Georges Humbert (BA)
Recente decisão liminar, concedida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, em sede da Ação Cautelar (AC) 4085l, revela que questão, cada vez mais importante, é debater e problematizar os temas da vedação expressa ao usucapião de imóvel público, como prerrogativa da administração pública, e o da função social da propriedade, enquanto garantia e dever fundamental inserto no art. 5° da Constituição (desenvolvemos o tema em HUMBERT, Georges Louis Hage. Direito Urbanístico função socioambiental da propriedade imóvel urbana. Belo Horizonte: Fórum, 2009), sob a ótica da teoria geral do direito e da hermenêutica.
De logo, cumpre-nos registrar que, apesar da aparente contradição entre ambos os dispositivos, derivada, em larga medida, da leitura de que têm natureza e finalidades jurídicas diversas, são tipos normativos conexos. Isto porque, possuem um mesmo denominador comum e, por esta razão, devem ser compreendidos e aplicados conjugadamente, hipótese em que se consagrarão como forma de maximização de dois caros valores jurídicos postos da nossa República: a dignidade da pessoa humana, reconhecido como princípio jurídico explícito (art. 1, III) e a supremacia do interesse público, nem por todos reconhecida como norma jurídica, mas que, a nosso sentir, revela-se como princípio jurídico implícito da Constituição, confirmado por diversas regras que nele se fundamentam, como as de intervenção do poder público na propriedade e as de exercício do poder de polícia.
Antes de tudo, precisamos revelar o que entendemos por princípios e regras jurídicas. Com efeito, são vários os critérios comumente utilizados pela doutrina para fundamentar a distinção entre princípios e regras. Seriam eles: 1. Grau de abstração: por este critério, os conceitos de princípio e regra poderiam ser individualizados pelo fato de que o primeiro possuiria um grau de abstração elevado, enquanto que a regra teria um grau relativamente baixo de abstração. 2. Grau de determinabilidade quando da aplicação ao caso concreto: os que assim entendem, defendem que os princípios carecem de mediações concretizadoras, através do legislador ou do juiz, porque são vagos e indeterminados. As regras, por sua vez, teriam aplicação direta. 3. Caráter de fundamentalidade no sistema de fontes do direito: os princípios estariam num patamar superior às regras por serem normas de natureza estruturante ou com papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema de fontes ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico. 4. Proximidade da idéia de direito: princípios seriam padrões da justiça. Regras poderiam ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional. 5. Natureza normogenética: as regras advêm dos princípios. São estes que fundamentam aquelas. (CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2014).
Diante deste quadro, que alberga inúmeros critérios e os mais variados significados e sentidos para um mesmo termo, seja na linguagem ordinária, seja na linguagem científico-jurídica, é que surgem as mais diversas definições, conteúdos, funções etc. para os denominados princípios jurídicos.
Com base nisso, já manifestamos que para evitar essa ambiguidade e entendendo a multimencionada classificação pertinente, racional e útil à ciência jurídica, bem como para a interpretação, concretização e aplicação do direito, parte-se, de logo, de um corte metodológico juspositivista, afastando como parte da teoria dos princípios, ou melhor, como possível propriedade dos princípios e das regras jurídicas tudo aquilo que não esteja inserido em determinado ordenamento jurídico – no caso, no ordenamento jurídico brasileiro.
Em sequência, afirmamos que ambas integram o mesmo gênero – no caso a norma jurídica. Diga-se: dotam-se de características comuns. São atos, verdadeiros plexos de ordenação de conduta humana, integrantes de um sistema concatenado, cuja formação válida deve seguir o processo pré-determinado pela norma base do sistema, conforme atribuição – ou autoridade – outorgada pelo próprio sistema, arraigadas, na sua essência, a imperatividade – ou prescritibilidade -, cujo cerne é a presença da sanção – consequência negativa pelo não cumprimento de seus comandos – e a coação – possibilidade de impor esta consequência, mesmo contra a vontade do seu destinatário, inclusive mediante o uso da força prevista, autorizada também pelo ordenamento em vigor.
Todavia, vislumbramos também que é preciso atestar que, mesmo sendo parte da mesma família, existem dentro do conjunto categorias com peculiaridades, verdadeiras notas diferenciadoras, que justifiquem a utilidade da classificação proposta, seja para efeitos acadêmicos, científicos – atividade descritiva -, ou mesmo para efeito de operação, aplicação e interpretação - atividade prescritiva.
E concluímos que os princípios jurídicos são norma jurídica que consubstancia ordens de conduta prescritivas, postas de forma explícita ou implícita em determinado sistema jurídico vigente, as quais se situam em plano hierárquico superior ao das regras integrantes do mesmo nível sistemático, por serem dotadas de alto grau de generalidade e abstração que não resultam em incidência limitada a determinados casos concretos e pelas quais se incluem na ordem valores jurisdicizados na forma comandos, consubstanciando prescrições fundamentais que condicionam os mais diversos interesses juridicamente protegidos à produção, possuindo o caráter construtivo e operativo. (HUMBERT. Georges Louis Hage. Conceito de Direito, de norma e de princípio jurídico. Salvador: Editora Dois de Julho, 2015).
Desta forma, as regras e os princípios são irmãos, tem a mesma gênese e atributos comuns. É justamente no caráter construtivo e operativo das normas princípios que se encontra a sua peculiaridade de maior relevância para solução de casos pelo operador do direito (seja em atividade descritiva ou prescritiva) como o aqui debatido, já que impõe deveres aos atos hermenêuticos de uso das técnicas, métodos e mecanismos para se extrair a decisão e, a um só tempo, permitir o seu controle e falseamento.
Ora, fincadas estas premissas iniciais temos que anunciar um segundo e importante pressuposto: o de que a função social é norma da espécie princípio e, noutro giro, a de que, por sua vez, a vedação ao usucapião é regra – ainda que seja expressão e um vetor de ordem principiológica, ter-se-ia que, quando em conflito, a solução correta é aquela em que sempre prevaleceria a incidência da primeira, por razões hierárquicas e valorativas. Isto é um equívoco! Vejamos em no caso concreto do precedente acima citado.
Trata-se de ação ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para suspender a ordem de reintegração de posse de uma área de um milhão de metros quadrados em Sumaré (SP), ocupada por mais de duas mil famílias, conhecida como Vila Soma. O ministro entendeu, acertadamente, diga-se, que o imediato cumprimento da operação de retirada dos ocupantes poderia “catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos direitos fundamentais daqueles atingidos por ela”, diante da ausência de informações sobre o reassentamento das famílias.
O que fez - ou deveria fazer, acreditamos - o exmo. Sr. Ministro? Aplicou a prevalência do princípio da função social? Relativizou a regra da vedação ao usucapião de imóvel público? Nada disso. Apenas, a partir do devido processo legal, e sua cláusula material da razoabilidade, superpotencializou as já também citadas máximas republicanas da dignidade e supremacia.
Primeiro, porque a função social existe para que o Poder Público, em nome da coletividade e por ser dotado de posição de autoridade, promover políticas e se valer de instrumentos que impeçam o mero exercício egoístico e absoluto do direito individual subjetivo fundamental de usar, gozar, reivindicar e dispor da propriedade privada, justamente porque esta também deve servir para a promoção de uma vida digna, especialmente no que se refere aos componentes da moradia, lazer, circulação, saúde, educação e emprego.
Segundo, pois a denominada supremacia só existe para ser usada em nome do bem estar social, do interesse individual, que é de cada um, mas também se expressa no direito coletivo, que é de todos juntos, sendo, a supremacia forma de concretização da dignidade. São causa e efeitos.
Isto posto, se há, como no caso, pessoas buscando um mínimo de dignidade para morar, fruindo área pública, mas esta não pode ser aleatoriamente disponibilizada, nãoé o suposto critério hierárquico entre regras e princípios, mas sim uma solução razoável que mantenha ambas as normas no sistema, a forma jurídica correta de solucionar o caso. E foi o que fez o STF, na espécie, quando proibiu a reintegração imediata de posse em favor do ente público, como é o usual, “em especial quando é levada a efeito por força policial desacompanhada de maiores cuidados com o destino das pessoas retiradas”.
Noutros termos, o que fez o Judiciário foi manter intacto o sistema normativo: o usucapião de imóvel público é ainda é vedado, confirmando a supremacia do interesse público, porém a reintegração de posse somente pode ser feita quando houver um plano de retirada e uma política ou instrumento de assegurar que as pessoas da área não voltarão a condição indigna de não ter mais onde morar. Nada mais razoável, adequado, legal, eficiente, moral, impessoal. Convivem, harmonicamente, as normas jurídicas positivadas, independente de suas espécies. A supremacia do interesse público abraça o horizontal interesse privado. Ressoam a dignidade, a justiça e o bem estar social.
Então perguntamos: precisaríamos das regras e princípios par chegar a esta possível resposta, a nosso ver a melhor? E desconstruir (!?) a noção de interesse público e sua supremacia, para garantir os individuais? Não! Por tudo que foi exposto... e mais! Pois que o direito é sistema, prescritivo, completo e simétrico, apresentando sempre várias soluções para os conflitos da vida em comunidade. Para além disso disso, é complicar o que já é complexo e, por vezes, preterir a segurança jurídica, razão de ser do próprio direito enquanto instrumento humano de pacificação social.
Pelo exposto, conforme já consignamos em monografia já publicada e aqui também citada (HUMBERT, Georges Louis Hage. Conceito de Direito, de Norma e de Princípio Jurídico. Salvador: Editora Dois de Julho, 2015), o grande desafio do fenômeno jurídico não é de sua compreensão, conceituação. Não é filosófico e nem da ciência do direito. É de interpretação e aplicação, ou seja, de hermenêutica do e para o direito. E este problema reside, especialmente, no que concerne a forma, ao procedimento e controle, social, moral, mas notadamente jurídico do ato de decisão - concreção, exteriorização, de, como alguns dizem, construção do direito. É por isso que, em nossa análise, aqueles que se interessam pelo direito, estudam, interpretam e aplicam, notadamente os cientistas do direito ou que tem por objeto de sua pesquisa o direito, precisam dedicar mais tempo, inteligência e produção a investigação, ao problema, à questão de como exercer e controlar a atividade de dar a última palavra do que é o direito em concreto, isto é, dos atos do estado-magistrado, apresentando soluções compatíveis com o direito em suas variadas acepções.
Exorta-se, desta forma e por derradeiro, a não concentrar tanta energia e conflito em “batalhas epistemológicas”, sobre qual a melhor ou a pior forma de pensar e compreender o direito, ainda mais para desqualificar essa ou aquela, e mesmo pretender superar uma determinada corrente do pensamento jurídico, sociojurídico ou jusfilosófico. A grande questão não é o que é o direito, a norma jurídica e a solução não são os princípios jurídicos ou qualquer outra mera classificação de dados. O enigma atual do direito é de sua interpretação e aplicação, consequentemente, de hermenêutica - jurídica, diga-se.