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Declaração de Constitucionalidade da Lei da Anistia pelo STF: manter ou reverter, eis a questão

ANO 2016 NUM 235
Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Mestre (2001) e Doutora (2007) em Direito pela UFRGS. Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter.


16/08/2016 | 8892 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Existe grande expectativa quanto à possível revisão, pelo STF, da orientação que fixou a constitucionalidade da Lei da Anistia na ADPF 153, mediante o julgamento dos embargos declaratórios opostos pela OAB contra esta decisão. Publicada em 6 de agosto de 2010, a decisão teve sete votos favoráveis à manutenção da vigência da lei, sendo que três deles foram proferidos por Ministros hoje aposentados (Eros Grau, Ellen Gracie e Cezar Peluso) e Dias Toffoli, que era Advogado-Geral da União à época do ajuizamento da ação, está impedido de participar do julgamento. A composição atual da Corte conta com cinco Ministros que não participaram daquele julgamento (Luiz Fux, que assumiu a relatoria do processo no lugar do Ministro Eros Grau, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Teori Zavaski e Edson Fachin), razão por que muitos esperam que o julgamento possa ter um novo desfecho com o exame dos embargos.

Em apertadíssima síntese, o Min. Eros Grau, relator do voto vencedor, após uma narrativa de reconstrução histórica e política das circunstâncias que levaram à edição da Lei da Anistia no Brasil, entendeu que não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia, resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a eles entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Ao manter o perdão concedido pela Lei da Anistia, o STF desafiou a orientação presente em diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante CIDH) que examinaram ditaduras latino-americanas, de que as violações de direitos humanos praticadas durante governos militares de facto devam ser investigadas, para (a) individualizar os culpados, (b) estabelecer suas responsabilidades e (c) efetiva punição, e (d) assegurar às vítimas e a seus familiares o direito à justiça que lhes assiste (v.g., RELATÓRIO Nº 34/96 DA CIDH, envolvendo os casos 11.228, 11.229, 11.231 e 11.282, todos envolvendo o Chile).

Uma das razões para que muitos apostem nesta virada do julgamento é justamente essa orientação firmada na CIDH, que foi reforçada pelo julgamento do Caso Julia Gomes Lund e outros (conhecido como Caso Guerrilha do Araguaia), em que o Brasil foi condenado, entre outras medidas, a conduzir eficazmente a investigação, perseguir criminalmente os agentes civis ou militares da repressão e aplicar as correspondentes sanções penais. A decisão consignou, ainda, que diante de violações graves a direitos humanos, não cabe a aplicação a Lei de Anistia em benefício dos autores de tais atrocidades, nem qualquer outro expediente análogo, tal como a prescrição, para deixar de investigar e punir os responsáveis.

É claro que a declaração de constitucionalidade da Lei da Anistia com eficácia erga omnes e vinculante pelo STF conflita com esse importante julgamento da CIDH envolvendo o Brasil, proferido logo após o julgamento da ADPF 153, em 24 de novembro de 2010. Arrisco dizer que, tivesse a decisão do STF sido proferida poucos meses mais tarde, o desfecho teria sido outro.

Em 2014 a saia ficou ainda mais justa com o ajuizamento da ADPF 320 pelo PSOL, patrocinada por Fábio Konder Comparato, que argui a inconstitucionalidade do descumprimento da decisão da CIDH no caso Gomes Lund, aduzindo que “não padece a menor dúvida de que a inexecução, pelo Estado Brasileiro, da sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos representa clara violação da ordem constitucional brasileira”. Acrescenta, ainda, que o cumprimento dessa decisão internacional é um dever expresso na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A OAB foi admitida como amicus curiae neste novo processo, que ainda não foi julgado e desde agosto de 2015 está concluso com o Relator, Min. Luiz Fux. 

Uma questão muito observada pelos críticos da ADPF 153 põe em relevo a comparação do Brasil com o desfecho de ditaduras em outros países da América Latina, tomando-se como exemplo o caso da Argentina, onde a Lei de Anistia foi afinal afastada, viabilizando a persecução e punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos. Aliás, uma breve cronologia dos fatos demonstrará as idas e vindas no debate da questão naquele país: em setembro de 1983, a Lei n. 22.924 (Anistia) foi criada, na qual o próprio regime assinava o seu perdão; em 22 de dezembro de 1983, o Congresso Nacional argentino votou a Lei n. 23.040 que cancelava a anistia concedida pela Lei n. 22.924; em 23 de dezembro de 1986, foi aprovada a Ley de Punto Final (Lei n. 23.492/86 – declarava a extinção dos crimes praticados por qualquer pessoa denunciada pelos crimes elencados na Lei n. 23.049) e, logo em seguida, a Ley de Obediencia Devida (Lei n. 23.521/87 – considerava inimputáveis os militares que praticavam o crime cumprindo ordem de seus superiores). Porém, anos mais tarde, em setembro de 2003, o Congresso argentino formulou a Lei n. 25.779 que, pura e simplesmente, declarou nulas as leis de ponto final e obediência devida. Algo semelhante ocorreu no Uruguai, onde em outubro de 2011, o Parlamento aprovou lei que tornou nula a lei de anistia uruguaia.

Alguns problemas podem ser identificados nesta breve narrativa. Com efeito, ao aderir à Convenção Americana de Direitos Humanos, o Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana, da qual somente se afastaria na remota hipótese de denúncia àquela Convenção. A reviravolta no julgamento do STF na ADPF 153 seria, assim, uma das formas de contornar esta situação de enorme constrangimento em que nos encontramos: não cumprimos a decisão da CIDH no caso Gomes Lund usando como “salvo conduto” uma decisão do STF.

Não é de se esperar, contudo, unanimidade sobre tais questões pois há diversos pontos a serem considerados. Primeiro, há a questão da legitimidade do Tribunal Constitucional neste tipo de decisão. A comparação com países como a Argentina deve considerar que, lá, a questão foi decidida no âmbito do Parlamento, representante da soberania popular, e não pelo Tribunal Constitucional local. O Poder Legislativo no Brasil, ao contrário de outros países, tem-se mantido alheio à questão como se ela não lhe dissesse respeito, quando bastaria assumir uma posição semelhante àquela adotada pelo país vizinho. Um dia, essa terceirização da agenda social que realmente interessa e suas questões “difíceis” ao Supremo Tribunal Federal, pelo Congresso Nacional, cobrará o seu preço. Até lá, temos o Supremo e a Constituição, que deve ser interpretada e servir de parâmetro de conformação das leis ordinárias, como é o caso da Lei da Anistia.

Segundo, temos argumentos invocados no acórdão do STF – notadamente o princípio da segurança jurídica – que remontam ao texto da própria Constituição, da qual o Tribunal é o autêntico intérprete, e não serão simplesmente desconsiderados em uma nova decisão. Será necessária uma nova concordância prática que possa acomodar todas as normas conflitantes envolvidas. A Constituição dispõe, no artigo 5º, a imprescritibilidade para crimes graves, tais como racismo ou a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o estado democrático (incs. XLII e XLIV), e também tornou o crime de tortura insuscetível de graça ou anistia (inc. XLIII). Dispõe, também, que a lei penal não deve retroagir, salvo se beneficiar o réu (inc. XL) - o que, à toda evidência, não seria o caso, pois estamos tratando que normas mais graves.

A OAB, na ADPF 153, esperava que a imprescritibilidade fosse reconhecida retroativamente aos crimes comuns cometidos contra os direitos humanos durante a ditadura militar, invocando a disciplina internacional no trato da matéria – neste particular, o art. 7o do Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil em 2002, que define os crimes contra a humanidade, entre eles a tortura (alínea g), a perseguição por motivos políticos (alínea h) e o desaparecimento forçado (alínea i), combinado com o art. 29, que decreta a imprescritibilidade dos crimes de competência do Tribunal Penal Internacional. Isso, contudo, bate de frente com o direito fundamental do inciso XL do art. 5o, que se une à proibição expressa de que qualquer cidadão seja privado de sua liberdade sem o devido processo legal (inc. LIV). Há empecilhos, portanto, ao reconhecimento da imprescritibilidade a crimes que, quando do seu cometimento, eram prescritíveis.

A imagem de um cenário de certo modo “salomônico”, contudo, ganha força. Imagine-se que se reverta o julgamento da inconstitucionalidade da Lei de Anistia, e que os crimes políticos ou comuns a eles conexos sejam passíveis de apuração e punição. A regra da imprescritibilidade não seria aplicável retroativamente (princípio da segurança jurídica), afinal, deve-se preservar a Constituição e não se deve combater uma arbitrariedade com outra. Em razão disso, uma parte considerável dos crimes estaria prescrita. Outra parte, contudo, consistiria em crimes permanentes (e.g., desaparecimento forçado, ocultação de cadáver), que seguem em plena consumação e portanto não sujeitos à incidência da prescrição. É nisso que investe a Ordem em seus embargos declaratórios, os quais, caso logrem o visado efeito infringente da decisão neste ponto em particular, tornarão possível o julgamento dos responsáveis por parte das violações aos direitos humanos perpetradas contra cidadão brasileiros.

Se, na prática, isso poderia eventualmente acabar na distribuição de mais tornozeleiras pelo sistema judicial a senhores de considerável idade, será o preço a pagar pelo tempo que o problema passou debaixo do tapete (favorecendo a prescrição pelos crimes perpetrados) e por termos colocado a pressão sobre o Poder Judiciário, e não sobre o Parlamento, onde a questão da Lei da Anistia deveria ter sido resolvida pelos representantes diretamente eleitos pelo povo, que perante ele respondem a cada mandato eleitoral concedido pelas eleições. Contudo, é inegável que alguma punição pelas atrocidades cometidas contra os direitos humanos é devida, tanto em sinal de respeito às vítimas e suas famílias, quanto em respeito à jurisdição da CIDH e sua proteção constitucional, além da necessária preservação memória, um bem maior a ser preservado para evitar, no futuro, a repetição das mesmas graves violações, por novos atores contra novas vítimas.



Por Ana Paula Oliveira Ávila (RS)

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