Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Após o último final de semana, os órgãos de imprensa divulgaram que cerca de 270 mil estudantes foram impedidos de realizar o ENEM em razão da ocupação, por movimentos estudantis, de 405 escolas em todo o país. Em vez de determinar a desocupação forçada dos locais para a realização das provas, o governo achou melhor que Ministério da Educação arcasse com o custo de toda uma nova logística para organizar um segundo exame, em nova data, para esse grupo prejudicado. O episódio escancara a tensão entre o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão (e de reunião) e os seus limites, algo nem sempre fácil de equacionar. Com efeito, a liberdade de expressão é um dos direitos mais desafiadores quando se trata de estabelecer as fronteiras entre o uso e o abuso de direito.
No cerne da questão estão as manifestações sociais, veículos que exteriorizam diversos direitos fundamentais, notadamente a liberdade de expressão, de reunião e a de participação democrática, e são canais relevantes que expressam o desejo de transformações nas esferas social, política e econômica do país. Tratam-se de direitos consagrados no artigo 5º, incisos IV (é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato), e XVI (todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente), da Constituição Federal de 1988.
Em geral, os movimentos sociais definem-se pela ação de grupos que buscam expressar seus anseios para superar alguma forma de opressão e produzir uma sociedade mais justa, por meio de atos que vão das mobilizações, marchas, concentrações e passeatas até o distúrbio da ordem pública e atos de desobediência civil. O vínculo entre os manifestantes está na expectativa comum de mudança nas estruturas sociais, políticas e institucionais.
As mídias sociais turbinaram a manifestações modernas devido ao seu enorme potencial de difusão e mobilização entre os jovens. Porém, o tipo de ativismo promovido por esses meios depende do local e da natureza das reivindicações. Em todas as manifestações há um traço comum e outro variável: o comum é ser veículo de questionamento e luta por uma sociedade mais igualitária; o variável é a reivindicação presente, dependente do momento político e social vivido em determinado tempo e local.
Há um consenso de que tais liberdades são de suma importância para o desenvolvimento e consolidação da democracia. A jurisprudência do STF já reconheceu uma estreita vinculação entre a liberdade de reunião e o princípio democrático, como se o direito de reunião consubstanciasse o próprio poder do povo, além de sua liberdade de expressão. No julgamento da ADPF 187, que examinou a Marcha da Maconha, o STF atribuiu um valor proeminente aos direitos em questão, impondo ao dever de o Estado assegurar o seu exercício, por constituírem prerrogativas essenciais do cidadão. Nas palavras do Ministro Celso de Mello
“impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais, que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder”. (ADPF 187. STF, Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. Julgada em 15/06/2011)
O direito de reunião consubstancia a formação de grupos em determinado contexto, com o objetivo de discutir ou difundir ideias e se apresenta como um modo particular de exteriorização da liberdade de opinião: é a liberdade de expressão coletiva. Por isso, ofensas aos direitos de associação e reunião implicam violações à liberdade de expressão e pensamento, dada a sua relação de dependência. O Supremo Tribunal Federal já deixou claro que
“o direito de reunião, enquanto direito-meio, atua em sua condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão, qualificando-se, por isso mesmo, sob tal perspectiva, como elemento apto a propiciar a ativa participação da sociedade civil, mediante exposição de idéias, opiniões, propostas, críticas e reivindicações, no processo de tomada de decisões em curso nas instâncias de Governo”. (Voto do Relator. ADPF 187. STF, Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 15/06/2011)
Assim sendo, por envolverem a difusão de ideias e reivindicações, as manifestações não devem ser menosprezadas, pois representam o exercício dos direitos fundamentais de liberdade de expressão e o direito de reunião. Esse exercício, no entanto, pode entrar em rota de colisão com outros bens juridicamente tutelados, tais como a liberdade de ir e vir, o direito à propriedade, a ordem pública e, no caso das ocupações de escolas, o próprio direito à educação daqueles que se veem impedidos de ministrar ou frequentar as aulas.
Por isso, na concretização desses direitos no mundo real, a atenção deve se voltar também à possibilidade de imposição de limites a esses direitos, tradicionalmente resguardada ao Estado, por conta do seu dever de manter a ordem pública e garantir os outros direitos fundamentais coexistentes. Este ponto oferece sérias dificuldades, a começar pela fluidez do termo “ordem pública”, que pode servir para justificar basicamente qualquer coisa que a autoridade policial, subjetivamente, considere uma ameaça à ordem.
Contudo é fato que o Estado detém a prerrogativa de limitar tais direitos, devendo exercê-la dentro dos parâmetros da proporcionalidade, da proibição do excesso e com observância ao dever de preservação do núcleo essencial dos direitos. Tais parâmetros se aplicam tanto à atuação legislativa quando ao exercício do poder de polícia pelo Estado e sujeitam-se ao escrutínio judicial e popular, por conta dos meios de comunicação.
Quanto às restrições, o primeiro ponto a destacar é que todos os direitos fundamentais são relativos. O próprio direito à vida o é: tanto no caso de pena de morte autorizada em caso de guerra declarada, quanto nas hipóteses legais de realização de aborto. Se até o direito à vida é relativo, evidentemente as liberdades de expressão e de reunião também o são. Apenas para ilustração, ninguém discute que a liberdade de expressão não se compraz com a expressão de discurso racista ou de ódio (hate speech), e nem com o anonimato – limites inquestionáveis do ponto de vista constitucional. Esse relativismo é inerente ao convívio entre direitos pertencentes a diversos indivíduos, que se retrata na conhecida expressão “a liberdade de um termina onde começa a do outro”.
Por conta disso, o próprio direito evidencia limites aplicáveis ao direito de reunião, de modo que a Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que garante a liberdade de reunião, circunscreve-a às reuniões organizadas, pacíficas e sem armas (não-violentas, portanto), exigindo-se o aviso prévio à autoridade competente e que não haja colisão com outro encontro no mesmo local e horário.
O Min. Celso de Mello, em seu voto na ADPF 187, apreciando a configuração constitucional do direito de reunião, afirma que
“a polícia não tem o direito de intervir nas reuniões pacíficas, lícitas, em que não haja lesão ou perturbação da ordem pública. Não pode proibi-las ou limitá-las. Assiste-lhe, apenas, a faculdade de vigiá-las, para, até mesmo, garantir-lhes a sua própria realização. O que exceder a tais atribuições, mais do que ilegal, será inconstitucional.”
Ok, é de se concordar inteiramente com o Ministro. Mas e se o excesso está no próprio exercício da liberdade de reunião? Vamos aos fatos concretos, e desde logo um parêntesis: não estou aqui a me posicionar sobre o mérito dessas manifestações em escolas (as reivindicações vão da reforma da educação e da PEC 241 até o “Fora Temer”), conquanto me pareçam permeadas por desinformação e falácias apocalípticas. A proposta é questionar a falta de limites com que a questão está sendo conduzida pelas autoridades governamentais. O MEC não determinar a desocupação das escolas e ver-se compelido a marcar novo exame nacional para não prejudicar os candidatos que poderiam ser barrados pela ocupação beira o absurdo. A recomendação da Defensoria Pública da União ao MEC para que se abstenha de identificar os responsáveis pelas ocupações, quando a própria CF veda o anonimato ao proteger a liberdade de expressão, escancara a conivência institucional com as arbitrariedades decorrentes dessas ocupações. Com toda a importância que as manifestações sociais tem para a democracia e para a liberdade de expressão, a legitimidade deste movimento em particular, à luz da CF/88, pode e deve ser questionada.
Os estudantes responsáveis pela ocupação de escolas tomaram a posse de bens públicos afetados a uma destinação específica, que é a efetivação do direito fundamental à educação. O espaço físico de uma escola de modo nenhum se encaixa na noção de “local aberto ao público” previsto no inc. XVI do art. 5o. Ainda que a escola seja pública, seu espaço é destinado ao uso por alunos e professores para o desenvolvimento de atividade didáticas, e ninguém em sã consciência deseja que seus filhos frequentem escolas abertas ao público, acessíveis portanto a toda e qualquer pessoa que lá deseje entrar e permanecer sem motivo específico. Além disso, a ocupação é indevida porque frustra “outra reunião anteriormente convocada”, o que facilmente enquadra o calendário acadêmico das aulas (que também são “reuniões” previamente convocadas que vinculam seus participantes em torno de expectativas comuns – por que não?). E também é indevida porque frustra a liberdade fundamental de ir e vir prevista no inc. XV, de alunos e professores que se veem impedidos de acessar à escola para o cumprimento do objetivo que é a sua própria razão de ser: a realização do direito fundamental à educação.
Desta vez o Poder Judiciário tem feito sua parte, concedendo as ordens judiciais para a desocupação das escolas. O Executivo, contudo, sem êxito nas negociações, tem optado por não executá-las à força para o restabelecimento da ordem, por recomendação da própria DPU. No grande contexto, vivemos tempos de democracia fragilizada onde ninguém quer parecer opressor: de um lado, Michel Temer patina sobre uma fina camada de gelo e a última coisa que lhe cairia bem seria a repressão sobre esses jovens manifestantes. De outro, ninguém no alto escalão do governo deseja que a mídia bombardeie a população com cenas de violência policial sobre os pobres estudantes que simplesmente manifestam por melhorias nas condições de ensino. Assim, os estudantes-ocupantes é que mantem a ordem – a sua ordem – impondo-a ao resto do país. Pensando bem, realmente não são de admirar os nossos pífios resultados em todos os indicadores de educação.
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