Georges Humbert (BA)
Na última quarta se encerrou o julgamento do RE 852475, com repercussão geral reconhecida, e que trata da prescrição das ações de ressarcimento por danos ao erário, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
O Relator votou pela prescrição, e propôs a seguinte tese:
"A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos e terceiros pela prática de ato de improbidade administrativa devidamente tipificado pela lei 8.429/92 prescreve juntamente com as demais sanções do art. 12, nos termos do art. 23, ambos da referida lei, sendo que, na hipótese em que a conduta também for tipificada como crime, os prazos prescricionais são os estabelecidos na lei penal."
Durante seu voto, o Relator, Min. Alexandre de Moraes afirmou que “a Constituição adotou como regra a "prescritibilidade" e que “as únicas exceções são de ordem penal, como por exemplo nos crimes de racismo”. Segundo o Relator, “o Estado não tem arbítrio sancionador ilimitado no tempo, não havendo previsão constitucional de imprescritibilidade de sanções civis ou administrativas”, bem como que “a imprescritibilidade, além de violar a segurança jurídica, fere também a ampla defesa”. O Ministro Barroso, acompanhando o Relator, registrou, ademais, que "onde a CF quis instituir a imprescritibilidade, ela o fez com linguagem inequívoca".
Esses e outros argumentos pela prescritibilidade, no caso específico, como regra em nosso sistema jurídico, já haviam sido lançados por ocasião de nosso artigo há quase dez anos (HUMBERT, G. L. H. Prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário - estudo de casos. Interesse Público. , v.55, p.202 - 211, 2009), em revista coordenada pelo professor Juarez Freitas, e que consta, revisado, em livro em co-autoria com o professor Márcio Cammarosano (Cammarosano, Márcio; Humbert, Georges Louis Hage, Direito Público – Estudos e Pareceres. Belo Horizonte: Fórum, 2010) pelos seguintes fundamentos a seguir sintetizados:
(i) a Constituição, quando declara a imprescritibilidade de ações, sempre o faz de forma expressa, o que não é o caso das ações de ressarcimento ao erário;
(ii) outras lesões, danos e prejuízos ao erário são expressamente sujeitas ao prazo de prescrição – como as que podem se dar no caso de não pagamento dolo e de má-fé do tributo devido e as de ilícitos civis, como agora já reconhecido pelo STF, ao ensejo da multicitada repercussão geral 666;
(iii) nenhum direito de ação pode ser imprescritível, por via de interpretação extensiva de princípios jurídicos, como o do poluidor-pagador, ao menos sem grave e clara ofensa ao direito fundamental à segurança jurídica;
(iv) conforme técnica reconhecida de hermenêutica constitucional, considera-se inconstitucional a interpretação ampliativa de uma restrição, com o fim de garantias individuais como prescrição, decadência, coisa julgada, ato jurídico perfeito. Portanto, não cabe ao legislador infraconstitucional ou ao aplicador da norma criar a possibilidade de se eternizar a hipótese de uma lide civil ambiental ser levada à apreciação do Poder Judiciário a qualquer tempo, ainda mais quando essa inércia deriva de omissão do Poder Público, que, por princípio, tem o dever de atuar com eficiência e promover a razoável duração dos processos.
(v) por fim, diante da inexistência de lei específica regendo a matéria da prescrição da ação de reparação de danos ao meio ambiente, aplicar-se-ia o quanto disposto pelo microssistema de tutela do interesse público e dos direitos difusos e coletivos, composto pela Lei de Ação Popular, da Ação Civil Público e da Lei de Improbidade Administrativa e Código de Defesa do Consumidor, em detrimento de um criacionismo de novas regras via ativismo judicial ou qualquer outra forma que não seja o devido processo legislativo. Consequentemente, entende-se como de cinco anos o prazo prescricional aplicável às ações civis ambientais públicas de reparação ou ressarcimento.
Os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, acompanharam, a princípio, o voto de Moraes, com a divergência dos ministros Rosa Weber, Fachin, Celso de Mello e Carmen Lúcia. Porém, de forma inusitada e raríssima, mesmo, os ministros Barroso e Fux, mudaram totalmente de posição, ao final do julgamento, quando se encerrava para o placar de 7 X 4 a favor da prescrição, fechando, assim, em 6 x 5, pela não incidência da prescrição da ação de ressarcimento de dano ao erário decorrente de ato de improbidade, desde que doloso, isto é, intencional e de má-fé.
Assim, o Ministro Barroso, que havia registrado antes com acerto que "onde a CF quis instituir a imprescritibilidade, ela o fez com linguagem inequívoca", reapareceu no fim do julgamento, afirmando que mudava de posição, pois “muitos argumentos que me foram trazidos, sobre as dificuldades, quando não impossibilidade de recuperação, muitas vezes de dinheiros desviados, em que há uma delonga administrativa e no processo penal, eu me convenço que como regra geral, a prescritibilidade, neste caso, não produz o melhor resultado para a sociedade”.
Já o Ministro Fux Ao retificar o voto, disse que não considerava "consoante com os princípios e a postura do STF" que atos de improbidade administrativa ficassem "imunes à obrigação do ressarcimento".
Daí se extraem quatro argumentos para a singular mudança de votos: 1 - dificuldades de recuperação de verbas; 2 - o melhor resultado para a sociedade; 3 – princípios e posturas do STF; 4 – imunidade à obrigação de ressarcimento. Como se verifica, sem maior esforço, nenhum dos argumentos é da ciência do direito, nem da prática jurídica, muito menos previstos na Constituição ou nas leis. Pior ainda: nenhum dos argumentos é pertinente.
Isto porque, se não se consegue ter um mínimo de indícios e diligência para, em cinco anos, propor uma ação de cobrança, melhor encerrar as atividades das instituições jurídicas. Lembre-se: basta propor a ação que a prescrição fica suspensa! Não precisa encontrar o dinheiro, o que deve ser feito durante o processo judicial, mediante contraditório e técnicas diversas, como cooperação internacional, quebra de sigilos, desconsideração da pessoa jurídica, responsabilização solidária e subsidiária, entre outras.
Ademais, a inércia e insegurança jurídica, sem marcos temporais para se propor uma ação, não é o melhor para a sociedade. Esta clama por agilidade, celeridade, eficiência, eficácia e efetiva preservação e recuperação da verba pública, não uma carta branca para, a qualquer tempo e quando se quiser, ir atrás de corruptos e das verbas públicas que eles tenham desviado.
Melhor sorte não merece o discurso consentâneo aos princípios e posturas do STF. Primeiro que estes estão positivados na Constituição, não em casos concretos, não interferem nas regras de decisão de cada situação e interesse juridicamente protegido, mas em regras de processamento, bem não tem nada a ver com a prescrição ou não, até porque a prescrição é a regra e a não prescrição é a exceção, devendo estar, como já dito, expressa, sem depender de malabarismos de intepretação, como os que se assistiu.
Por fim, também sem guarida jurídica e fática o argumento de que a prescrição geraria uma imunidade a obrigação de ressarcimento, mesmo porque este é um dever geral do direito brasileiro e mundial: aquele que causa o dano, tem o dever de reparar. A prescrição, é da lição mais básica do direito, não atinge o direito material, o dever ou a obrigação em si, diga-se, mas o direito de ação, justamente para que este não seja usado como arma de ataque, defesa, perseguição ou impunidade.
É preciso ressaltar, ainda, que o caso criou a figura jurídica da prescrição com dolo e sem dolo além de um grave efeito prático: agora o MP, Tribunais de Contas, União, Estados e Municípios, mesmo cientes de desvios de verba pública, poderão esperar até mais de mil anos para cobrar dinheiro desviado da corrupção. O STF legalizou a inércia e ineficiência do Estado e deu mais uma chance para quem desvia!
Será que, na lógica e sistema Constitucional, o erário pode esperar para ser recuperado e protegido? O dinheiro desviado da corrupção pode esperar cem anos para ser cobrado? A toda evidência, não, ao pelo direito fundamental à segurança jurídica, suas garantias ao devido processo, formalmente com contraditório, ampla defesa, razoável duração do processo, e, materialmente, com atos, ações razoáveis e proporcionais (mil anos para porpor uma ação não é razoável e nem proporcional), todos do art. 5°, bem como do princípio da eficiência, que norteia a administração pública, expresso no art. 37, ambos da combalida Constituição que, a duras penas e violações, completará 30 anos no próximo mês de outubro.
Por isso, entende-se que não era a imprescribilidade, a carta branca ao estado e seus agentes para agir quando roubado, que a decisão deveria contemplar, mas sim que, como qualquer outro direito de ação ressarcimento patrimonial, os derivados de atos de corrupção contra o erário prescreve, sim, a ressalva constitucional é do prazo, que deve estar em lei específica, e a autoridade que deixar prescrever indenizará o estado, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar cabível, nos casos de comprovado ato doloso ou culposo.
Por derradeiro, não se pode olvidar que esse caso recobra, mais uma vez, o premente debate do ilimitado e, cada vez mais presente, exercício do poder de legislar pelo Judiciário, em detrimento do Congresso, também conhecido por “ativismo judicial” (expressão que remonta uma contradição, pois o judiciário é o poder inerte, por essência). Daí se questionar, também: os Ministros que mudaram os votos com argumentos não jurídicos, mas morais ou políticos, jogaram para a plateia? Não se sabe.
Fato é que, quem é leigo ou acusador intempestivo, vai comemorar e louvar como uma ótima mais essa decisão criativa – ou ativista - e fora dos termos Constitucionais, sem se importar com mais um rasgo na Constituição, justamente por quem deveria ser seu guardião. E mais: não se importará com mais uma demonstração clara de que o STF não exerce a atividade julgadora, predominantemente. Tem feito leis e política.