Administração e o administrado); e mais: se o Ministério Público e a Advocacia Pública têm liberdade para afluir ou não ao acordo de leniência, subscrevendo os seus termos.

Pressupostos para celebração do acordo de leniência segundo a Lei Anticorrupção

Nessa toada, cumpre observar que as hipóteses autorizadoras da formação do acordo de leniência exigem a ocorrência de alguns pressupostos: (i) que a pessoa jurídica proponente tenha supostamente praticado o ilícito descrito na Lei Anticorrupção (afinal, da frustração do acordo de leniência não decorre a presunção que a entidade proponente tenha cometido o ato ilícito curado pela lei); e, alternativamente, que a entidade proponente (ii) identifique os demais infratores, se for o caso, ou (iii) aporte documentos e informações que permitam a identificação do ilícito praticado, ou (iv) adote medidas de melhoria em seu programa de integridade (ou compliance, no jargão corporativo).

A alternatividade no preenchimento destes requisitos – incisos I a IV – poderia render alguma controvérsia. Afinal, em que pese a lei não mencionar o cumulativo preenchimento destes requisitos, o art. 16, III, da Lei se valeu da expressão “e” ao intercalar os dois últimos pressupostos para formação deste ato negocial.

Sucede que a redação da lei não foi louvável neste particular, pois, infirmando parcialmente o comando anterior, o art. 16, §1º, prescreve que a celebração do acordo de leniência exige, grosso modo, a cumulativa ocorrência dos pressupostos arrolados nos incisos III e IV do art. 16, caput, além da obrigação de cessar a prática das condutas lesivas.

De toda sorte, atendidos estes requisitos, estarão reunidas as condições necessárias à celebração do acordo de leniência, viabilizando a concretização do interesse público preconizado pela Lei Anticorrupção pela identificação do ilícito e/ou seus agentes, interrupção da prática ilícita e efetiva concretização de programa de integridade. Assim, a Administração não goza de margem de liberdade para celebrar ou não o acordo de leniência uma vez constatada a ocorrência dos pressupostos necessários à sua formação. Isso porque a ordem jurídica elegeu este ato negocial como o meio mais adequado para tutela do interesse público, tanto mais porque sua formação também poderá se aperfeiçoar no transcurso de uma ação judicial que tenha por objeto os noticiados ilícitos.

Em síntese, se a pessoa jurídica, em desfavor de quem se imputa a prática do ilícito assinalado pela Lei Anticorrupção, (i) identificar os demais infratores que incidiram nestas condutas vedadas ou carrear documentos e informações que permitam identificar esses ilícitos, mas não necessariamente os seus autores; e, (ii) nos dois casos, cessar a prática dessas condutas ilegítimas e implementar ou aperfeiçoar seu programa de integridade, então essa entidade faltosa terá direito subjetivo de celebrar acordo de leniência. Há, portanto, vinculação quanto à celebração deste acordo.

Essa mesma conclusão se estende ao acordo de leniência passível de celebração em razão do suposto cometimento de ilícitos atentatórios à disciplina normativa afeta às licitações e contratações públicas, tal como preconiza o art. 17 da Lei.

Os limites para o acordo de leniência de oferta obrigatória

Ao mesmo tempo em que nos parece que a formação do acordo de leniência pode ser obrigatória, também vemos igual vinculação a certos efeitos decorrentes desse ato negocial.

Deveras, o art. 16, §2º, da Lei Anticorrupção, prevê que a celebração do acordo de leniência suspende (i) a publicação extraordinária da decisão que reconheça o cometimento, pela entidade infratora, das condutas nela vedadas, e (ii) qualquer medida restritiva do direito de licitar e contratar da entidade proponente.

Estas consequências decorrentes da celebração do acordo de leniência, na extensão acima indicada, eclodem, automática e infalivelmente – parafraseando Alfredo Augusto Becker –, da incondicional previsão legal. Com isto, os agentes públicos autorizados a celebrar o acordo de leniência não podem embaraçar a deflagração destes efeitos, senão que ao objetivo preenchimento dos pressupostos viabilizadores da formação desse ato negocial. Há, aqui, exercício de competência pública vinculada ao atendimento dos requisitos legais, cujos efeitos, todavia, escapam da órbita decisória dos agentes públicos: é deliberação ope legis.

É certo que se outorgou certa margem de liberdade aos agentes públicos para, em razão da celebração do acordo de leniência, mitigar o alcance das sanções pecuniárias passíveis de imposição à pessoa jurídica faltosa. Registre, neste particular, que a inexistência de uma pauta objetiva capaz escalonar a mitigação dessas penalidades – senão que para dosar sua imposição –, causa inegável insegurança à entidade leniente, especialmente em razão das pesadas multas que lhe são imponíveis.

A solução nestes casos perpassa pela aplicação dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação dos atos administrativos à finalidade pública perseguida por meio dessa lei, sem embargo do inegável conteúdo aberto destes específicos comandos jurídicos.

A atuação do Ministério Público e das Advocacias Públicas no acordo de leniência

A participação do Ministério Público e das Advocacias Públicas na celebração do acordo de leniência não é facultativa como a Lei Anticorrupção parece sugerir.

Com efeito, o acordo de leniência é um dos meios concebidos pela ordem jurídica para tutela do interesse público, permitindo não só a identificação do ilícito ou do seu agente, mas a recondução das práticas da entidade faltosa aos trilhos da legitimidade, sem prejuízo da recomposição do dano causado. Desse modo, não apenas se evita a perpetuação de situação de ilicitude como, adicionalmente, premia-se a solução pacífica de um conflito, sem prejuízo da integral preservação do patrimônio público.

O acordo de leniência é, pois, um ato convencional restritivo de direito, no qual a entidade faltosa reconhece o cometimento de ato ilícito em seu proveito. Por esta razão, este ato convencional é uma singular modalidade de sanção.

Neste contexto, a Lei Anticorrupção concebe que a participação do Ministério Público e da Advocacia Pública em um acordo de leniência impede o ajuizamento de ação de improbidade administrativa e sua continuidade em relação ao mesmo fato ilícito objeto deste ato negocial.

Em vista disto, poderiam estes órgãos estatais, pura e simplesmente, optar por não aderir ao acordo de leniência e, com isto, iniciar ou prosseguir com a adoção de medidas judiciais em razão do cometimento destes ilícitos? Penso que não, pois a intransigência desses órgãos proporcionaria a ilegítima perpetuação de um conflito jurídico que, segundo a dicção legal, pode ser composto mediante a estrita obediência de uma pauta objetiva de pressupostos, desaguando na formação de um acordo de leniência. A lei, sopesando os interesses em jogo, deu especial relevância à solução consensual de um conflito. Logo, em sendo possível, o acordo de leniência deve (e não pode) ser celebrado, em prejuízo, pois, à via contenciosa judicial.

E por estas razões, se o ilícito cometido no ambiente da Lei Anticorrupção também puder ser atacado por meio da ação de improbidade e, ademais, estiverem presentes os pressupostos para celebração do acordo de leniência, a integração desses órgãos estatais nesse ato negocial é obrigatória.

Alguma celeuma poderá surgir quando as autoridades envolvidas estiverem em desacordo quando à intensidade da mitigação da penalidade pecuniária imponível à entidade leniente. Uma vez mais, espera-se que os agentes públicos reconheçam neste instrumento negocial um especial modo de pacificar (e não estimular) conflitos sociais, o que pode ser frustrado com a risível mitigação das penas pecuniárias aplicáveis, que, em última medida, podem inviabilizar o acordo por desinteresse da pessoa jurídica faltosa.

 



Por Maurício Zockun (SP)

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