André Rosilho (SP)
A Constituição de 1988 e a Lei Orgânica do TCU, ao simultaneamente conservarem competências já tradicionais da Corte de Contas e lhe conferirem novos instrumentos de controle, o fizeram por meio de normas pouco claras e que evitaram dizer, com assertividade e precisão, suas possibilidades e limites de controle. O resultado dessa escolha do legislador foi a criação de ampla zona de penumbra na qual se tem pouca clareza sobre o que é efetivamente obrigatório, proibido ou autorizado ao Tribunal. Por exemplo: o que significa dizer que ao TCU compete “assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade” (art. 71, IX, da Constituição)? Ao “assinar prazo” a órgão ou ente, poderia o Tribunal obrigar seu destinatário a adotar determinada medida que julga mais adequada para sanar a suposta ilegalidade? Seria o comando do Tribunal cogente, ou, ao revés, teria a administração a possibilidade de discordar da leitura da legislação feita pelo TCU? Teria o Tribunal legitimidade para assinar prazo para a correção de supostas ilegalidades em quaisquer matérias (tais como ambiental ou regulatória)? As respostas a essas e a outras indagações não estão prontas para serem colhidas das normas em vigor.
O curioso é que nesse ambiente de incerteza quanto aos reais contornos de suas competências, o TCU não raro tem se utilizado de seu poder regulamentar (a ele genericamente conferido pelo art. 3º de sua Lei Orgânica) para, sob o pretexto de esclarecer seu papel enquanto órgão de fiscalização e de operacionalizar suas atribuições, pavimentar novas vias de controle para além dos limites fixados pelas normas constitucionais e legais. Trata-se de uma estratégia de autolegitimação do seu poder, em boa medida possível por conta da dificuldade de se extrair do ordenamento jurídico parâmetros e critérios claros e objetivos. A instrução normativa 74/2015, editada pelo TCU para disciplinar a fiscalização do processo de celebração dos acordos de leniência da Lei Anticorrupção, de 2013, ilustra o diagnóstico que acabo de traçar.
A Lei Anticorrupção soma-se a muitas outras que, como ela, procuraram ampliar os controles sobre a administração pública e seus parceiros privados — ex.: Lei de Ação Civil Pública, de 1985, Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, e Lei de Licitações, de 1993. Editada num momento em que inúmeros escândalos de corrupção afloravam no âmbito do Executivo, seu objetivo declarado foi viabilizar a punição de pessoas jurídicas envolvidas ou beneficiadas por práticas escusas, especialmente no ambiente das licitações e contratos.
Para tanto, previu que pessoas jurídicas em geral seriam responsabilizadas objetivamente — isto é, independentemente de dolo ou culpa —, nos âmbitos administrativo e civil (art. 2º), por atos lesivos que atentassem “contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil” (art. 5º, caput). Os incisos e alíneas do art. 5º definiram o conceito de atos lesivos — “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público...” (inciso I), “fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente” (inciso IV, “d”), “manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública” (inciso IV, “g”), etc.
Em caso de reconhecimento de responsabilidade, estatuiu que empresas poderiam vir a ser sancionadas, no plano administrativo, com multa (art. 6º, I) ou publicação extraordinária da decisão condenatória (art. 6º, II) e, no plano judicial, com perdimento de bens, direitos ou valores que representassem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração (art. 19, I), suspensão ou interdição parcial de suas atividades (art. 19, II), dissolução compulsória da pessoa jurídica (art. 19, III), ou, então, com a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (art. 19, IV). Sanções bastante graves, portanto.
Para ampliar os riscos de empresas que tivessem praticado condutas tipificadas pela lei serem descobertas e para potencializar os mecanismos de fiscalização, o diploma, com evidente inspiração na Lei de Defesa da Concorrência, de 2011, previu a figura do acordo de leniência. O referido acordo seria celebrado pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública — no caso do Executivo federal, essa competência foi concentrada na Controladoria-Geral da União (art. 16, § 10) — com pessoas jurídicas responsáveis pela prática de atos lesivos que, em troca de certos benefícios, optassem por colaborar efetivamente “com as investigações e o processo administrativo” (art. 16, caput) — a despeito de a medida provisória 703/2015 ter alterado substancialmente a redação da lei (especialmente no que tange ao acordo de leniência), opto por me ater à sua redação original haja vista que a referida MP ainda pende de chancela pelo Congresso Nacional.
Os efeitos do acordo para as empresas que o firmarem são significativos: isenção da publicação extraordinária da decisão condenatória (sanção administrativa prevista pelo art. 6º, II) e da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (sanção judicial prevista pelo art. 19, IV) e redução de até 2/3 do valor da multa eventualmente aplicável (sanção administrativa prevista pelo art. 6º, I). Vale notar que o acordo de leniência também pode ser firmado com pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei de Licitações, com vistas à isenção ou atenuação das sanções estabelecidas nos seus arts. 86 a 88 (art. 17). Vê-se que se trata de verdadeiro acordo substitutivo de sanção, incrementado com ingredientes de delação premiada.
Apesar de os atos lesivos arrolados pela Lei Anticorrupção evidentemente envolverem as finanças do Estado, em momento algum — nem mesmo ao disciplinar o acordo de leniência — o diploma fez alusão aos tribunais de contas, órgãos constitucionalmente responsáveis por zelar pela legalidade e pelo bom uso de recursos públicos. À luz do exposto, indaga-se: a lei, ao dizer que o acordo de leniência seria firmado pela CGU (no âmbito federal, evidentemente), teria excluído a possibilidade de o TCU apreciá-lo? E mais: decorreria da lei o dever de o Tribunal se vincular aos termos de eventual acordo de leniência celebrado pela CGU? Recorde-se que o acordo, uma vez celebrado, pode conduzir à não aplicação de sanções administrativas e judiciais e a eventual redução do valor de multas.
Mesmo tendo a Lei Anticorrupção atribuído à CGU (órgão que centraliza o controle interno da administração pública federal) a competência para celebrar o acordo de leniência, fato é que o diploma não excluiu (e nem poderia ter excluído) a possibilidade de o Tribunal de algum modo se envolver no tema. Tampouco seria plausível imaginar que eventual acordo de leniência firmado pela CGU com infratores produziria efeitos vinculantes em relação ao TCU. Decorre da Constituição (arts. 70 e 71) e das normas da Lei Orgânica do Tribunal sua competência para: 1) requisitar para exame o acordo de leniência celebrado; 2) emitir declaração sobre a validade do acordo (mas não para anulá-los); e 3) aplicar sanções legais aos responsáveis na hipótese de considerar a existência de alguma irregularidade.
À luz da generalidade e da falta de assertividade da legislação acerca das possibilidades de controle do TCU sobre a matéria — a Constituição lhe atribuiu a ampla missão de fiscalizar temas ligados às finanças do Estado e a Lei Anticorrupção previu a assinatura de acordo de leniência sem sequer aludir ao Tribunal — a própria Corte de Contas, via edição da IN 74/2015 (cuja origem está no acórdão TCU 225/2015, plenário, rel. Min. José Múcio Monteiro, j. 11.2.2015), procurou esclarecer como o fiscalizaria. Ao fazê-lo, contudo, cometeu excessos.
Calcada em uma série de “considerandos” — p.ex.: o de que “por não afastar a reparação de dano ao erário, nos termos do art. 16, § 3º, da Lei nº 12.846/2013, a celebração de acordos de leniência por órgãos e entidades da administração pública federal é ato administrativo sujeito à jurisdição do Tribunal de Contas da União quanto a sua legalidade, legitimidade e economicidade”, a IN 74/2015 instituiu procedimento para a fiscalização dos processos de celebração de acordos de leniência (e não dos acordos já celebrados), dividido em uma série de etapas (incisos do art. 1º). Duas delas são prévias e três são posteriores à celebração do acordo.
É importante notar que o diploma não se limitou a estabelecer simples processo de acompanhamento da elaboração de acordos de leniência (isto é, regras que tivessem o TCU como destinatário e que procurassem regulamentar sua própria atuação). Ao contrário, fixou à autoridade responsável por sua celebração (CGU) o dever de encaminhar ao TCU a documentação relativa a cada uma das etapas em prazos específicos (incisos do art. 2º). Disse, ainda, que o Tribunal emitiria parecer conclusivo acerca de cada uma delas (art. 1º, § 1º), sendo que a apreciação do TCU sobre as etapas que compõem a celebração de acordos de leniência constituiria condição necessária para a eficácia dos atos subsequentes (art. 3º). A autoridade que deixasse de dar cumprimento aos prazos previstos no art. 2º, salvo motivo justificado, ficaria sujeita à multa prevista no art. 58, IV, da Lei Orgânica do TCU.
Por ser competente para fiscalizar a aplicação de recursos públicos federais em geral, seria razoável supor que o Tribunal pudesse ter editado IN com a finalidade de especificar o modo pelo qual fiscalizaria acordos de leniência já celebrados. Entretanto, não são válidas as normas da IN 74/2015 que: 1) obrigaram a administração a enviar ao TCU tanto a proposta de negociação formulada pelo particular, como a minuta já negociada para o acordo; e 2) condicionaram a celebração do acordo pela administração à prévia aprovação da minuta pelo TCU.
O Tribunal tem competência para fiscalizar atos e contratos (art. 71, IX e X e §§ 1º e 2º da Constituição). Não lhe compete, contudo, fiscalizar (e muito menos aprovar ou rejeitar) minutas de acordos que sequer foram publicadas, sob pena de imiscuir-se em seara própria do Executivo (praticar atos, celebrar contratos e formular acordos). Não é por outra razão que a Lei de Licitações, em seu art. 113, diz que os tribunais de contas poderão solicitar para exame “cópia de edital de licitação já publicado” (e não minuta de edital em processo de elaboração). O TCU é instituição de controle (em regra a posteriori); não é instância de revisão geral de atividades administrativas. Evidentemente que, no caso em comento, nada impediria que, embora não obrigada legalmente, a administração viesse a aceitar submeter ao TCU a minuta já negociada para o acordo de delação, nos termos da IN 74/2015.
O que se nota é que o Tribunal, calcado em motivação justa (disciplinar procedimento voltado a fiscalizar acordo sobre tema que tangencia suas competências), acabou editando diploma normativo que, na prática, “deu” ao TCU poder que não lhe fora conferido pela Constituição, por sua Lei Orgânica ou pela Lei Anticorrupção (aprovar ou rejeitar minutas de acordos de leniência, participar da elaboração dos seus termos, etc.). Tudo indica, assim, que o Tribunal tenha se valido da zona de penumbra criada pela legislação para “interpretá-la” de modo a alargar seu campo de atuação e de ampliar sua esfera de influência.
A MP 703/2015, ao modificar diversos dos dispositivos da Lei Anticorrupção, em especial os que dispõem sobre a celebração do acordo de leniência, procurou, entre outras coisas, responder à provocação feita pelo TCU via IN 74/2015. A medida provisória, para além de ter centralizado a formulação do acordo de leniência na CGU e de ter aumentado seus potenciais benefícios a quem fosse celebrá-los — decisões a meu ver questionáveis, senão do ponto de vista jurídico, ao menos do ponto de vista político —, dispôs que “O acordo de leniência depois de assinado será encaminhado ao respectivo Tribunal de Contas, que poderá, nos termos do inciso II do art. 71 da Constituição Federal, instaurar procedimento administrativo contra a pessoa jurídica celebrante, para apurar prejuízo ao erário”, na hipótese de entender que o dano não foi integralmente reparado (art. 16, § 3º). Isto é: demarcou que o controle do TCU seria apenas a posteriori (a ele sendo vedado fiscalizar minutas de acordos) e se limitaria a discutir o valor do dano ao erário (procurando impossibilitar o órgão de se manifestar sobre sua legalidade). O Tribunal, como era de se esperar, reagiu: alegou que a iniciativa do Executivo seria inconstitucional pelo fato de ter mitigado poderes do TCU (quando comparados aos que lhe foram “conferidos” pela IN 74/2015).
O debate acerca das possibilidades e limites da atividade de controle do TCU no âmbito da Lei Anticorrupção tende a perdurar. No centro do imbróglio está ato normativo do Tribunal, que, ao conferir interpretação peculiar às suas próprias competências, escancarou disputa latente entre os órgãos de controle internos e externo por espaço na aplicação de diploma que inegavelmente tem polarizado discussões contemporâneas envolvendo o direito administrativo sancionador.