Georges Humbert (BA)
Determina a nossa Constituição, no parágrafo único do Art. 52 que, durante o processo do Presidente da República por crimes cujo julgamento é de competência privativa e soberana do Senado, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Consoante se verifica de clareza solar, é indubitável que o juízo do Senado, ao ser exercido pela condenação, produz como consequências automáticas adjuntas, associadas, inseparáveis, a condução do Presidente da República condenado à perda do cargo com, isto é, juntamente, acoplado, unido, junto, aglutinado com a inabilitação, por oito anos, para exercício de função pública.
É obvio ululante, e ninguém pode discordar que a Constituição é inequivocamente clara: perda do cargo de presidente e inabilitação não se separa, ao menos sem rasgar, sem ferir de morte, sem autoritária e antidemocraticamente vilipendiar aquela que é uma das mais claras e cristalinas determinações da norma fundamental.
Porém, uma decisão monocrática do presidente do STF, Ricardo Lewandoswki, em exercício da presidência do julgamento, isto é, logo de quem jurou, tem o dever de probidade e legal de guardar a Constituição, deu aplicabilidade ao Regimento Interno do Senado, permitindo o julgamento, em votações separadas, destacadas, daquilo que era inseparável, isto é, a perda do cargo e inabilitação, perfazendo o denominado fatiamento do impeachment.
Procedeu, à toda evidência, em detrimento do parágrafo único do art. 52 da Constituição, via uma forçada interpretação analógica do Regimento da Câmara de Deputados para, em uma manobra, um verdadeiro malabarismo hermenêutico inconstitucional, em detrimento de uma legítima decisão plenária e da integridade da norma constitucional regente da espécie.
Colocada a questão, diversos legitimados buscam a tutela jurisdicional da Suprema Corte Brasileira, para que se manifeste acerca da correção ou não do processo de votação requerido pela defesa da presidente julgado e deferido pelo presidente do STF, então excepcionalmente comandando o Senado em sessão julgamento.
A resposta a esta celeuma, a este problema de pesquisa, passa por ao menos três hipóteses secundárias, teses e antíteses que se configuram premissas, verdadeiros pressupostos que permitem produzir uma síntese, que preserve os ditames constitucionais, a separação dos poderes e demais princípios da República, a saber: (i) se é possível juridicamente fatiar o dispositivo constitucional; (ii) qual o mérito da decisão do Senado e pode ele ser controlado; (iii) se com o reconhecimento da impossibilidade de fatiamento, todo o julgamento restou nulo, por causar vício de vontade e livre convencimento dos julgadores.
Primeiramente, cumpre verificar se, mesmo com a possibilidade regimental de votação de destaques nas deliberações do Senado, pode ser separada a votação da perda do cargo de presidente condenado por crime de responsabilidade. A resposta é, sem dúvidas, inequivocamente, não.
Para tanto, fica-se com as recentes declarações do Ministro Decano do STF, Celso de Mello, que na posse da presidente Carmém Lúcia naquela corte exortou, por diversas vezes, a necessidade e o dever constitucional do Supremo de manter a integridade e a íntegra dos dispositivos constitucionais e, em entrevista logo após ocorrer o fatiamento no caso da ex-presidente Dilma, assim lecionou:
“A Constituição é muito clara ao estabelecer no artigo 52 parágrafo único que o Senado, caso condene o presidente no processo de impeachment, imputar-lhe-á uma sanção constitucional que tem estrutura unitária porque ela compreende globalmente de um lado a medida de destituição do mandato e de outro lado, como natural consequência da destituição, a inabilitação por oito anos para o exercício de qualquer outra função pública. Isso significa que a sanção constitucional é una, e sendo una ela é incindível, portanto parece não muito ortodoxo que tenha havido um tratamento autônomo com essa separação entre duas medidas na verdade que interagem".
Ao remate, admitir o fatiamento é produzir uma tautologia, pois, nas palavras do também Ministro do STF Gilmar Mendes, "O que se fez lá foi um DVS (destaque para votação em separado), não em relação à proposição que estava sendo votada, mas em relação à Constituição, o que é, no mínimo, pra ser bastante delicado, bizarro" Gilmar Mendes.”
Superada a questão de que não pode fatiar o julgamento do impeachment, ao menos sem ferir de morte a Constituição e seus valores mais supremos e comezinhos, como democracia, separação dos poderes, legalidade, moralidade, igualdade e segurança jurídica, a segunda delas é saber, feito o fatiamento, pode o STF controlar o mérito do impeachment, e mudar a decisão do Senado?
Este é um falso problema, uma não hipótese secundária, mas cujo afastamento é de rigor para se chegar a uma conclusão válida e falseável.
Como já consignamos em artigo produzido em coautoria com o professor Márcio Cammarosano, “da leitura do art. 52, §§ 1º a 3º e 37 da Constituição, infere-se, sem maiores dúvidas, que o Senado é o juiz natural nos processos de impeachment, dotado de legitimidade democrática e atribuição política e jurídica, competência privativa mesmo, para dizer, a final, se os fatos imputados à presidente configuram ou não crime, a partir da tipificação que consta da parte da denúncia admitida e das provas de sua autoria.”
E, ainda naquele estudo, para asseverar que o mérito da decisão do impeachment é matéria privativa do Senado e incontrolável, concluímos que “se a palavra final, quanto ao mérito de uma decisão que decreta ou não o impeachment, fosse de competência do Judiciário, não seria de competência, repita-se, privativa do Senado, cuja legitimidade democrática é até mais densa do que a do Presidente da República. Este é eleito pela maioria dos eleitores. Mas no Senado estão reunidos representantes majoritários de todos os Estados Membros da Federação, que compõem órgão colegiado representativo de vários partidos e, portanto, das mais variadas correntes de opinião.”
Ora, aqui se encontra o falso problema. Não se nega que o mérito da decisão do impeachment de Presidente da República é matéria afeta só e tão somente ao juízo do Senado. Contudo, o mérito ao qual a Constituição atribuiu ao Senado com gerência privativa e insuscetível de controle foi um dever-poder outorgado “limitando-se a condenação”, consoante transcrito de mais um trecho claro e cristalino da Constituição na matéria, a teor do já citado parágrafo único do art. 52.
Noutros termos, decidir culpado ou inocente, condenado ou absolvido é o único e verdadeiro mérito da decisão de impeachment, processado e julgado, excepcionalmente, pelo Senado, uma casa política, então funcionando como se uma e única instância judiciária fosse.
Significa que não se pode reverter e incidir controle de mérito sobre a valoração da condição culpado e condenado, ou de absolvido e inocente, depois de exaurida, externada mesmo, em sessão e votação aberta, por mais de 2/3 do Senado, recebendo o que, por analogia, denomina no processo judicial manto intangível da coisa julgada, garantia fundamental individual, inerente aos direitos fundamentais da segurança e igualdade.
Entretanto, as consequências jurídicas da declaração de mérito – condenado ou absolvido - ao qual, por força da Constituição, o Senado estava adstrito, podem e devem ser controladas, quando ofendam a Constituição.
Com efeito, não cabe ao Senado aplicar tal ou qual pena, nem fazer dosimetria. Não é processo penal e nem judicial. Ultrapassar o mérito de condenar ou absolver é produzir ato viciado, nulo mesmo. Pior, é produzir ato jurídico inexistente, pois nada na Constituição, norma que prevalece sobre malabarismos regimentais, permite ao Senado decidir a pena derivada da condenação, mas tão somente declarar e constituir inocência ou culpa. Tudo que for para, além disso, na decisão do Senado, em matéria de impeachment, não é mérito, é forma, ofende o devido processo legal formal, e deve ser corrigido, pelo presidente do STF, durante o julgamento, ou por toda a corte, quando provocado.
Por fim, a terceira, mas não menos importante hipótese colocada, em torno do vício de vontade e livre convencimento dos julgadores que votaram sabendo que eram situações e penas separadas.
Não há. A uma porque a todos é dado conhecer as leis e a Constituição. Todos os Senadores juraram e se comprometeram a zelar pela Constituição que não permite o fatiamento feito monocraticamente pelo presidente do STF, no exercício da presidência do julgamento do impeachment. A duas porque o mérito votado independe da pena: condenada ou absolvida. Não é a pena que condiciona o mérito, mas sim o contrário. A três porque foi a própria defesa, jurídica e políticas, e uma Senadora aliada falando em nome da ex-presidente Dilma que requereu o fatiamento, não podendo se aproveitar da sua própria torpeza, senão em afronta à moralidade e boa-fé processual objetiva que regem atos desta natureza. Finalmente, a quatro, porque o mérito, isto é, a condenação, derivou de devido processo legal e é incontrolável, cabendo apenas ao Supremo declarar – não constituir – as consequências do julgamento: perda do cargo com inabilitação para o exercício das funções, já que não existe uma sem a outra e houve essa usurpação e deturpação constitucional na parte formal das consequências inexoráveis daquilo que foi julgado.
Por derradeiro e em caráter pragmático, partindo de uma questão empírica para se chegar a um conceito, coloca-se a situação sobre outro ângulo: se tivesse ocorrido o contrario, permanência no cargo e condenação a perda dos direitos políticos? Não é estranho? Mais que isso, é juridicamente tautológico, bizarro, inconstitucional e impossível.
Por todas essas razões, deve o STF controlar o fatiamento do impeachment para, reconhecendo intangível o mérito da decisão que condenou a presidente, declarar que sob a mesma incidem as penas conjuntas e indissociáveis de perda do cargo e inabilitação para o exercício de funções públicas.