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Descaso com a População Carcerária: do "Estado de Coisas Inconstitucional" ao Estado de Coisas "Ainda Mais" Inconstitucional

ANO 2017 NUM 358
Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Mestre (2001) e Doutora (2007) em Direito pela UFRGS. Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter.


17/05/2017 | 4420 pessoas já leram esta coluna. | 14 usuário(s) ON-line nesta página

É do conhecimento de todos a ocorrência de mais um massacre envolvendo o sistema prisional, que no início de 2017 deixou um saldo de pelo menos 150 mortes. O episódio, para além de escancarar a disputa pelo poder entre facções criminosas, é revelador da precariedade, da negligência e da falta de segurança que impera dentro dos presídios brasileiros. Este episódio, contudo, não é o nosso ponto de partida. Pode ser considerado uma espécie de ponto de chegada se pensarmos que em 2015, o STF julgou a ADPF/MC 347, Rel. Min. Marco Aurélio, que tinha por objeto o descumprimento persistente da Lei que criou o Fundo Penitenciário Nacional para a reestruturação do sistema carcerário brasileiro. A ação visava, entre outros pedidos, a liberação das verbas do Fundo de Penitenciário Nacional (FUNPEN) e que a União se abstivesse de realizar novos contingenciamentos (LC nº 79/1994). É difícil examinar a (in)eficácia desse julgado à luz daqueles massacres (e outros desmembramentos que vou ao final analisar) sem parecer irônico, mas vamos tentar.

O fundamento da ação pressupunha que o STF declarasse o “estado de coisas inconstitucional” em relação à situação carcerária brasileira, caracterizando-se pela existência uma violação massiva de direitos fundamentais da população carcerária, cuja solução dependeria da atuação coordenada de diversas entidades e da adoção de uma série de medidas (CAMPOS, Carlos Alexandre Azevedo de. "O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural" – Conjur, 29/01/17).

Foi requerida a promoção de uma ampla discussão acerca das medidas propostas pelo Governo Federal por meio de audiências públicas com a participação de diversas instituições governamentais e da sociedade civil. Um plano de reestruturação deveria ainda ser submetido à análise do STF, para exame, propondo ações alternativas, se necessário, e contando com apoio técnico para tanto e que, posteriormente, o homologasse.

Diante do quadro apresentado na inicial, o Relator, Min. Marco Aurélio, considerou que não cabe ao STF tomar para si a competência própria dos Poderes Legislativo e Executivo, mas sim atuar no sentido de “superar bloqueios políticos e institucionais”, deixando para os poderes competentes a definição do conteúdo das medidas necessárias e a forma de executá-las.

A despeito de toda argumentação em prol de uma postura mais dialógica e cooperativa no controle de políticas públicas, a decisão (dispositivo da decisão) limitou-se a determinar o cumprimento daquilo que já estava estabelecido legalmente. Foram deferidas as medidas cautelares relativas à realização da audiência de custódia, e a relativa à liberação das verbas do FUNPEN, confirmando aquilo que já contava com previsão legal específica. Salvo no item que determina a elaboração do plano de reestruturação pelas instâncias responsáveis (e até agora não ouvimos falar dele), o dispositivo da decisão resumiu-se à banalidade de dizer aos poderes responsáveis: cumpra-se aquilo que está na lei.

No entanto, na fundamentação do julgado, cujo efeito meramente retórico já foi apontado por diversos constitucionalistas, destaca-se a teoria do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), expressando um parâmetro de decisão originado em cortes estrangeiras, ilustrando o fenômeno da Transconstitucionalidade (fala-se, também, em Transconstitucionalismo, expressão cunhada por Marcelo Neves, como uma forma de referir que muitas questões deixaram de ser discutidas apenas no âmbito dos estados para serem debatidas em uma esfera global). Trata-se de um sintoma de fenômeno maior, a globalização, que pode ser profícuo ao desenvolvimento à medida que o reconhecimento das diferenças, de um lado, e a similitude dos desafios a serem enfrentados por diferentes estados, de outro, estimula o entrelaçamento de ordens estatais diversas (locais, nacionais, internacionais, supranacionais, transnacionais) e a capacidade de aprendizagem recíproca no enfrentamento de problemas constitucionais.

Nesse sentido, a ADPF 347 assimila, na jurisprudência do STF, aportes oriundos da Corte Constitucional da Colômbia, com precedentes envolvendo o direito à assistência social de professores e também o sistema carcerário. Nesse caso, o STF reconheceu que a reestruturação do sistema carcerário brasileiro exige a coordenação de atividades de diversos órgãos competentes, notadamente o Executivo, competente pelo desenho das políticas públicas, e o Legislativo, responsável por verter essas políticas em leis de caráter vinculativo e também pela lei orçamentária que destinará os recursos necessários para a implementação daquelas políticas, sem falar no próprio Judiciário, que deve adotar uma postura mais restritiva em relação ao encarceramento, considerado a ultima ratio em matéria criminal, sobretudo no controle do excesso nas prisões provisórias e preventivas.

Esta seria uma forma de introduzir entre nós a teoria do diálogo institucional, de modo que “[e]m vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros poderes, [o Judiciário] deveria coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal permanente” (voto do Min. Marco Aurélio na ADPF/MC 347). O papel do Judiciário, assim, não estaria atuando em substituição aos demais poderes, o que seria a virtude desse modo dialógico de decidir. Para o Min. Marco Aurélio, o papel do Judiciário frente à situação carcerária é retirar o Estado da inércia, é estimular maior deliberação política e social acerca da matéria e monitorar a implantação dos meios eleitos pelas instituições competentes. Nas palavras do Relator, “[o]rdens flexíveis sob monitoramento previnem a supremacia judicial [...]”.

Se a decisão foi expressão de mera retórica, é algo que devemos nos perguntar tendo em mente o nosso ponto de chegada, envolvendo o massacre nos presídios, ocorrido ano e meio após a decisão. Tal episódio nos leva a algumas reflexões interessantes.

Primeiro, já não bastasse o problema de se considerar inconstitucional não uma norma, mas a realidade empírica (sobre o ponto, conferir a crítica sempre contundente de Lênio STRECK, “Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo”. Conjur, 24/10/2015), a inequívoca inefetividade da decisão diante dessas 153 mortes nos levaria a pensar num “estado de coisas ainda mais inconstitucional”, porque além do já natural descaso estatal nessa área, ainda temos que lidar com o descumprimento da decisão do STF, com eficácia erga omnes e vinculante, pelas instâncias responsáveis.

          Com efeito, se o encarceramento é a ultima ratio em matéria penal, nem o próprio STF atua de modo coerente com essa decisão, contribuindo para o agravamento da crise no sistema penitenciário ao considerar constitucional a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (ADC 43 e 44). Essa incoerência escancara o componente retórico, afinal, da construção do ECI no julgado.

Segundo, no que diz respeito ao Executivo, cumpre registrar que no final de 2016 o Presidente da República editou uma Medida Provisória modificando a Lei Complementar 79 do FUNPEN (MP alterar Lei Complementar já seria um problema grave do ponto de vista constitucional em face do art. 62, parágrafo 1o, da CF/88), autorizando o repasse das verbas para financiamento da segurança pública, o que não significa necessariamente a recuperação do sistema prisional. Isso nos leva a questionar se esse tipo de decisão não é, afinal, pior para os direitos em questão, corroborando o reconhecimento de um estado de coisas “ainda mais inconstitucional”.

Parêntesis: Há que lembrar que a CF possui outras formas de atuação, bem mais tradicionais e que concernem às tarefas tipicamente jurisdicionais que podem promover de modo mais eficaz os direitos em tela. Prova disso é a repercussão geral julgada pelo Supremo no início deste ano, determinando o dever de o Estado indenizar o detento por danos morais decorrentes da enorme precariedade dos estabelecimentos prisionais (RE580.252, Rel. Min. Teori Zavaski, julgado em 16/02/2017). Para tanto, lançou mão de normas já consolidadas em torno da responsabilidade do Estado por danos causados por omissão.

Finalmente, o Legislativo também se mobilizou em face do julgamento que estamos examinando. Não, porém, para verter em leis novas políticas públicas que atendam aos padrões mínimos de respeito à integridade física e moral dos apenados. Considerando que o ECI pode significar uma via à prática do ativismo judicial (STRECK, op. cit.), a decisão nessa ADPF desencadeou um projeto de lei no Senado (PL 736/2015) para “estabelecer termos e limites para o exercício do controle concentrado e difuso de constitucionalidade”, e disciplinar a atuação do Poder Judiciário nos casos em que declara a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional.  Segundo o projeto, só cabe declarar o ECI quando estiverem preenchidos os seguintes requisitos:  (I) “quadro de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais perpetrada pelo Estado, por ação ou omissão [..]”, atingindo um número significativo de pessoas e comprometendo o mínimo existencial; (II) “falta de coordenação entre medidas legislativas, executivas, orçamentárias e judiciais [...]”; (III) “previsão expressa, no texto constitucional, de políticas públicas que necessitem de concretização”.

Neste caso, a atuação do STF limita-se a determinar “a celebração de compromisso significativo entre o Poder Público e o segmento populacional afetado pela ação ou omissão”, consistente em “constante intercâmbio [...] em que as partes tentam celebrar acordo para a formulação e implementação de programas socioeconômicos”.

Segundo o PL 736/15, esse “compromisso significativo” implica a observância de algumas condições: (a) respeito ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes; (b) respeito às balizas orçamentárias previstas na Constituição e nas leis orçamentárias; (c) o respeito às vinculações orçamentárias constitucionalmente fixadas, compatibilidade com a LC 101/00; (d) respeito à disponibilidade orçamentária (que deverá ser objetivamente demonstrada, sendo facultado ao STF contar com o auxílio de perícia técnica, sendo que a manipulação de dados orçamentários pela autoridade pública com o objetivo de frustrar a efetivação de preceitos fundamentais caracteriza ato de improbidade administrativa) ; (e) e “respeito à legitimidade dos Chefes do Poder Executivo  na definição de prioridades da ação governamental e à sua competência precípua de elaborar e implementar políticas públicas”.

O projeto é salutar no sentido de tornar mais evidentes as balizas que divisam a distribuição funcional das competências constitucionais na conformação do princípio da separação dos poderes. Mas, para uma Corte que, no fim do dia, gosta mesmo é de fazer o que lhe parece melhor para o bem comum ou mais bonito do ponto de vista retórico, está aí uma demonstração de que o feitiço pode, afinal, se voltar contra o feiticeiro. E para o jurisdicionado, que não só se vê perplexo com a falta de efetividade da ADPF 347 como observa o verdadeiro agravamento da situação da população carcerária no Brasil, fica a certeza de que o papel, afinal, tudo aceita.



Por Ana Paula Oliveira Ávila (RS)

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